Com 300 mil mortos por Covid-19, Brasil faz da sua população um grupo de risco
Especialistas elencam os principais motivos que levaram o governo à crise na gestão da saúde e o país à trágica posição de epicentro da pandemia
O Brasil ultrapassou a marca de 300 mil mortos na pandemia. De acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), 300.675 brasileiros foram vítimas da Covid-19. As famílias de 300.675 homens e mulheres – de todas as regiões, classes sociais, etnias, credos, orientações políticas e ideológicas – estão em luto. O país está em luto.
Hoje, pouco mais de um ano depois do início da crise global – a data oficial da Organização Mundial da Saúde (OMS) é 11 de março de 2020 -, o Brasil é o epicentro da pandemia. É aqui que morrem mais pessoas por dia atualmente – 1.999 nas últimas 24 horas, segundo o Conass. É daqui que saem variantes do coronavírus capazes de pôr a perder todas as conquistas da medicina. E é aqui que todos os cidadãos estão vulneráveis a contrair a Covid-19 e morrer dela – talvez sem acesso a uma UTI, sem oxigênio e sem condições de um sepultamento digno.
Se um ano atrás era, em alguma medida, possível definir grupos de risco para a Covid-19, no Brasil de março de 2021 o risco é simplesmente ser brasileiro. A doença não mais discrimina por idade e, segundo médicos, jovens lotam as unidades de tratamento intensivo dos hospitais.
A situação econômica obrigou muitos brasileiros a irem para as ruas buscar renda. A falta de um discurso pró-ciência e orientações claras de prevenção de parte das autoridades motivou outros a subestimar a destruição que o vírus causa num corpo, numa família, numa nação.
O Brasil chegou a 100 mil mortes em 8 de agosto, cinco meses depois do registro da primeira vítima. Para atingir 200 mil, em 7 de janeiro, foram outros cinco meses. Agora, a outra casa de centena de milhar foi alcançada em pouco mais de dois meses. Nesta semana, o país também chegou a 12 milhões de casos confirmados, patamar que só havia sido alcançado pelos Estados Unidos.
Quando começaram a chegar as primeiras notícias sobre a pandemia no Brasil, no começo de 2020, muitos duvidaram da potência do novo coronavírus. “Muita gente achou que nunca pegaria a doença”, diz a microbiologista Natalia Pasternak, diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora visitante do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (USP) no Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas.
Mas, em dois meses, passamos de 10 mil óbitos. O descontrole seguiu acelerado e, depois de um ano do primeiro diagnóstico em solo brasileiro, chegamos a mais de 12.219.433 de contaminados e batemos o recorde com 3.251 mortes na terça-feira.
O Brasil ocupa o segundo lugar do ranking dos países que mais registraram mortes por Covid no mundo, abaixo apenas dos Estados Unidos. Mas há uma diferença importante entre os dois países: os americanos estão vacinando em massa. A maioria dos estados americanos já administrou a primeira dose de vacinas para 89% da população, segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês).
Segundo levantamento feito pela CNN com base no balanço preliminar da vacinação das secretarias estaduais de Saúde que divulgaram seus dados, apenas 6,18% da população brasileira tomou a primeira dose — a segunda dose, neste momento da pandemia, foi dada a 2,07%.
Enquanto isso, assistimos aos hospitais lotados e a muitas pessoas falecendo à espera de um leito de UTI. A taxa de ocupação de leitos desse tipo já ultrapassa 80% em 24 das 27 unidades federativas que compõem o Brasil, segundo levantamento feito pela CNN com as secretarias de Saúde estaduais.
Como atingimos esse ponto? Que passos no combate à pandemia poderiam ter sido diferentes para que a população não fosse tão castigada? Especialistas ouvidos pela CNN elencaram os cinco principais motivos.
Negacionismo
De acordo com Natalia Pasternak, o cenário que estamos enfrentando está ligado a uma série de negacionismos de parte das autoridades. “Em relação à existência da pandemia, às medidas protetivas, como a máscara e o lockdown, e ao real tratamento, às vacinas”. A afirmação é confirmada no Relatório Mundial 2021, produzido pela Human Rights Watch, organização internacional não-governamental referência em pesquisas sobre direitos humanos.
