País vive choque inédito com dólar e commodities em alta -e isso afeta seu bolso
O dólar sempre caiu no Brasil quando as commodities sobem no mercado internacional, estimulado pelas exportações, mas não é o que está acontecendo
O Brasil está sofrendo um choque de preços sem precedentes –e que, não à toa, pode ser sentido com clareza pelos consumidores em lugares como os supermercados ou os postos de gasolina.
Os combustíveis, como a gasolina e o diesel, subiram mais de 40% nas refinarias só nos últimos dois meses e, nos postos de gasolina, já registram os maiores preços de sua história.
Os alimentos, que subiram quase 20% no supermercado no último ano, estão passando por algumas das maiores altas desde o início do Plano Real, em 1994, quando a nova moeda colocou um fim definitivo aos anos de hiperinflação.
No atacado, a situação é ainda pior: as altas nos produtos brutos chegaram aos 40%, de acordo com os dados do IGP-M, índice de inflação da Fundação Getulio Vargas que acompanha também a evolução de preços praticados por produtores e exportadores de itens como soja, milho, minério de ferro e petróleo. É também uma das maiores variações já vistas desde o fim da hiperinflação.
Por trás dos aumentos assustadores, está um choque duplo de preços –e inédito na economia do país. Os consumidores brasileiros estão tendo que arcar com o dólar mais alto, ao mesmo tempo em que os preços de produtos básicos da alimentação e da indústria, as chamadas commodities, também estão subindo no mercado internacional.
As duas coisas, historicamente, andam em direções opostas no Brasil, e esta é a primeira vez que sincronizam as altas desde que o país abandonou o câmbio fixo e adotou o regime flutuante, em 1999. Desconforto político, pandemia em descontrole, contas públicas bagunçadas e juros que nunca estiveram tão baixos estão entre as razões apontadas para explicar a fuga de capital mesmo com o real em liquidação.
Sincronia de altas
As commodities são todos os produtos básicos que são negociados em larga escala em bolsas internacionais. Elas incluem uma lista longa de alimentos, como soja, milho, café, açúcar e carnes, além de insumos como petróleo, minério de ferro e celulose, que estão na base de coisas do dia a dia, como combustíveis, energia elétrica, produtos industrializados e construção civil.
A cotação delas sobe conforme sobe a procura mundial, e não é a primeira vez que ficam caras. Pelo contrário, todas elas já chegaram a custar até mais em dólares nos anos de “boom”, em 2000 e 2010. Quando os preços delas sobem no exterior, os produtores daqui preferem exportar, obrigando o mercado doméstico a pagar o mesmo, e é por isso que, aqui dentro, eles acabam subindo também.
O problema é que, das outras vezes em que isso aconteceu, o dólar sempre caía: como o Brasil é um grande exportador dessas commodities, os valores mais altos delas ajudavam a aumentar as receitas dos exportadores, trazendo mais dólares e, com isso, o câmbio sempre cedia.
O oposto também é verdadeiro: sempre que as commodities e, portanto, as exportações brasileiras estiveram em baixa, o dólar subiu. Mas, da mesma maneira, as matérias-primas mais baratas compensavam o dólar mais caro, e o impacto para o bolso do brasileiro seguia amortecido.
Dessa vez, porém, uma coisa não respondeu à outra, e a cotação do dólar seguiu subindo mesmo com o preço das principais exportações explodindo. O resultado são produtos ainda mais caros quando convertidos para o real, e o consumidor brasileiro acabou com essa fatura dupla na mão.
Historicamente, sempre que as commodities subiam, dólar caía, e isso acabava sendo um estabilizador natural dos preços. Não é o que está acontecendo agora, por uma série de motivos políticos e fiscais. Isso tirou esse ‘colchão’ que o câmbio dava, e a inflação ficou com duas fontes de choques.
Tiato Tristão, economista da Genial Investimentos
Novo ‘boom’ de commodities e estagflação
Para se ter uma ideia, o barril do petróleo já chegou a valer o recorde de US$ 140 nas bolsas em 2008, mas, como o dólar chegou a até a R$ 1,60 naquela ano, significava um custo de R$ 224 para o Brasil. Hoje, o mesmo barril está US$ 60, mas, com o dólar a uma média de R$ 5,40, ele sai pelo equivalente a R$ 324. É 44% mais em reais, mesmo sendo 57% menos em dólares.
