Da reabilitação aos dois recordes mundiais: Como Maya Gabeira chegou ao topo
A surfista brasileira teve que lutar não só para voltar a surfar depois do grave acidente, em 2013, mas também para que seu recorde mundial fosse reconhecido
Enquanto Maya Gabeira enfrenta uma onda de 23 metros, dois pensamentos passam por sua mente. O primeiro: “Por que eu vim parar aqui?” Depois, o segundo: “Onde está minha mãe?”
Para quem assistia, Maya parecia uma partícula contra uma enorme massa de água. Curvada e agachada em sua prancha, ela atravessa o mar em uma velocidade assustadora enquanto a onda avança atrás dela.
“Foi super, super, super rápido”, disse a surfista brasileira à CNN Sport ao relembrar as sensações de surfar aquela onda. “Escutei um barulho muito alto quando ela quebrou atrás de mim, o mais alto que já ouvi em uma quebra de onda perto de mim, com certeza. Acho que esse barulho sempre vai ficar na minha cabeça.”
A onda que Maya pegou na Praia do Norte, em Portugal, em fevereiro do ano passado, foi a maior que alguém surfou naquela temporada e também a maior já surfada por uma mulher. A onda de 22,4 metros ultrapassou a de 20,7 metros, recorde anterior estabelecido também por Maya, em 2018.
Mas os números e os vídeos daquele dia contam apenas parte da história.
Antes de bater recordes mundiais, Maya passou por três cirurgias de coluna e quase cinco anos de cuidadosa reabilitação, tendo quase se afogado, em 2013, na mesma praia em que alcançou seus dois recordes.
O acidente aconteceu quando a surfista bateu naquela que foi a maior onda que já surfou. Ela quebrou o tornozelo e ficou inconsciente, ficando presa nas águas turbulentas antes que seu piloto de jet ski, o colega surfista Carlos Burle, pudesse ajudá-la a ir para a praia para a ressuscitação cardiopulmonar.
“Muitos médicos me mandaram parar por causa das dificuldades que tiveram para lidar com a minha coluna e por causa das dúvidas sobre qual seria o impacto do esporte de alto nível na minha saúde no futuro”, diz Maya ao relembrar os anos de recuperação.
O fato de ela ter conseguido retornar ao surfe de ondas grandes e quebrar recordes é uma prova da resiliência da atleta de 34 anos.
Em 2015, mudou-se para Nazaré, uma vila de pescadores a norte de Lisboa, onde fica a Praia do Norte. Após o acidente, ela começou a ver o esporte sob uma perspectiva diferente.
“Isso me abateu muito”, diz Maya. “Me mostrou que eu não tinha tudo sob controle e que eu precisava melhorar. Mas, mais do que isso, realmente me deixou distante das conquistas, o que é engraçado, porque eu consegui dois recordes mundiais depois disso, mas essa nunca foi a prioridade.”
‘Era preciso que uma mulher fizesse isso’
Maya foi dançarina entre os cinco e os 12 anos antes de começar a surfar. Apesar de vir de uma família sem conexão com esportes aquáticos, ela rapidamente se viciou.
“Sempre pensei, desde o início, que o surf era um esporte muito viciante”, diz ela. “O estilo de vida e as sensações, os sentimentos, o desafio e o fato de o mar ser sempre diferente, a onda sempre diferente…”, diz a brasileira.
“Admirei os caras que estiveram aí nos grandes dias, admirei a coragem deles e pensei que era algo que eu gostaria de ver mais retratado nas mulheres”
“Eu acho que, inconscientemente, isso realmente me motivou. Eu senti que precisava haver uma mulher fazendo isso. Eu queria ser essa pessoa.”
Aos 17 anos, Gabeira trocou o Brasil pelo Havaí para seguir a carreira de surfista. O esporte ainda leva a brasileira a viajar o mundo (ela está se preparando para viajar à Indonésia), mas é Nazaré que ela chama de casa.
Quando a previsão é de ondas grandes, surfistas de todos os cantos do mundo vão a Nazaré. Foi lá que o brasileiro Rodrigo Koxa bateu o recorde da maior onda já surfada, em 2017, deixando para trás o americano Garrett McNamara, que também havia conquistado seu recorde em Nazaré.
“É muito difícil a espera em um dia muito especial, o nervosismo se acumula e dá para sentir realmente a energia maluca que isso cria”, diz Gabeira. “Você sente a energia, todos se organizando e olhando os mapas, e há toda aquela discussão sobre quem foi o maior de todos os tempos. Isso é algo que me deixa bastante nervosa, então tenho que trabalhar em mim esse acúmulo de energia.”
Nervosismo, excitação e medo são impulsos que Maya conhece bem. Eles são ingredientes essenciais do surf de ondas grandes, uma modalidade que pode envolver esperas longas e incertas até que as ondas se materializem.
“Tem o fator medo”, diz Gabeira. “(Um surfista de ondas grandes) tem que ser alguém que quer ser desafiado, que quer navegar nesse lugar de medo, estar com medo e lidar com o medo; alguém que gosta do oceano naquele estado bruto.”
