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    “Com as vacinas, estamos tentando resolver juridicamente uma questão ética”

    Constituição não tem resposta sobre imunizantes, mas pode autorizar esforço paralelo da iniciativa privada, diz Henderson Fürst, especialista em bioética

    Mônica Manir, colaboração para a CNN

    O que é ético ou antiético na pandemia? Para Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Nacional e professor de Direito Constitucional da PUCCAMP (Pontifícia Universidade Católica de Campinas), essa é mais uma entre tantas perguntas em torno da Covid-19 que não aceitam respostas automáticas. Mesmo porque a ética tem relação estreita com situações novas e complexas para as quais os valores consolidados parecem insuficientes. E complexidade está intimamente ligada à Covid-19.

    Logo no começo da pandemia, lembra Fürst, o Brasil polarizou economia e saúde como se fossem mutuamente excludentes. “Isso é uma pobreza de compreensão imensa, porque temos uma situação não consolidada, que demanda eleger critérios, questionar, até saber que providências tomar”, diz.

    Daí derivaram comportamentos que chegam a ser antagonistas, como se recusar a tomar a vacina contra o coronavírus ou fazer de tudo para furar a fila da vacinação. É sobre essas atitudes cotidianas que navegam na lâmina da ética, algumas mais evidentes e outras nem tanto, que o advogado, autor de “No Confim da Vida: Direito e bioética na compreensão da ortotanásia”, comenta nesta entrevista à luz da pandemia. 

    O bioeticista perdeu não apenas amigos, mas autores para a Covid. Ele é editor jurídico do Grupo Editorial Nacional. Fürst também pegou a doença, o que o deixou angustiado. Aos 33 anos, é portador da encefalomielite miálgica, também conhecida como síndrome da fadiga crônica, uma doença rara. A raridade, por si, costuma implicar reflexões sobre prioridade. “No meu caso, ainda há debate sobre se é ou não um fator de comorbidade para prioridade na vacinação, mas quer me parecer que não”, afirma.

     Em tempo: um texto de Hürst foi citado durante o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a vacinação compulsória contra a Covid, em dezembro, no qual ficou decidido que, embora não possa forçar alguém a se vacinar, o Estado pode impor medidas restritivas a quem se recusar a tomar o imunizante. 

    No artigo, Fürst  explica a diferença entre a recusa terapêutica, quando um paciente tem uma doença e se recusa a uma intervenção que pode propiciar a cura; e a recusa vacinal, quando a pessoa não tem a moléstia, mas sua negação à imunização pode colocar em risco a saúde pública e operar contra a lógica da prevenção comunitária. Por esse princípio, a vacinação contra a Covid deveria ser obrigatória, diz ele.  

    CNN Brasil: Com mais de um ano de pandemia, o que já se consolidou e o que ainda está por se consolidar em termos de valores?

    Henderson Fürst: No Brasil, é difícil responder isso. Já se consolidou a compreensão de que a Covid é grave, e não uma doença singela. Também a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) e dos profissionais de saúde. No início da pandemia, vimos esses profissionais sendo atacados. Agora, não. Temos até uma legislação específica, de março deste ano, que estabelece uma compensação financeira para trabalhadores de saúde que se incapacitarem permanentemente por causa da Covid, com uma indenização à família em caso de óbito. 

    Dá para dizer que a Covid já se firmou como grave quando muitas pessoas ainda não se cuidam nem protegem as demais?

    A parcela da sociedade em que isso ainda não se consolidou é influenciada por uma compreensão ideológica muito específica da pandemia, e isso diz respeito a uma base muito específica também. No geral, para mais ou para menos, num posicionamento ideológico médio, a sociedade compreendeu que a Covid é grave e que há formas específicas de combate a ela. Agora, temos uma tentativa de desconstrução disso. Uma parte da sociedade está sob essa influência.

    E sobre a vacina?