Os preços dos alimentos, como os grãos, já estão caminhando de volta aos recordes de 2010 nas bolsas, enquanto outros, como o minério de ferro, já estão bem perto de batê-los, depois de meia década em que todos estiveram em baixa. Economistas do mundo todo já falam em um novo “boom” das commodities nos próximos anos e as ações das empresas do setor estão explodindo nas bolsas de valores.
O único outro momento em que o Brasil sofreu um choque parecido foi em 2002 e 2003, quando a primeiro eleição do petista Luiz Inácio Lula da Silva causou pânico nos mercados e o dólar disparou para mais de R$ 4 pela primeira vez. Em termos ajustados pela inflação, seria o equivalente a um câmbio valendo perto de R$ 8, o que segue até hoje sendo o recorde histórico. Na sexta-feira (19), o dólar era negociado perto de R$ 5,50.
A combinação de dólar e commodities altos é especialmente cruel porque faz com que os preços dos produtos no país subam por pressões externas e financeiras, mesmo com a economia doméstica cambaleando. Isso, pela teoria, deveria ser razão para queda de preços, e não mais aumento.
A necessidade de responder à essa inflação inesperada foi o que forçou, na semana passada, o Banco Central a fazer um aumento forte na Selic, a taxa básica de juros do país. É também o que já está levando os economistas a falarem em um quadro de estagflação –a amarga mistura de crescimento baixo com preços em alta que corrói duplamente a renda das pessoas.
Crise sanitária, fiscal e política
Entre as principais explicações para a disparada do dólar no Brasil, à despeito de tudo favorável às exportações, os economistas reforçam tanto as condições frágeis das contas públicas brasileiras quanto a turbulência política, acentuada na gestão de Jair Bolsonaro ao longo deste ano de pandemia. A moeda disparou de R$ 4, no início de 2020, para mais de R$ 5, e o real figura está entre os que mais perdem valor no mundo.
“A percepção é que o risco fiscal aumento significativamente”, diz a economista-chefe da gestora de investimentos Armor Capital, Andrea Damico. “O país já tinha a situação fiscal frágil, gastou muito durante a pandemia e, agora que ela piorou, não tem mais de onde tirar dinheiro.”
A dívida pública do Brasil chegou a 90% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano passado e é uma das mais altas do mundo emergente, onde essa proporção, no geral, não passa dos 70%. Com gastos que seguem altos, a perspectiva é que ela ainda siga crescendo, e é esse um dos principais pontos de atenção —nenhum investidor quer emprestar dinheiro para um país endividado.
Damico acrescenta, ainda, o peso de ações políticas que foram desagradando o universo financeiro, que é quem opera e movimenta as cotações do câmbio diariamente. Ela menciona episódios como as decisões de Bolsonaro de mexer nos impostos dos combustíveis e mudar o presidente da Petrobras, além da dificuldade do governo de reduzir as infeçcões por coronavírus e avançar com a vacina, o que só prorroga a agonia da economia.
Já é uma sequência razoável de ações populistas e o mercado sempre fica na dúvida de qual pode ser a próxima. Tudo isso pesa muito, e o estrangeiro, que já estava bastante pessimista, ficará ainda mais.
Andrea Damico, economista-chefe da Armor Capital
Exportações em queda
Mário Carvalho, economista-chefe da Fundação Centro de Estudos do Comércio Exterior (Funcex), também aponta que, mesmo com o dólar acima de R$ 5 e favorável a qualquer exportador, porque os produtos brasileiros ficam baratos, ainda há setores com dificuldades nas vendas.
“O setoresagropecuário teve, sim, uma reação positiva, mas a indústria ainda está sofrendo”, disse ele, mencionando produtos manufaturados como máquinas e veículos, que viram as vendas quase sumir no ano passado.
“Há um incentivo de preço [por conta do real mais barato], mas é um setor que ainda sofre com custos altos, falta de financiamento e apetite para encontrar novos mercados e recuperar os velhos”, diz Carvalho. Com ainda boa parte da clientela concentrada na América do Sul, diz ele, em países que também tiveram um ano difícil, como Argentina, Chile e Colômbia, foi difícil para essas empresas manter os mesmos níveis.
Em 2020, já com o agronegócio batendo recordes, as exportações brasileiras caíram 7% no total. No último ciclo de alta das commodities, até 2010, as vendas para fora cresceram a um ritimo de mais de 20% ao ano.
O resultado da balança comercial no ano passado só acabou positivo porque as importações caíram ainda mais (10%), e o saldo que sobrou em dólares para o país, na diferença entre tudo o que foi exportado e importado, acabou com satisfatórios US$ 50 bilhões, 6% mais que em 2019.