Empresas já suspensas por voo irregular prestaram serviços para o poder público
Ao menos três delas receberam R$ 46 milhões do governo federal
Empresas que realizam centenas de voos todos os anos, tanto para clientes privados como para o poder público, já passaram por suspensões ou interdições cautelares de aeronaves por indícios de voo não autorizado, segundo documentos oficiais da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) obtidos pela CNN.
A Anac já suspendeu cautelarmente ao menos 14 empresas nos últimos dois anos, segundo dados obtidos pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A lista foi descrita da seguinte forma pela agência: “todos os operadores e pilotos suspensos cautelarmente por realizarem o TACA”. Taca é como é chamado o táxi-aéreo clandestino no setor.
Dessas, ao menos três tiveram contratos com órgãos do governo federal, que somam R$ 46 milhões, segundo o Portal da Transparência: A.R.T. Táxi Aéreo, Rico Táxi Aéreo e Rima — Rio Madeira Aerotáxi. No caso da Rima, o dono da empresa também é diretor de um sindicato de empresas do setor e mantem contratos com o governo federal.
A suspensão cautelar, segundo a Anac, é aquela usada quando são detectados “indícios de execução de voo de forma clandestina”, visando “evitar risco iminente à segurança de voo, à integridade física de pessoas, à coletividade, à ordem pública, à continuidade dos serviços prestados ou ao interesse público”. Esse tipo de prática não é considerado uma punição, mas uma forma de evitar riscos. Ações punitivas só passaram a ser aplicadas a partir de uma resolução de 2018. Antes disso não havia possibilidade de um processo de suspensão punitiva ou cassação, por exemplo.
É possível que empresas tenham aeronaves que podem oferecer o serviço de táxi-aéreo e outras que não podem. Uma forma de garantir a legalidade da operação é checando o prefixo da aeronave que será usada no site da Anac.
Leia todas as reportagens desta série sobre voos irregulares:
Interdição de aeronaves clandestinas cresce mais de cinco vezes desde 2017
Polícia do MS descobre esquema de manutenção clandestina de aeronaves
Em processo de cassação, empresa de táxi-aéreo continua operando com outro nome
Piloto de celebridades é investigado por suspostos voos irregulares
Parlamentares usaram aeronaves sem autorização para táxi-aéreo
Empresas de diretor e conselheiro de sindicato de táxi-aéreo já foram suspensas
Quase metade das aeronaves do país está impedida de voar por irregularidades
Podcast com bastidores das reportagens
A empresa A.R.T. Táxi Aéreo Ltd firmou quatro contratos com o governo federal e, de acordo com os dados do Portal da Transparência, já recebeu R$ 20,1 milhões em recursos públicos, entre 2015 e 2019 — o maior deles, com o Ministério da Saúde, de R$ 5 milhões.
Procurada, a pasta informou que a liberação do pagamento é feita após “verificação dos requisitos legais” e que, caso encontre irregularidades, “podem ser tomadas as medidas legais necessárias”. É importante destacar que, em caso de irregularidades em voos pagos, a legislação trata quem contrata como vítima, e não como responsável.
Um documento da Superintendência de Ação Fiscal da Anac do ano passado aponta que a A.R.T. foi suspensa cautelarmente por indícios de prática de transporte irregular de passageiros em julho de 2019. No parecer, a Anac disse que o ilícito cometido pela empresa é “inaceitável partindo-se de um operador aéreo certificado, que detêm todo o conhecimento da legislação vigente”. Citou ainda “o risco iminente que a continuidade das atividades envolvendo a aeronave oferece à segurança de voo”.
A suspensão cautelar aconteceu entre 5 e 11 de julho de 2019, quando a A.R.T. assinou um termo de cessação de conduta. No documento, a A.R.T. afirma se compromete a “não mais realizar o transporte aéreo público não autorizado ou o transporte aéreo público com aeronaves fora das especificações operativas”.
Segundo a própria Anac, não se tratava de caso isolado e houve “repetição da conduta”, o que “caracteriza prática contumaz da empresa”, já que outro episódio teria sido registrado no ano anterior. O fato de que o piloto da aeronave sancionada, Claudinei Antunes Coimbra, ser também dono da empresa, “confere maior gravidade à conduta constatada”, escreveu a agência.
Questionada sobre este caso específico, a Anac afirmou que há um processo administrativo em curso sobre a A.R.T. que poderá culminar “na lavratura de autos de infração, entre outras medidas punitivas, conforme o que for constatado”. A agência informou ainda que a A.R.T. já foi multada em R$ 64 mil em 2017 por irregularidades na prestação de serviço de transporte aéreo, mas, na época das sanções, “não havia previsão legal para aplicação de cassação ou suspensão por táxi-aéreo clandestino”. A agência informou que a empresa já foi multada seis vezes por irregularidades desde 2013, sendo que em quatro ainda há recurso em análise.
