Governos gastaram R$ 13 bi em contratos contra Covid-19, a maioria sem licitação
Estados e municípios concentram quase 70% das aquisições e especialistas veem risco de corrupção e gasto ineficiente
O governo federal, os estados e os municípios brasileiros já gastaram ao menos R$ 13 bilhões em contratações e aquisições de materiais para o enfrentamento do novo coronavírus. Desses, 80% são compras sem licitação, modalidade de compra que passou a ser permitida com maior frequência dada a urgência da pandemia.
Os dados mais atuais são de 10 de julho. Os números foram tabulados pela CNN a partir de uma base da Controladoria-Geral da União (CGU).
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Os dados da CGU analisados pela CNN reuniram informações do governo federal, dos estados e dos municípios, coletados em diários oficiais e portais de transparência. É possível que o valor das contratações e compras seja ainda maior, já que muitas dessas aquisições podem ter ficado de fora dos portais.
A maior parte dos gastos veio dos estados (R$ 6,2 bilhões), seguido pelo governo federal (R$ 4,1 bilhões) e municípios (R$ 2,5 bilhões). Os estados que mais registraram contratos foram Minas (1,6 mil), Rio de Janeiro (1,2 mil) e Paraná (1 mil). Já se considerado o valor total, os maiores gastos foram em São Paulo (R$ 1,4 bilhão), Rio de Janeiro (R$ 1,3 bilhão) e Maranhão (R$ 1,1 bilhão).
Compras sem licitação durante a pandemia foram autorizadas por uma lei sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em 6 de fevereiro, com essa e outras medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do novo coronavírus.
Uma das principais críticas de especialistas tem sido a falta de centralização por parte do governo federal nessas compras, o que levou estados e municípios a buscarem produtos com preços que variam e com empresas desconhecidas e até sem conhecimento técnico da prestação dos serviços. Um desfibrilador, por exemplo, custou R$ 45,3 mil em uma compra e R$ 8 mil em outra, uma diferença de 567%.
“Como o mundo inteiro entrou na mesma demanda de insumos e equipamentos, precisávamos de uma orientação nacional para ter escala e organização direta com o mercado. Quando a União não assume esse papel, há uma fragmentação. O desvio é maior, cria-se insegurança jurídica e menor capacidade logística de distribuição dos insumos”, diz a professora de finanças públicas da Fundação Getulio Vargas Élida Graziane Pinto.
Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), a pasta da saúde gastou somente 29% da verba destinada ao combate ao novo coronavírus.
A própria CGU já detectou contratos que considera arriscados: ao menos 62 deles foram firmados com pessoas jurídicas criadas neste ano e 88 microempresas que assinaram contratos de valores considerados altos – um deles chega a R$ 1 bilhão, para compra de respiradores.
O órgão também detectou que 550 contratações são com fornecedores cujo capital social é inferior a 10% do total contratado.
As fraudes e irregularidades em alguns desses contratos viraram alvo da Polícia Federal por irregularidades. Levantamento da CNN identificou que já houve operações da corporação em ao menos 14 estados, além do Distrito Federal: Amapá, Rio de Janeiro, Pará, Ceará, Pernambuco, Tocantins, Maranhão, Pará, Rio Grande do Sul, Rondônia, Acre, Amazonas, Piauí e Sergipe. Alguns estados já foram alvo mais de uma vez, como Amapá (7), Rio de Janeiro (5), Pernambuco (4) e Pará (3).
As operações apontaram indícios de superfaturamento na compra de equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas, respiradores, entre outros. Até governadores já foram alvos de operações, caso de Wilson Lima (Amazonas) e Helder Barbalho (Pará).
A professora da FGV defende que o governo federal já tem conhecimento sobre esse tipo de prática e cita o exemplo da compra de livros pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que opera a logística e o remanejamento dos materiais para todas as escolas públicas do país cadastradas no censo escolar.
“Uma coordenação nacional permite maior transparência, facilita o controle e bloqueia a capacidade do mercado de fazer sobrepreço e constranger os órgãos públicos. O plano de contingência da Covid-19 foi criado em fevereiro e já falava da necessidade de adquirir respiradores e estruturar leitos de UTI. Era possível ter feito esse planejamento”, diz.
Em um dos capítulos do plano, o Ministério da Saúde descreveu o nível de emergência, que aconteceria após a transmissão local do primeiro caso de Covid-19 no país – isto ocorreu em março. Ao chegar nessa situação, as ações se dividiriam em duas fases: contenção e mitigação. É na fase de contenção que estava prevista a compra de materiais.
“Na fase de contenção, a atenção à saúde possui mais ações do que a vigilância, compra e abastecimento de EPIs e definições para a rede de urgência e emergência”, diz o documento. “Os estoques dos EPIs preconizados também devem ser checados e aquisições emergenciais podem ser acionadas, caso necessário”, descreve o plano.
O Ministério Público de Contas junto ao Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a recomendar, em junho, a adoção de uma plataforma digital centralizada para as compras, com ou sem dispensa de licitação, nas aquisições públicas para enfrentamento da Covid-19.
O órgão sugeria uma ferramenta com funcionalidades “que possibilitem a comparabilidade de preços, inclusive de forma gráfica, com o objetivo de orientar os gestores e racionalizar o processo de tomada de decisão por parte dos responsáveis pelas compras com recursos de natureza federal, além de promover a transparência ativa.”
Em nota, o Ministério da Economia informou que, para agilizar os processos de compras durante a pandemia, editou medida provisória que possibilita a compra conjunta entre órgãos e entidades nas hipóteses de dispensa de licitação, por meio de sistema de registro de preços (SRP).
Destacou também que já existe a obrigatoriedade de realização de pregão eletrônico por estados e municípios quando os recursos forem decorrentes de transferências voluntárias da União, para ampliar eficiência e transparência.
O governo também afirmou que o disponibiliza seu sistema de compras de forma gratuita, o Comprasnet, e que todos os processos de compras feitos pelo sistema estão disponíveis para o controle social na internet.
Já o Ministério da Saúde afirmou que “condena qualquer desvio de recursos públicos que devem ser utilizados para salvar vidas”, que cabe aos gestores seguirem a legislação vigente e a conduta esperada de um servidor público.
Afirma que a pasta auxilia estados e municípios a realizarem suas compras quando, por exemplo, falta produto no mercado e que, para dar transparência às ações, divulga informações das compras neste site.