De Cruella a Pantera Negra: filmes de origem dão complexidade a vilões e heróis
Estúdios mostram como personagens se tornaram quem são e ajudam espectador a saciar curiosidade sobre causas para ações de seus ídolos
Como um herói conquista seus superpoderes? Por que o vilão se tornou tão diabólico? Essas são perguntas para as quais somente fãs de HQs – e de fábulas – tinham respostas após mergulhar nesses universos por meio de livros, quadrinhos ou antigas séries. Mas um filão lucrativo em franco crescimento, o chamado ‘filme de origem’, vem trazendo explicações para um público bem mais amplo. E fazendo muito sucesso.
Novo sucesso da Disney, ‘Cruella’, em cartaz nos cinemas e disponível na plataforma de streaming Disney+, faz parte dessa nova onda de filmes de origem. Como o próprio termo define, esse tipo de produção reconstitui o passado de heróis e vilões, e mostra por que eles se tornaram quem são. Assim, muitos personagens da Marvel, da DC Comics ou da Disney, que os espectadores veem na tela já forjados em suas capas de heróis ou em seu gosto pela vilania, ganham um passado.
Cruella de Vil já é uma velha conhecida. Grande vilã da animação da Disney ‘101 Dálmatas’, de 1961, e também pelos live-actions ‘101 Dálmatas’ (1996) e ‘102 Dálmatas’ (2000), ambos protagonizados por Glenn Close, ela é uma rica empresária da moda obcecada por transformar pele de dálmatas em casacos e lança mão de todo tipo de maldade para conseguir o que quer. Agora estrelado por Emma Stone e dirigido por Craig Gillespie, o filme ‘Cruella’ conta a origem do mal que habita a personagem: a transgressão na infância, a genialidade indomável e uma tragédia que muda os rumos de sua vida e explica seu ódio por dálmatas.
Ainda criança, Estella, seu verdadeiro nome, é obrigada a seguir a vida sozinha em Londres, ao lado de outros dois órfãos, e o trio cresce aplicando pequenos golpes para sobreviver. Adulta, ela sonha em trabalhar com a Baronesa (Emma Thompson), ícone da moda e dona de um império: uma mulher chique, mas terrivelmente cruel.
Uma espécie de Miranda Priestly (Meryl Streep), de ‘O Diabo Veste Prada’, só que ambientada nos anos 1970. E Estella acaba se tornando sua assistente preferida – humilhada, mas preferida – ao estilo Andrea Sachs, de Anne Hathaway. Mas Baronesa desperta o pior de Estella e traz à tona seu alter ego do mal, Cruella.
Há um duelo de titãs – potencializado pelas ótimas atuações das duas atrizes. E não se surpreenda se você se pegar torcendo por Cruella, porque, diferentemente de Baronesa, que não demonstra quaisquer traços de benevolência (pelo menos não até ter seu próprio filme de origem), a vilã de Emma Stone não é de todo mau. Vide esse conflito interno que ela carrega desde a infância entre Estella e Cruella.
É como se as adversidades da vida obrigassem Cruella a emergir nos piores momentos. Esse é um dos feitos dos filmes de origem: ao aprofundar a história de um personagem, eles o humanizam, trazem as nuances típica do ser humano. Não existem maniqueísmos na vida real. Pode despertar identificação e até empatia do público. Assim está sendo com ‘Cruella’, e assim foi com outros vilões donos de seus próprios filmes, como ‘Malévola’ e ‘Coringa’.
O palhaço cruel
Outro sucesso de bilheteria, com mais de US$ 1 bilhão arrecadados no mundo, e ganhador do Oscar de melhor ator (Joaquin Phoenix) e de melhor trilha sonora, ‘Coringa’ (2019) vai às origens de um dos maiores antagonistas do super-herói Batman. Arthur Fleck vive de bicos como palhaço, cuida da mãe doente, é vítima constante de humilhações. Descobre a suposta identidade do pai bilionário, que o despreza. E essa é a chave da conexão entre Fleck, o Coringa, e Bruce Wayne, o Batman – pelo menos no filme, que foi alvo de críticas dos fãs de HQs por ter afastado da história contada nos quadrinhos.
‘Coringa’ trouxe à tona discussões sobre temas como saúde mental e bullying, ao retratar o vilão como um invisível social e marginalizado. Fleck tem suas fragilidades, inventa em sua mente uma vida irreal, em que namora e arrebata plateias com seu stand-up. Essa jornada delirante o leva a um desfecho violento e se instaura o caos em Gotham City. Coringa se sobrepõe a Fleck, tal e qual Cruella a Estella.
O próprio Batman tem seu filme de origem. ‘Batman’ (1989), dirigido por Tim Burton e protagonizado por Michael Keaton, deu início a uma das séries no cinema sobre o herói sombrio da DC Comics. Coringa surgiu em outras produções, mas não como personagem central: como no próprio filme ‘Batman’ (vivido por Jack Nicholson); em ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’ (em interpretação memorável de Heath Ledger), em 2008; e ‘Esquadrão Suicida’ (com Jared Leto no papel), em 2016.
