Lei Áurea: conheça a história de cidades que libertaram antes os escravos
Primeira abolição aconteceu no Ceará, em 1883, mas especialistas avaliam que falta de políticas de inserção dos negros retardaram reparação histórica
Quando no dia 13 de maio de 1888 foi sancionada pela princesa Isabel (1846-1921) a Lei Áurea, que finalmente decretou a abolição dos escravos em todo o território brasileiro, em diversas localidades, a escravidão já não era mais permitida. A enorme pressão do movimento abolicionista se juntou à conveniência econômica dos senhores de escravos em algumas províncias e antecipou a libertação de parte dos prisioneiros.
Então vila do município de Aracape, no Ceará, o atual município de Redenção foi o primeiro lugar brasileiro a abolir o regime — em 1º de janeiro de 1883. No mesmo ano, em 30 de setembro, foi a vez de Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Em 1884, toda a então província do Ceará decretou em 25 de março liberdade para os negros. Em 24 de maio, foi Manaus, em um movimento que depois ganharia toda a província do Amazonas, em 10 de julho.
Gradualmente, o processo foi se espalhando. Em 10 de fevereiro de 1888, três meses antes da Lei Áurea, Paiolinho, hoje Redenção da Serra, se tornou a primeira localidade paulista a libertar seus escravos. Também no interior paulista, Araras fez o mesmo em 8 de abril daquele ano.
De acordo com especialistas ouvidos pela CNN, é preciso olhar com cuidado para essa cronologia. Primeiramente, para não se tachar esses senhores pioneiros da abolição como heróis — no fundo, embora a pressão dos abolicionistas tenha sido essencial, boa parte da motivação que os impeliu a libertar os escravos foi de natureza econômica, e não humanista. Também para compreender que, independentemente do tempo da abolição, por não se ter havido uma política subsequente de reparação da população negra, as consequências se sentem até hoje.
Senhores de escravos e de terras
“Existia uma crise da escravidão. No caso, do dispêndio financeiro necessário para a manutenção do escravo”, lembra o historiador Philippe Arthur dos Reis, pesquisador na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na ponta do lápis, ao menos naquela segunda metade do século 19, o fazendeiro já começava a achar que valia mais a pena pagar minguados salários para trabalhadores braçais do que manter casa, comida, saúde, transporte — e ainda ter de fiscalizar para que não ocorressem fugas — de um batalhão de escravos.
A partir da Lei Eusébio de Queirós, de 1850, a situação se complicou um pouco. Com a proibição do tráfico negreiro, ficou mais difícil obter escravos novos. O Brasil passou a ter um tráfico interno de negros escravizados — em que regiões menos fortes economicamente passaram a “exportar” essa mão de obra forçada para as que estavam em um momento melhor.
Nesse sentido, era de se esperar que o movimento abolicionista ganhasse força em locais como o Ceará e o Amazonas, por exemplo. Com a iminência da abolição de lá, muitos proprietários ainda fizeram um bom dinheiro revendendo escravos para outras localidades. E, na libertação, eles ficaram sem os encargos de manutenção dos restantes, que não estava mais valendo a pena economicamente.
“Regiões mais pujantes economicamente, como o Vale do Paraíba e o oeste paulista, atraíram milhares de escravizados, principalmente oriundos das províncias do Norte, hoje Nordeste. No fim da década de 1870, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo já concentravam mais da metade de todos os escravizados do país”, afirma o historiador Felipe Azevedo e Souza, pesquisador da Universidade Federal da Bahia e integrante do projeto Salvador Escravista.
“Esse fator de desequilíbrio demográfico da escravidão foi importante para fortalecer a defesa do escravismo em determinadas regiões e a ascensão de movimentos abolicionistas em outras”, completou.
Conforme contextualiza Reis, as localidades que primeiro aboliram a escravidão, na verdade, eram as que menos tinham escravos naquele momento. Os antigos senhores de escravos dessas regiões já estavam diversificando seus interesses de investimento. “Muitos proprietários começaram a preferir investir em imóveis. Eles vendiam [os escravos] e compravam lotes de terra”, explica.
O caso cearense é emblemático. A província já contava com poucos escravizados, devido a esse tráfico interprovincial. Em 1877, houve uma crise drástica: uma grande seca deixou o Ceará em estado de calamidade, sob colapso econômico. Segundo pesquisa do historiador Souza, houve dezenas de milhares de mortos por fome e varíola naquele ano. “Muitos escravizados fugiram em meio às levas migratórias de retirantes”, relata ele.