    A sociedade entende a necessidade dela. Quanto aos aspectos complexos da vacinação, como “quem vacinar primeiro?” e “como deve ser organizada essa fila?”, ainda há um profundo debate pela frente. Existe uma consonância entre epidemiologistas e sanitaristas de que é prioritário vacinar as populações mais vulneráveis, ou seja, aquelas que estatisticamente demonstraram maior comorbidade e que faleceram com maior elevação de casos, e aquelas que estão mais expostas, os profissionais de saúde. Foi uma resposta ética porque não havia uma saída clara de quem vacinar primeiro. Afinal, temos recursos escassos aqui. Mas houve quem sugerisse que se protegesse a força economicamente produtiva e outros modelos de vacinação. A fila da vacina deve ser única ou podemos abrir uma fila paralela por iniciativa do sistema de saúde suplementar, por exemplo?

    Como entende essa bifurcação da fila?

    Entendo ser necessário o apoio de outros negociadores de vacina para trazê-la para o sistema de saúde. Um modelo que autorize todo o esforço a ir primordialmente para os grupos vulneráveis e, uma vez atingida essa meta, passe a seguir o atual modelo de saúde do Brasil, que é o do SUS mais o sistema de saúde suplementar. Seria o melhor e que enseja menos debates éticos. 

    Eticamente falando, como vê o Projeto de Lei 948 aprovado pela Câmara, que facilita a compra e a aplicação de vacinas contra o coronavírus por empresas privadas? O projeto está parado no Senado.

    Estamos tentando resolver juridicamente uma questão ética, mas nem tudo que é jurídico é ético. Se o Projeto de Lei permanecesse respeitando a lógica da resposta anterior, ou seja, de primeiro vacinar todos os vulneráveis, haveria menos discussões, inclusive juridicamente. Agora, ao ignorar isso e aprovar integralmente a possibilidade de empresas comprarem e utilizarem as vacinas, teremos de observar se a composição atual do STF entende que, pela Constituição, isso é possível ou não. 

    E é?

    A Constituição não tem uma resposta clara sobre vacinação, só sobre saúde. Como a Constituição prevê a existência do Sistema de Saúde Suplementar, me parece que ela autorizaria, sim, a possibilidade de termos um esforço paralelo por parte da iniciativa privada para vacinar grupos específicos – por exemplo, os funcionários da empresa. 

    Henderson Fürst
    Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) Nacional e professor de Direito Constitucional da PUCCAMP (Pontifícia Universidade Católica de Campinas)
    Foto: Acervo pessoal

    O que o uso da máscara pode revelar de ético e não ético hoje em dia?

    Revela a percepção que a pessoa tem de cuidado de si e das pessoas ao redor. É muito assemelhável a uma pessoa que bebe, pega um carro e, mesmo que seja de madrugada, avança no sinal vermelho sem olhar. Ela pode querer se justificar: “Mas não tem ninguém na rua às 3 da manhã”. Mas pode ter. O não uso da máscara é a distorção da percepção da realidade dessa pessoa, que está assumindo um risco imenso para os que estão ao redor. 

    E as pessoas que têm resultado sabidamente positivo e, ainda assim, saem em público? Seria um crime imputável?

    A Covid é uma doença que tem um nível de infecção muito grande, e a exposição pública implica, sim, uma grande probabilidade de contaminar alguém. Há dois artigos no Código Penal que podem se enquadrar aqui: o 267 e o 268. O 267 é “causar pandemia ou propagação de germes patogênicos”. Se comprovar que essa pessoa passou a doença para outra, ela está sujeita a responder pelo 267, pois propagou os germes patogênicos, o que contribui para a causa da pandemia. A pena é muito alta, de 10 a 15 anos, porém é difícil provar o nexo causal. Já o 268 fala o seguinte: “Infringir determinação do poder público, destinada à interdição ou propagação de doença contagiosa”. Não bastasse a pessoa estar saindo para a rua quando se indica ficar em casa, existe uma determinação pública de que, se está positivada, não deve sair. Então certamente o 268 foi infringido aqui. A pena do 268 é detenção de um mês a um ano mais multa. 

    Diante da epidemia, acha que se acirrou o individualismo?