“Quando a gente fala em mocinho e bandido, é tudo muito bidimensional: o mocinho é só o bem, o vilão é só o mal. E esses filmes fazem sucesso porque trazem uma narrativa interessante, que nos permite ver esses personagens de uma maneira mais nuançada. O mocinho também tem seus conflitos. Sobre o vilão, você não vai necessariamente justificar as coisas que ele faz pela sua origem, mas vai entender um pouco mais do que está por trás daquele comportamento”, analisa o psiquiatra Daniel Martins de Barros, professor-colaborador do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP e autor do livro ‘O Lado Bom do Lado Ruim’.
Muito mais do que justificar a maldade, o espectador busca nos filmes de origem uma relação de causa e efeito. “O problema é justamente entender causa como justificativa. Não é. Antigamente, havia uma narrativa mais simplista, e com o tempo vamos desenvolvendo uma profundidade na observação, no entendimento dos personagens”, acrescenta Barros. Há também o desejo de, depois de esgotadas as aventuras, continuar habitando o universo de figuras tão fascinantes como as exploradas nos filmes de origem.
O mesmo se aplica aos filmes de origem de heróis. “O cérebro é doido por essa relação de causa e efeito, tudo o que acontece deve ter uma causa por trás. E tem. O problema é que essas causas são sempre multifatoriais. Não dá para dizer que o Batman virou Batman porque os pais foram assassinados, já que houve outras crianças que ficaram órfãos em circunstâncias semelhantes e não viraram o Batman. Isso é apenas um elemento”, conclui Barros.
A pele de Cruella
No caso da Disney e dos filmes que contam a história de seus vilões, parece existir ainda um outro elemento envolvido: a necessidade de reparação da imagem desses personagens. É o caso de Cruella e Malévola. Diferentemente da anterior – e o spoiler aqui é inevitável –, a Cruella da atual versão não usa pele de dálmatas de verdade para fazer seus casacos. Ela aderiu aos sintéticos inspirados neles. Em tempos em que o engajamento de ativistas pela causa animal é tão forte ao redor do mundo, a Disney certamente achou por bem deixar claro que a Cruella, apesar de ter seu trauma com dálmatas, não é adepta de maus-tratos.
Também exposta em suas fragilidades e dores, a ‘Malévola’ de Angelina Jolie, que estreou nos cinemas em 2014 e arrecadou US$ 760 milhões, busca vingança e a concretiza ao amaldiçoar a princesa Aurora, filha de seu desafeto, o rei Stefan. Mas há nela, bem lá no fundo, um instinto materno que se aflora ao se aproximar da jovem e doce princesa. Malévola é uma espécie de dragão que revela ter um amor puro por Aurora, também conhecida como Bela Adormecida. E esse amor a transforma. Ela permanece vilã, mas com brilhos nos olhos de uma mãe zelosa.
A origem do bem
Entre os heróis, Pantera Negra é um dos mais bem-sucedidos nesse filão. O live-action que leva o nome do célebre personagem da Marvel se tornou a produção de super-herói com a maior bilheteria da história dos EUA em 2018 e faturou, globalmente, mais de US$ 1,3 bilhão. Primeiro super-herói negro da editora de HQs, Pantera Negra surgiu no cinema pela primeira vez em ‘Capitão América: Guerra Civil’, em 2016, já interpretado por Chadwick Boseman, e, dois anos depois, ganhou o próprio filme.
Ele apareceria depois novamente com outros heróis do Universo Marvel, em ‘Vingadores: Guerra Infinita’ e ‘Vingadores: Ultimato’. Com elenco de atores majoritariamente negro, ‘Pantera Negra’ levou o público para a fictícia Wakanda, na África, governada pelo rei T’Challa, nome verdade do herói. Para entender Pantera Negra, era preciso conhecer Wakanda e seu povo. Foi o que o filme mostrou. Tornou-se símbolo de representatividade e diversidade.
Do lado da DC Comics, Mulher-Maravilha fez sucesso com seu filme de origem lançado em 2017. Gal Gadot havia feito sua primeira aparição como a heroína em ‘Batman v Super-Homem: O Despertar da Justiça’, em 2016. Um ano depois, em seu próprio live-action, Mulher-Maravilha é retratada como a forte Diana Prince, que foi treinada desde criança para ser uma guerreira numa ilha só povoada por amazonas. O filme ganhou sequência em 2020, com ‘Mulher-Maravilha 1984’.
Ao mergulhar na história de personagens saídos de HQs e animações, e mostrá-los em sua essência, esse tipo de produção acaba atraindo também o público adulto. “Quando se coloca mais nuances, mais camadas de complexidade no personagem, consegue se conquistar um público maior, que vai se interessar mais, porque não tem uma leitura tão simples quanto num conto infantil, ou numa fábula”, afirma o psiquiatra Barros. Investindo nisso, os estúdios preparam mais filmes de origem, como o da ‘Viúva Negra’, que deve estrear em julho.