O documento é categórico ao apontar que o governo federal “tentou sabotar medidas de saúde pública destinadas a conter a propagação da pandemia da Covid-19”. O texto cita episódios em que o presidente Jair Bolsonaro:
– referiu-se à Covid-19 como “gripezinha, nos dias 20 e 24 de março de 2020;
– recusou-se a adotar medidas para proteger a si mesmo e as pessoas ao seu redor, questionando o uso da máscara e vetando trechos da lei que obrigava o uso da proteção em locais públicos;
– disseminou informações equivocadas, como no dia 21 de outubro, em que ele disse que “os números têm apontado que a pandemia está indo embora”;
– criticou os governos estaduais que buscaram impor medidas de distanciamento social, como no dia 28 de janeiro deste ano.
O texto também cita a demissão, em 16 de abril, do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta. Ele foi substituído por Nelson Teich, que em 15 de maio também deixou o cargo no ministério em razão do presidente defender o uso de medicamentos sem eficácia comprovada para tratar a Covid-19. Depois disso, o general Eduardo Pazuello ainda foi substituído pelo médico Marcelo Queiroga.
“Curas milagrosas”
Natalia destaca ainda o desserviço da divulgação e dos recursos destinados pelo governo para supostos tratamentos sem comprovação científica. “É o caso da cloroquina e da ivermectina, por exemplo”, cita. Entre setembro de 2020 e janeiro de 2021, foram distribuídas 420 mil doses de hidroxicloroquina para tratar pacientes com Covid-19. A informação foi confirmada pelo Exército brasileiro à CNN.
Em setembro de 2020, a CNN teve acesso a um contrato que revelou que o Exército pagou R$ 782,4 mil em matéria-prima para a fabricação do medicamento, 167% acima do valor de mercado, com recurso retirado do fundo emergencial de combate à pandemia.
Além disso, membros do Executivo federal fazem frequentemente posts e dão declarações defendendo esse tipo de medicamento e do chamado tratamento precoce – um aplicativo que recomendava essa abordagem chegou a ser lançado pelo Ministério da Saúde em janeiro e foi tirado do ar.
Mesmo com todas as evidências científicas apontando para a ineficácia desses medicamentos, o presidente Jair Bolsonaro defendeu na manhã desta quarta-feira (24), depois de reunião com outras autoridades, o tratamento precoce.
Falta de orientações centralizadas
“Governadores e prefeitos acabaram agindo de maneira diferente, deixando a população perdida”, afirma a infectologista Raquel Muarrek, da Rede D’Or, de São Paulo. A especialista defende que todas as esferas do governo falem a mesma língua e que haja uma organização em relação às diretrizes adotadas para combater o alastramento do vírus.
“Toda hora recebemos informações divergentes sobre o que pode abrir e os horários de funcionamento dos estabelecimentos, diferentemente do que acontece em outros países, que fazem uma programação mensal, permitindo que todos possam se organizar”, acrescenta.
Essa falta de unidade nas decisões levou o Supremo Tribunal Federal (STF) a autorizar, no dia 23 de fevereiro deste ano, que governadores e prefeitos buscassem a compra de vacinas.
Mas a articulação entre 21 governadores, ao menos até aqui, fracassou e no dia 10 de março eles divulgaram uma carta genérica, de apenas uma página, sobre o que pretendem fazer.
Nesta quarta-feira (24), uma reunião no Palácio da Alvorada entre lideranças dos três Poderes (Jair Bolsonaro, da República; Rodrigo Pacheco, do Congresso; Arthur Lira, da Câmara dos Deputados; e Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal) e outras autoridades buscou afinar o discurso e as ações no combate à pandemia. Foi anunciado um comitê para discussão de medidas – mas esse tipo de “pacto” entre os poderes costuma ter poucos efeitos práticos.
Relaxamento da prevenção
A falta de uma orientação uníssona e incisiva levou muitos brasileiros a relaxar na prevenção da doença. “Podemos fazer uma analogia com o título do livro do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, ‘Crônica de Uma Morte Anunciada’”, afirma o cardiologista intensivista Iran Gonçalves Jr., do Hospital Israelita Albert Einstein.
