Com violência doméstica em alta na pandemia, feminicídios crescem 22% no país
O Ligue-180, central nacional de atendimento à mulher criada em 2005, viu crescer em 34% as denúncias
Sete dias da semana, vinte e quatro horas por dia. Em todo o mundo, homens e mulheres se viram confinados por muito mais tempo juntos. A maior medida preventiva contra o coronavírus se tornou, para alguns, o gatilho para desencadear um ciclo de violência. No Brasil, o número de feminicídios cresceu 22,2% em março e abril de 2020 quando comparado com o mesmo período do ano passado, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O Ligue 180, central nacional de atendimento à mulher criado em 2005, viu crescer em 34% as denúncias.
A violência de gênero silencia vozes específicas e os suspeitos quase sempre são os próprios parceiros. “Em muitos dos nossos feminicídios o autor é preso em flagrante. Além de matar, ele sequer foge. Isso demonstra que o feminicida não é um ladrão, um traficante. Ele normalmente tem emprego, é bem visto na sociedade, vai à igreja, mas considera a mulher dele um objeto e a mata”, afirma Jamila Jorge Ferrari, delegada e coordenadora das Delegacias da Mulher de São Paulo.
Na Turquia, a youtuber Daniele Boggione percebeu uma mudança significativa nas últimas semanas: o número de denúncias recebidas de golpes, mas também de cárcere privado em seu canal, quase duplicou. Há anos, pela internet, ela ajuda brasileiras que mantêm relacionamentos abusivos com homens do Oriente Médio, violência que atinge mulheres de todas as classes sociais.
“Em um caso recente, Poliana (codinome) estava mantida presa em casa. Tinha que fazer almoço, jantar e depois voltava para o cárcere. Ela entrou em contato comigo e pediu socorro”, conta Danny.
Com o espaço aéreo fechado, Danny teve de pedir ajuda ao Itamaraty para conseguir um voo para o Brasil e, assim, ajudar a vítima a voltar ao Brasil. Até o voo sair, ela fez de tudo para que ela pudesse ficar calma. Poliana conseguiu voltar para casa.
Cinco anos da lei
O aumento da estatística acontece no mesmo ano em que a Lei do Feminicídio completa cinco anos. Desde o dia 9 de março de 2015, assassinatos de mulheres envolvendo violência doméstica e questões de gênero passaram a ser qualificados como crimes hediondos, com penas de até 30 anos.
O primeiro caso registrado como feminicídio no Estado de São Paulo foi o de Marcia Maria e Silva Germano Correa, costureira de 44 anos assassinada em Itupeva, no interior paulista, em 12 de abril.
“Eu ouvi os disparos, fui correndo para o local e nem pensei duas vezes. Quando eu cheguei, ela estava no chão toda ensanguentada. Ela estava perdendo o foco dos olhos, então a última coisa que ela viu, fui eu”, conta o filho Augusto Renato Silva Barbosa, de 29 anos.
A palavra feminicídio foi difundida no mundo pela socióloga sul-africana Diana Russell, que usou o termo pela primeira vez em março de 1976, em um tribunal internacional de crimes contra mulheres.
“Eu definitivamente notei que quando usado o termo chama a atenção das pessoas para os elementos misóginos do feminicídio. Isso destaca que é um crime de ódio, não é apenas um assassinato como outro qualquer”, afirma Daiana Russell.
Números
Com a lei, o crime que até então era pouco notificado pôde, a passos lentos, começar a ser mensurado. Mas, enquanto os números de assassinatos caem no país, os de feminicídio sobem. No ano passado, 1.304 mulheres foram vítimas de feminicídio, um aumento de 8% em relação a 2018. A CNN consultou os dados dos 26 estados e do distrito federal por meio da Lei de Acesso à Informação. Não há um levantamento oficial feito pelo governo brasileiro e o ainda deficiente enquadramento dos casos pode estar escondendo um quadro ainda pior.
Em Santo André, na Grande São Paulo, o projeto ‘E Agora José?’ lida com a ressocialização de agressores. Além de terem de respeitar uma medida protetiva, esses homens passam por um curso de reeducação.
“Eu lembro de um homem que disse que se não tivesse participado desse grupo, tinha matado a ex-companheira”, conta Flávio Urra, coordenador do programa.
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Iniciativas como essas atuam em paralelo ao poder público. Uma não anula a outra. Pelo contrário, todas são necessárias no combate à violência contra a mulher. Mas para tudo isso acontecer, é preciso investimento. No ano passado, o orçamento anual da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres teve uma queda de 57% em comparação com o ano anterior. De 70,5 milhões em 2018, o orçamento da secretaria passou para 30,1 em 2019.
“Não tem milagre. Não existe nenhuma política pública que vai ser implementada se não tiver recursos humanos e recursos financeiros pra garantir o básico do ferramental pra esse profissional de saúde, de segurança pública que está ali na ponta atendendo essa mulher”, afirma Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Atendimento a vítimas durante pandemia
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (10) o projeto de lei que estabelece medidas de combate à violência doméstica durante o estado de calamidade pública por causa da pandemia de Covid-19.
A proposta, que segue para sanção presidencial, estabelece como essenciais, ou seja, não podem ser suspensos, os serviços que prestam atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e a crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência em situação de violência.
O projeto também garante medidas protetivas e atendimento presencial para os casos mais graves e obriga a comunicação às autoridades, em até 48 horas, das denúncias de violência recebidas na esfera federal pela Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, o ligue 180, e pelo serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual, disque 100.
O texto prevê ainda que o governo federal faça campanha informativa sobre prevenção da violência e sobre os canais de denúncia disponíveis durante a pandemia.