Isso não quer dizer que Gabeira seja imune a esse sentimento. Ela diz que tem mais medo hoje de pegar ondas grandes do que jamais teve. “É muito mais fácil não ficar com tanto medo quando você não viu o suficiente”, explica ela.
“Depois de ter visto e vivido de tudo, e visto coisas darem errado com outros atletas, todos os riscos, você começa a perceber que é preciso se desafiar. É muito bom quando você está em uma posição onde tudo está alinhado e você pega a maior onda da sua vida.”
Viver em Nazaré garantiu a Maya um sentimento de pertencimento àquele ambiente sempre que ela entra na água.
Durante seu mais recente recorde mundial, ela diz que se sentiu calma e com os pés no chão ao pode começar o dia em sua própria casa: “Acordar da minha própria cama, com meus cachorros, comer a mesma coisa e ter o luxo de me sentir em casa, fazendo o que eu faço todos os dias — eu tinha um cenário realmente confortável ao meu redor.
“Essa foi também uma das razões pelas quais me mudei para cá, porque pensei que tinha tantas desvantagens na minha recuperação que pelo menos precisava da vantagem de me dar essa confortável sensação de lar ao surfar na Nazaré.”
Lutando por reconhecimento
Surfar em ondas grandes representa apenas metade da batalha da brasileira. Depois de pegar a onda de 20 metros em 2018, um longo período se seguiu até que o recorde fosse confirmado. Somente com o lançamento de uma petição online, que acumulou mais de 18 mil assinaturas, ela conseguiu persuadir a World Surf League (WSL) e o Guinness World Records (GWR) a estabelecer uma categoria feminina para a maior onda surfada.
Na época, Maya havia viajado para a sede da WSL, em Los Angeles, e recebeu a promessa que haveria apoio para a criação de uma categoria feminina. Conforme os meses se passaram e seus e-mails continuaram sem resposta, ela começou a pensar que seus esforços teriam sido em vão.
“Achei que o trabalho duro seria voltar e surfar uma onda enorme”, diz ela.
“E então descobri que era igualmente desafiador tornar uma prioridade para a WSL e para o Guinness Book estabelecer a categoria feminina.
NEW RECORD: Largest wave surfed – unlimited (female) – 73.5 foot (22.4 metres). Congratulations to Brazil's Maya Gabeira ?????????
?? @wsl / Pedro Miranda pic.twitter.com/I71oqKYadS
— Guinness World Records (@GWR) September 10, 2020
“Primeiro, você leva para o lado pessoal e pensa: ‘Por que isso está acontecendo comigo?’ E então você percebe que alguém precisava se preocupar tanto e lutar para que isso acontecesse. Acontece que precisou ser eu. Foi péssimo que fosse eu, porque, às vezes, parecia pessoal, humilhante, especialmente depois de um quase afogamento. Mas, no final do processo, comecei a perceber que havia uma mudança.”
A GWR não respondeu imediatamente a um pedido de comentário da CNN sobre o caso, mas um porta-voz da WSL disse: “Antes de 2018, os prêmios WSL Big Wave para as maiores ondas do ano eram categorias de gênero aberto, ou seja, homens e mulheres eram julgados em conjunto”.
Como a decisão sempre foi combinada entre homens e mulheres antes da apresentação de Maya em 2018, o recorde mundial de Maya em 2018 foi “uma determinação especial da maior onda já surfada por uma mulher e o primeiro recorde de seu tipo, que estabelece o padrão para a categoria daqui para frente”, disse o representante da WSL.
“Como resultado, o julgamento teve que abranger toda a história do esporte, avaliando todos os recordes mundiais em potencial até aquele ponto. A WSL tem trabalhado de perto para garantir que as ondas sejam medidas e julgadas apropriadamente.”
Medir as maiores ondas do mundo é um processo complicado.
Para confirmar o último recorde de Gabeira, especialistas revisaram as imagens da prova e usaram cálculos científicos baseados em coordenadas, a altura da surfista e o comprimento da prancha para determinar o tamanho da onda.
Depois de surfar sua primeira onda de quebra de recorde em janeiro de 2018, Maya levou oito meses para que o recorde fosse verificado e a categoria feminina fosse estabelecida. Todo o processo, diz Gabeira, foi “terrível”.
“Tive a ideia de fazer uma petição e pressioná-los publicamente, o que funcionou muito bem. Foi um pouco estressante para mim me expor dessa forma…mas funcionou.”
Estar vulnerável e abraçar o desconhecido faz parte da vida de Maya como surfista; os medos e as emoções que vêm com o esporte continuam a ser um fascínio.
“Sempre serei desafiada por esse duplo padrão”, diz ela. “De ter muito medo e depois também sentir que ainda quero fazer parte do esporte, ainda quero estar na água e ainda quero ver aquelas ondas gigantes”.
(Texto traduzido. Leia o original em inglês).