“Não houve aderência, de fato, da população aos cuidados básicos em relação à Covid-19, como o uso de máscara e o distanciamento social, e deixamos o vírus rolar pelo país”, justifica Gonçalves Jr., também responsável pela Unidade Coronária e do Pronto-Socorro de Cardiologia do Hospital São Paulo, da Escola Paulista de Medicina.
O médico lembra que o coronavírus é traiçoeiro, fazendo com que muitos tenham a doença e não apresentem os sintomas mais conhecidos, aumentando as chances de espalhá-la. Essa situação se agravou com as aglomerações que aconteceram em praias de todo o país em feriados nacionais, em shows e em eventos organizados pelo próprio governo, como no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em janeiro deste ano.
A situação econômica desesperadora em que muitos brasileiros se viram com o fim do auxílio emergencial acabou impossibilitando, também, medidas restritivas mais contundentes e levando cidadãos para as ruas em busca de renda.
Demora na imunização
Por fim, entre as razões para o Brasil estar nessa situação catastrófica está a falta de organização para a aquisição das vacinas. “Não obtivemos doses suficientes a tempo, e agora elas não estão disponíveis para a venda. O Brasil ficou para trás”, diz Gonçalves Jr.
“Logística para distribuir os imunizantes nós temos, mas ela não serve para nada se não há o que ser distribuído”, acrescenta Natalia Pasternak. O governo federal, que agora muda o tom e diz que o ano vai ser de vacinação em massa, demorou para adquirir as vacinas. Em agosto de 2020, o presidente Jair Bolsonaro recusou a compra de 70 milhões de vacinas da Pfizer contra a Covid-19.
Natalia reforça também a importância de que a compra seja centralizada no governo federal, que não seja focada em um único produto e que não seja permitida a veiculação de informações equivocadas, como aconteceu em relação ao imunizante negociado pelo governo do Estado de São Paulo — em outubro, o presidente Jair Bolsonaro disse que a vacina Coronavac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, em São Paulo, não seria comprada pelo governo federal.
Dias depois, o presidente afirmou a apoiadores que a vacina contra o novo coronavírus “não será obrigatória e ponto final“.
A demora na imunização, de acordo com a infectologista Raquel Muarrek, pode ter uma relação indireta com o surgimento de novas variantes da Covid-19, como a P.1, de Manaus. “A mutação é uma adaptação do vírus para continuar entrando no organismo humano. Portanto, ele vai continuar se adaptando para atingir pessoas não imunizadas ou parcialmente imunizadas”.
O que diz o governo federal?
Em nota enviada à CNN, o Ministério da Saúde diz estar “trabalhando em diversas frentes para garantir a assistência necessária para todos os estados e municípios”. A União, diz o texto, atua “para disponibilizar recursos e auxílio técnico para autorização de leitos, em apoio irrestrito aos gestores locais do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Em 2021, de acordo com a nota, a pasta autorizou 11.580 leitos de UTI adulto e pediátrico para pacientes com covid-19 em todo o país. O investimento total, segundo o ministério, é de R$ 553,7 milhões de reais.
“O ministério também monitora constantemente a disponibilidade de medicamentos e de oxigênio, em parceria com órgãos federais, estaduais e municipais, além do setor privado”. O texto informa que, desde o final de semana, a pasta se reuniu com os cinco maiores fornecedores de oxigênio do país “em busca de soluções para diminuir o risco de desabastecimento e novos envios estão programados para vários estados nesta semana”.
Em relação aos medicamentos de intubação, o Ministério da Saúde vem, ainda de acordo com a nota, coordenando estratégias que “garantiram a requisição administrativa de mais de 2 milhões de medicamentos junto à indústria e a entrega dessas unidades em parceria com duas empresas fabricantes”.
Por fim, o Ministério da Saúde informou à CNN que trabalha “desde abril de 2020 para garantir doses de vacinas covid-19 para o Brasil”. “No total, acordos feitos pelo governo federal com sete laboratórios diferentes garantem a entrega de 562 milhões de doses de vacinas até o fim de 2021.”