A A.R.T., em nota, negou irregularidades. A empresa diz que o voo foi privado e que “não pratica de forma contumaz irregularidades que ferem a legislação aeronáutica em vigor, tanto é que se encontra autorizada pela agência reguladora — Anac — a realizar serviços aéreos”. Diz ainda que a assinatura do termo de cassação de conduta não é uma confissão de culpa, já que o documento é obrigatório e “deve constar no processo para que o mesmo seja arquivado”.
‘Caso isolado’
A Rico Táxi Aéreo Ltda, também segundo o Portal da Transparência, já recebeu R$ 15,7 milhões do governo federal, em quatro contratos firmados.
Segundo a Anac, a empresa praticou “prestação de serviço de transporte remunerado de passageiros, sem a devida autorização” em 30 de agosto de 2019, ao transportar uma cantora gospel e a banda dela no Amazonas. Por esse motivo, teve o registro suspenso no dia 3 de setembro, também de forma cautelar. No mês seguinte, um representante da empresa admitiu o caso como um “erro”, segundo a Anac registrou oficialmente. Após se comprometer a não mais fazer este tipo de prática, a suspensão foi revogada.
A Rico, em nota, afirmou que o episódio em questão “é assunto de ação judicial” e que se tratou de “caso isolado”. A empresa disse que a aeronave do caso havia sido aprovada em vistoria junto ao Registro Aeronáutico brasileiro e que, seis dias antes da interdição, havia “perfeita e adequada regularização da aeronave (…) faltando, tão somente, a publicação da outorga permitindo a operação da aeronave como serviço de transporte aéreo público não-regular”. Disse ainda que “não há que se falar em prática de Taca, tendo em vista que sempre procedeu com as medidas necessárias para o regular serviço de transporte aéreo prestado sendo, o presente, um caso isolado e muito bem solucionado que não condiz com a atuação da empresa”. Taca significa transporte aéreo clandestino, como são conhecidos os voos irregulares.
Acidente e morte de servidor
Casos analisados pela reportagem mostram ainda um acidente em que houve morte de um servidor público. Em 2013, uma aeronave da empresa Construtora e Transportadora Pioneiro Ltda (Cotrap), sem licença para fazer táxi-aéreo, fez transporte para funcionários do Instituto de Pesos e Medidas do Amazonas (Ipem-AM), autarquia ligada ao governo estadual, e caiu em Manaus, deixando seis pessoas mortas — sendo uma delas um funcionário do instituto. Em seu relatório de fiscalização sobre a legalidade do voo, a Anac afirmou que a aeronave contrariou “todos os itens dos Regulamentos Brasileiros de aviação civil, colocando em risco, desnecessária e repetidamente, passageiros, tripulantes e pessoas em solo”.
Segundo explicou à reportagem o sócio da Cotrap, Vitor Marmentini, os funcionários do Ipem compraram o bilhete de passagem de outra empresa, a Apuí Táxi Aéreo, da qual ele também é sócio, mas acabaram embarcando na aeronave da Cotrap devido a um atraso com o voo comprado. Ele defende que não houve, portanto, operação irregular, já que o voo pago não foi realizado, mas sim o outro oferecido por “cordialidade”. À Anac, a Cotrap disse que sequer tinha conhecimento dessa substituição, feita “por vontade unilateral do comandante”, antes do acidente. A Anac multou administrativamente a empresa em R$ 10,5 mil.
As razões da queda da aeronave não foram esclarecidas. O relatório final do Centro de Investigações de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa) informou que, “em razão de o incêndio ter consumido praticamente toda a aeronave, durante a ação inicial não foi possível encontrar evidências que indicassem falha mecânica ou mau funcionamento de algum sistema da aeronave”. Sobre o piloto, o documento relatou que “nenhuma evidência de natureza médica foi encontrada associada com o acidente, de acordo com o histórico de inspeções de saúde recente”.
O relatório também aponta que “não havia um sistema formal da organização para selecionar, acompanhar e avaliar o desempenho dos profissionais”. Disse ainda que o piloto passava por problemas à época, tanto na empresa como familiares. “Se houvesse uma sistemática de acompanhamento dos tripulantes na empresa, as vulnerabilidades e suscetibilidades decorrentes do meio social e do clima de instabilidade nesta, que supostamente estavam afetando o desempenho do tripulante, poderiam ter sido identificadas.”