    Historicamente, a humanidade é mais preocupada com o cuidado coletivo do que com o cuidado individualista. Isso não quer dizer que a gente não veja movimentos de pessoas protegendo a si e à própria família, movimentos mais egoísticos do que preocupados com a comunidade. Em determinados países, continua existindo a propagação da liberdade individual em detrimento do bem comum. No Brasil, esse discurso individualista é ressaltado porque é estimulado cotidianamente, mas não consigo crer que seja a postura da maior parte das pessoas. A população tem hoje um percentual muito maior de aceitar a vacinação. Ela é um ato de cuidado coletivo, mais que individual. E há também inúmeros movimentos de arrecadação de alimentos, grandes ONGs fazendo isso, mas também iniciativas discretas. No geral, acredito que estamos replicando nosso processo civilizatório de cuidado da comunidade. 

    Como definir eticamente a atitude de tentar se vacinar fora da própria cidade de domicílio em busca de uma imunização não programada para aquele município?  

    Primeiro, esse é um movimento que decorre da perda de esperança no atual modelo de vacinação. Isso não aconteceria se tivéssemos a tranquilidade de que o Plano Nacional de Vacinação contra a Covid está sendo adequadamente implantado desde o começo. Alguém aqui está tentando obter privilégio para a vacinação contra a influenza? Alguém tentando furar a fila para vacinar uma criança contra a pólio? Quando se percebe que a vacina contra a Covid será um recurso muito escasso, e diante da incompreensão do que seja um programa nacional de imunização, isto é, a lógica da questão da coletividade, a população começa a procurar caminhos próprios como um ato de desespero. Difícil dizer se é antiético tentar se mudar para uma cidade em que está ocorrendo uma vacinação em massa. É um jeitinho dentro da lógica permitida de poder se mudar. Diferentemente de uma pessoa que esteja procurando alguém para subornar atrás de uma dose que não é para ela, ou que usa um RG falso com outra idade. É outro nível de gravidade. 

    É alto, no Brasil e no mundo, o número de pessoas que não tomaram a segunda dose exigida por certos fabricantes de vacinas para a completa imunização. Seria um comportamento de descrédito quanto à eficácia da vacina? Desinteresse pelo coletivo? Fruto da desinformação? 

    Isso me parece efeito da desinformação. Todo o sistema de vacinação é acompanhado de uma complexa desinformação. Isso acontece também com reforços de outras vacinas. Em algumas, a segunda dose deveria ocorrer na adolescência, mas o índice desse reforço é baixíssimo. As pessoas o ignoram, esquecem, acham que está ok, se não tiveram a doença até agora não terão mais. Precisaria de uma campanha efetiva para ter adesão. 

    Enquanto a Covid estava matando especialmente os idosos, era um tipo de reação. Agora que está “rejuvenescendo”, a percepção da gravidade é outra?

    Sim. No início, era uma população sênior. Eu não sou idoso, a população não é idosa, então está tudo certo. Se o foco do vírus eram os idosos, eles que fiquem parados e isolados. É aquela falácia do lockdown vertical. Todos somos vulneráveis, uns mais, outros menos. Cai por terra o que o preconceito reforçava. Um pouco do que aconteceu com a rotulagem da aids como uma doença de homossexuais. Conforme foi se modificando e se aproximando, com pessoas conhecidas do público também morrendo, ela ganhou uma conscientização maior.

    As variantes do vírus deixam o combate à doença ainda mais nebuloso. Essa insegurança dificulta levar adiante princípios civilizatórios?

    As variantes representam a incerteza. O problema é quando essa incerteza se torna patológica. Ela vai fazer com que as pessoas tenham síndrome do pânico, depressão, que se comportem de forma a proteger o que resta de si. Para não entrar numa profunda angústia, por exemplo, elas podem começar a negar os fatos. Não posso nem dizer que estejam sendo antiéticas. Estão com uma disfunção cognitiva, e precisamos cuidar delas também. Nesse momento, os meios de informação são relevantíssimos. Não só informam, como mantêm a narrativa da percepção da realidade. 

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