À Justiça, Google admitiu que dados de localização não são precisos
Combate ao coronavírus acendeu debate sobre o uso de dados para monitorar se as pessoas estão ou não cumprindo as medidas de quarentena
O combate ao coronavírus acendeu o debate sobre o uso de dados para monitorar se as pessoas estão ou não cumprindo as medidas de quarentena e obedecendo às restrições de circulação. Gigantes da tecnologia como o Google estão usando dados de geolocalização para medir, por exemplo, se houve redução do fluxo em parques e locais de trabalho. O uso de dados é controverso e gera um debate sobre a possibilidade de invasão de privacidade e, não raro, vira disputa judicial.
A CNN obteve acesso a um documento encaminhado pelo Google à Justiça do Rio de Janeiro no âmbito das investigações do caso da morte da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em março de 2018. Nele, a empresa aponta problemas no uso do histórico de localização – justamente a tecnologia usada para produção das informações de auxílio para o novo coronavírus.
O Google recorreu de decisões do Tribunal de Justiça do Rio que determinaram à empresa o compartilhamento de dados pedido pelo Ministério Público fluminense. No texto, a empresa alega que “que a tecnologia não foi desenvolvida para identificar e levantar informações de usuários a partir de coordenadas geográficas, o que conduz a problemas e podem tornar a produção dos dados requisitados severamente randômica”.
A companhia também afirma que o monitoramento de pessoas está sujeito a erros, porque a localização de pessoas está sujeita a três tipos de fontes: wifi, GPS, e torres de telefonia. E que isto pode levar à conclusão de que usuários estejam em um lugar, mas, na realidade, estes estão a uma “distância considerável”.
Essa manifestação do Google é uma reação a um pedido do Ministério Público para identificar quais usuários passaram pelo pedágio da via Transolímpica na Zona Oeste do Rio no dia 2 de dezembro de 2019. O MP do Rio identificou que o carro usado pelos réus acusados da morte de Marielle Franco, os ex-PMs Ronnie Lessa e Anderson Gomes, passou pelo local naquele dia, nove meses depois do crime – foi a última vez que o veículo foi visto.
Monitoramento é questionado
O uso de dados para monitoramento das pessoas, seja para investigações, ou no caso do coronavírus, é um tema controverso. De acordo com Ivar Hartmann, professor e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio, o Brasil já possui regras para o uso de dados pessoais para investigações a fim de evitar abusos.
Segundo ele, as informações sobre a movimentação de pessoas feitas pelo Google são positivas para o combate ao coronavírus, mas a falta de uma Lei de Proteção de Dados no país pode trazer riscos. “O momento é de emergência social, então as pessoas estão mais dispostas do que antes a abrir mão de certos aspectos de seus direitos constitucionais em prol do combate de um problema comum. Mas diminuir a privacidade das pessoas me parece que não é uma boa ideia e nem uma boa saída”.
Para Mariana Valente, diretora do InternetLab, centro de pesquisa em direito e tecnologia, os dados liberados pelo Google no contexto do coronavírus são anônimos, mas, ainda assim, é necessário que seja dada transparência a coleta de dados e como eles são agregados. “Dados são úteis para contenção da pandemia e para investigações criminais, mas é necessário pensar amplamente na privacidade dos cidadãos. Está garantida? É isso o que está em jogo agora”, afirmou Mariana.
Professora de Estratégia e Inovação da Coppead, da UFRJ, Paula Chimenti é reticente com relação a alegação do Google de que os dados compilados são apenas os de quem habilita a localização do celular.
“As pessoas não tem noção de que as empresas são bilionárias a partir dos dados que elas mesmo produzem, a partir de pesquisas, fotos postadas, lugares visitados. O debate sobre o uso dos dados é importante para discutir que sociedade a gente quer: vale a pena trocar suas informações por serviços gratuitos de busca, e-mail?”, ponderou a professora.
A promotora Simone Sibilio, do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado do MP do Rio, defendeu o uso dos dados na investigação do caso Marielle.”O crime se sofisticou, está digital. Não podemos investigar no analógico”, afirmou. Segundo ela, o pedido não viola informações individuais.
“O que pedimos não viola a privacidade das pessoas. Não queremos o nome, e sim o código dos celulares que passaram por um determinado local. Se um suspeito for identificado e comprovarmos com outras fontes de prova, aí sim passamos a investigar”.
O Google informou que os dados produzidos para auxiliar no combate ao novo coronavírus são todos anônimos e que não há riscos à privacidade. Segundo a companhia, os dados coletados são os dos celulares que deixam a função de histórico de localização habilitado.
A empresa não respondeu aos questionamentos da CNN sobre os problemas apontados por ela própria no uso do serviço de geolocalização. O MP do Rio e o Google são adversários em duas ações sobre o uso de dados para investigação do caso Marielle Franco que estão tramitando no Superior Tribunal de Justiça.