Em meio a esse panorama, o movimento abolicionista encontrou espaço nas esferas do poder. Aos poucos, impostos mais altos passaram a incidir sobre a posse de escravos e fundos para emancipação, sob alforria, receberam auxílio.
Evidentemente, a resistência entre os escravizados também aumentava nas senzalas. Na região sudeste, onde passaram a se concentrar o maior número desses trabalhadores forçados, a partir da segunda metade da década de 1880 rebeliões e fugas em massa passaram a ser recorrentes.
Em 1887 houve uma grande fuga nos cafezais paulistas, o que deixou alarmados os proprietários rurais, receosos de ficar sem mão de obra. Desde o início de 1886, o quilombo do Jabaquara, na cidade de Santos, passou a ser considerado território livre. E era para lá que costumavam ir os fugitivos.
“Esses territórios livres desestabilizavam a ordem senhorial. Para não ver suas senzalas vazias do dia para a noite é que senhores de terra, em concílio, decidiram promover cerimônias públicas de concessão de contratos de liberdade”, explica Souza. “Isso aconteceu em diversas cidades paulistas, como Redenção da Serra, São Luís do Paraitinga, Pindamonhangaba, Taubaté e Caçapava.” Tudo antes da Lei Áurea.
Mas em um esquema muito vantajoso: o ex-escravizado, formalmente livre antes do 13 e maio, ainda estava “preso” ao trabalho com o antigo senhor — justamente por não ter para onde ir.
Normas locais antes de uma lei para o império
E de onde vem a autonomia para que localidades pontuais pudessem abolir os escravos antes mesmo de uma lei válida para todo o império? A Constituição de 1824 concedeu um peso administrativo para as províncias — e muitas delegaram autonomia para determinadas localidades. Conforme frisa o jurista e cientista político Paulo Bonavides (1925-2020) em seu livro História Constitucional do Brasil, houve uma reforma em 1834 que extinguiu o conselho de Estado e concedeu maior liberdade às assembleias provinciais.
Então, as províncias tinham autonomia semelhante aos atuais estados da federação para legislar sobre seu ordenamento interno. “Mas a lei no Brasil sempre foi de difícil aplicação. Mesmo com a Lei do Ventre Livre, vários escravos que nasceram livres continuaram sendo comercializados”, comenta o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre o período.
“No caso do Ceará, a data oficial da abolição é 1884, mas em 1886 ainda existiam escravizados no município de Milagres. É de se supor que ainda houvesse escravizados no Ceará até 1888 e que durante a abolição da escravidão nessa província eles ainda fossem comercializados ou explorados por seus senhores.”
A luta continua
Se está evidente que a abolição foi um processo, não uma data estanque, fica claro também que a falta de políticas de reparação a partir de 1888 foi decisiva para a condição que a população negra teria no país nas décadas seguintes – e até hoje.
“O racismo é estruturante em todas as regiões do Brasil. Mas o período do pós-abolição sem dúvidas foi marcante para uma nova etapa de exclusão racial e de aprofundamento das desigualdades no país. Os jornais do início do século XX continuavam evidenciando o uso de troncos e outros instrumentos de suplício nas fazendas de açúcar e café no país”, relata Souza.
Além da falta de políticas de inserção da população negra depois de 1888 – qualificando a mão de obra para as cidades que se industrializavam, por exemplo -, houve também um esforço institucional para enfraquecer o movimento negro e apagar a escravidão dos marcos urbanos das cidades.
“Antes da abolição, o movimento negro era muito forte, pelas irmandades, pelas associações de homens de cor, pelos grupos de operários. No processo de crescimento das cidades, há a destruição simbólica dos espaços negros, e isso ocorre em praticamente todas as cidades do Brasil”, afirma Reis. E isso continua acontecendo.
O pesquisador cita o exemplo do bairro da Liberdade, em São Paulo. Em 2018, quando se celebraram 130 anos da Lei Áurea, a estação de metrô passou a se chamar Japão Liberdade. “Não quer dizer que não seja importante a contribuição da população nipônica para a história de São Paulo, mas a partir do momento que você precede um nome que estava ligado à comunidade negra, você coloca em segundo plano novamente a memória negra na cidade. É um processo de apagamento sistêmico. E uma luta constante, contínua.”