Caos da pandemia no Brasil serve de laboratório para corrida global às vacinas
País tem combinação incomum e atraente para pesquisa: taxa altíssima de transmissão e centros de pesquisa respeitados internacionalmente
A disseminação da pandemia do novo coronavírus no Brasil fez com que pesquisadores e empresas farmacêuticas olhassem para o gigante sul-americano para o desenvolvimento de uma vacina.
Com mais de dois milhões de casos, o Brasil é um dos poucos países a testar vacinas experimentais contra a Covid-19. Tem,de fato, uma combinação incomum e atraente para a pesquisa: uma taxa altíssima de transmissão e, ao mesmo tempo, centros de pesquisa respeitados internacionalmente e um sistema de saúde pública com experiência na criação e distribuição de vacinas.
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De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), em 14 de julho 163 vacinas contra a Covid-19 estavam sendo desenvolvidas em todo o mundo, e 23 delas passavam por ensaios clínicos envolvendo seres humanos. Porém, apenas duas atingiram a fase 3 (a última etapa científica antes da aprovação da comercialização), que requer ensaios em larga escala com milhares de indivíduos para avaliar a eficácia e a segurança da vacina.
Os dois testes da fase 3 incluirão o Brasil e estão programados para envolver pelo menos 14 mil brasileiros. Segundo institutos brasileiros consultados pela CNN, também estão em andamento negociações avançadas para lançar mais três testes de vacinas no país.
Por que testar no Brasil?
Enquanto o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), vem subestimando o vírus repetidamente – chamando-o de “gripezinha” – e sendo criticado por especialistas por sua falta de disposição em implementar medidas de contenção mais fortes, as pesquisas de vacinas no país podem representar uma virada à medida que o hemisfério norte se prepara para uma possível segunda onda no inverno.
O técnico de enfermagem Julio Barbosa, de 42 anos, que já perdeu cinco colegas para o novo coronavírus, é um dos voluntários que estão participando de um dos testes de vacinação em massa, realizados pela Universidade de Oxford e pela empresa farmacêutica AstraZeneca. O teste da fase 3 envolverá 50 mil voluntários em todo o mundo.
Depois de tomar a injeção, Barbosa disse que teve febre baixa e dor muscular leve, que desapareceram na manhã seguinte. No teste, que envolve principalmente profissionais de saúde, metade dos voluntários está recebendo a vacina contra a Covid-19 e a outra metade uma vacina contra meningite, que pode provocar sintomas semelhantes.
“Esta vacina tem que sair logo para que a gente possa fazer uma pausa no hospital. Não parei de trabalhar nos últimos quatro meses”, disse o técnico de enfermagem à CNN logo depois de receber uma injeção em uma instalação médica erguida em São Paulo para a pesquisa.
A empresa chinesa de biotecnologia Sinovac também está iniciando um teste de fase 3 no Brasil, em colaboração com o Instituto Butantan, em São Paulo. Sua vacina experimental CoronaVac utiliza células virais inativadas para estimular uma resposta imune em pacientes. Os testes começarão na próxima segunda-feira (20) com 9 mil voluntários em cinco estados brasileiros, mais a capital, Brasília.
Assim como a vacina de Oxford, a CoronaVac será administrada principalmente em profissionais de saúde. Segundo Ricardo Palacios, diretor médico de pesquisa do Butantan, o instituto também está em “conversas muito avançadas com outras duas vacinas em desenvolvimento” e em tratativas com dezenas de empresas farmacêuticas sobre os estudos de pesquisa da Covid-19.
“Todos os fabricantes do mundo sempre vão procurar um lugar onde haja alta transmissão para atestar a eficácia da vacina. Mas a taxa de infecção não é suficiente. Um país precisa ter instituições que trabalhem com protocolos científicos, regulatórios e éticos internacionais para realizar os testes”, afirmou à CNN.
O Brasil é exatamente esse lugar, de acordo com Natalia Pasternak, pesquisadora do laboratório de desenvolvimento de vacinas do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (Universidade de São Paulo). A pesquisadora ressaltou que o Brasil possui instalações avançadas de logística e fabricação, em comparação com muitos outros países com transmissão desenfreada da Covid-19, como o México.
“É necessário ir para um país onde a doença circula fortemente, mas onde também existam institutos e profissionais qualificados para realizar os testes. O Brasil oferece esses dois fatores cruciais”, afirmou.
Mais de 76 mil pessoas morreram no Brasil devido ao novo coronavírus. A Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) alertou que os números de casos no país de 211 milhões de pessoas provavelmente não atingirão o pico até meados de agosto.
Espera-se que os resultados preliminares dos ensaios sejam divulgados até o final do ano. Eles devem ajudar a reduzir o tempo em que as vacinas em estágios iniciais de desenvolvimento precisarão para serem desenvolvidas.
Acesso a futuras vacinas
O “objetivo número um” do sistema de saúde do Brasil é ter a liberdade de produzir uma vacina, segundo explicou no mês passado o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, ao Congresso. “Não podemos ficar de fora”, disse ele.
Como parte dos acordos para sediar os testes, o Brasil espera poder produzir as duas vacinas em casa se elas forem eficazes, em vez de comprá-las no exterior – um benefício fundamental para o país e até para os seus vizinhos.
O Instituto Butantan, que produziu 100 milhões de vacinas contra a gripe no ano passado, está se preparando para produzirum número semelhante de doses da CoronaVac da Sinovac, se a vacina se mostrar eficaz.
“É necessário ter uma estrutura pré-existente já instalada, porque o Brasil ajudará a fazer outros acordos de vacinas. A América Latina possui poucas fábricas de vacinas. O Brasil precisará exportar para outros países depois de atender seu sistema de saúde pública”, afirmou Palacios, diretor médico do Butantan.
O complexo de Biomanguinhos, no Rio de Janeiro, de propriedade da Fundação Oswaldo Cruz, também está se preparando para produzir 70 milhões de doses da vacina criada pela Universidade de Oxford no próximo ano, e espera que as negociações em andamento entre o governo brasileiro, Oxford e a AstraZeneca sejam concluídas até lá.
Enquanto isso, são aguardados os resultados das próprias experiências do governo brasileiro com distribuição em massa de hidroxicloroquina. Os testes médicos não demonstraram a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento para o novo coronavírus.
No entanto, prefeitos, médicos e empresas de seguros médicos do país continuam a distribuir o chamado “Kit Covid” (composto por hidroxicloroquina, o antibiótico azitromicina, o antiparasitário ivermectina, zinco e vitamina C) nas cidades do regiões sul, centro-oeste e nordeste do país. Com exceção dos resultados conflitantes sobre a hidroxicloroquina, nenhum desses tratamentos demonstrou ajudar o combate à infecção pelo novo coronavírus, isoladamente ou em combinação.
Na semana passada, após receber o diagnóstico de Covid-19, Bolsonaro divulgou um vídeo em que elogiava o remédio de eficácia não comprovada, engolindo um comprimido e sorrindo para a câmera. “Está dando certo para mais uma pessoa. Eu confio na hidroxicloroquina. E você?”, disse o presidente.
Mais testes e dados no futuro
Em breve, mais brasileiros poderão ser recrutados para testes de outros possíveis tratamentos relacionados ao novo coronavírus.
A Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), responsável pela realização do teste da vacina de Oxford, iniciado em 20 de junho no Brasil, diz que em breve anunciará um teste conjunto com o Instituto Nacional Italiano Lazzaro Spallanzani, que participou dodesenvolvimento da vacina europeia contra o vírus ebola.
O instituto italiano está atualmente finalizando os testes da Fase 1 de sua vacina contra a Covid-19. À medida que a curva de infecção diminuía na Itália, o instituto começou a considerar o Brasil para os testes de Fases 2 e 3, de acordo com a reitora da Unifesp, Soraya Smaili.
“Esperamos começar no final de agosto. Vamos ver onde as infecções serão mais proeminentes no país para fazer a seleção dos voluntários, porque elas parecem estar diminuindo no Rio deJaneiro e em São Paulo”, contou Smaili.
Para Barbosa, o técnico de enfermagem, desenvolver qualquer vacina bem-sucedida no Brasil seria uma vitória pessoal. “Eu tenho sonhado com isso. A primeira coisa que eu faria é ir no samba e abraçar meus amigos. Eu ia lamber até a cerveja que pingasse no balcão”, brincou.
(Texto traduzido, leia o original em inglês)