As maiores tendências da moda em 2020 refletem um mundo em crise
Olhar para trás para a moda em 2020 é enxergar um ano de crise. Nos primeiros meses de 2020, quando a gravidade e a escala da pandemia do coronavírus se tornaram claras, empresas em todo o mundo enfrentaram desafios incomparáveis impostos pela maior crise de saúde pública global em gerações. A indústria da moda não ficou imune.
Fazer roupas tornou-se extremamente difícil e muitos de nós, forçados a ficar em casa em meio à insegurança no trabalho e preocupações com a saúde, perdemos o apetite para comprá-las.
Um relatório recente da consultoria McKinsey e do site The Business of Fashion mostrou que as vendas de moda na China caíram significativamente no início do ano, enquanto na Europa e nos Estados Unidos elas despencaram de um penhasco a partir de março.
O mesmo relatório previu que os lucros anuais das empresas de moda diminuirão em aproximadamente 90% em 2020, após um aumento de 4% no ano anterior.
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No entanto, a pandemia não foi a única crise que o setor enfrentou. Embora o mundo da moda já estivesse reconhecendo verdades incômodas sobre seu impacto e suas práticas – de seu papel na crise climática e nas más condições de trabalho para os trabalhadores de confecções, ao seu fracasso em criar locais de trabalho inclusivos e diversificados – os eventos de 2020 serviram apenas para realçar ainda mais esses problemas.
De repente, a moda teve que encontrar seu lugar em um mundo desconfortável com as ideias de fantasia, frivolidade e indulgência das quais há muito tempo o setor depende.
Para Shefalee Vasudev, editora e fundadora da revista “Voice of Fashion”, da Índia, 2020 foi o ano “do grande desmascaramento” da moda. “O outro lado invisível do que trazemos para casa junto com uma bela peça de roupa ou produto foi revelado”, escreveu ela por e-mail de Delhi.
“Os migrantes voltando para suas casas nas aldeias, sendo rejeitados como já eram pelas cidades e seus patrões, foi uma das imagens mais comoventes que vieram à tona na Índia”.
Vasudev, autora de “Powder Room: The Untold Story of Indian Fashion” (“Toucador: a história não escrita da moda indiana”, sem edição no Brasil), apontou para “trabalhadores mal pagos, lucros desiguais e (falta de) créditos de direitos autorais para os artesãos”, como algumas das questões mais urgentes expostas pela pandemia na Índia.
Enquanto isso, nos Estados Unidos e em vários países, o ressurgimento do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, ou BLM na sigla em inglês) colocou a questão do racismo sistêmico firmemente na agenda da indústria da moda. As marcas lutaram desajeitadamente para saber como responder. Muitas erraram e foram rapidamente criticadas por fazer apenas gestos simbólicos.
“De forma direta: não acho que haja a intenção por trás (dos gestos online) de fazer mudanças duradouras e sustentáveis”, disse a editora-chefe da revista “Teen Vogue”, Lindsay Peoples Wagner, em um e-mail para a CNN em junho.
“Todos podem entrar no movimento BLM agora nas redes sociais, mas o que estão fazendo em casa, no escritório corporativo, com suas conexões, com o poder que têm?”
Meses depois, Wagner lançou o Black in Fashion Council (em parceria com a publicitária Sandrine Charles) para promover uma melhor representação, oportunidades para os negros na moda e tornar o setor responsável por seus atos.
Escrevendo da Nigéria, um país que experimentou seu próprio conjunto de crises este ano, Omoyemi Akerele, fundadora da Lagos Fashion Week, disse que, junto com a pandemia do novo coronavírus, “os distúrbios civis nos países africanos e a pandemia do racismo foram desastres humanos de proporções épicas com inúmeras vidas perdidas, lembrando-nos do único fio que nos une a todos: a nossa humanidade”.
Falar sobre tendências da moda após um ano marcado pela crise pode parecer inútil, mas os temas que surgiram oferecem uma janela para esses tempos extraordinários.
Funcionalidade
As máscaras se tornaram o acessório do ano, sem qualquer rival no horizonte. As pessoas fizeram suas próprias máscaras, as marcas produziram peças com designs exclusivos e, quase da noite para o dia, elas se tornaram o toque final para muitas roupas.
Algumas marcas foram um passo além ao comercializar novos acessórios (e em alguns casos, linhas inteiras de roupas) como tendo propriedades antimicrobianas.
Embora os especialistas digam que é difícil de avaliar se os tratamentos antimicrobianos podem proteger os usuários da Covid-19, o próprio conceito de moda protetora é uma tendência que veio para ficar. Também vimos toques dessa ideia na alta costura, incluindo looks de Kenzo inspirados em apicultores apresentados durante a Paris Fashion Week em setembro.
Conforto
A plataforma de moda Lyst analisou dados de pesquisa de mais de 100 milhões de compradores online e, em seu relatório anual, descobriu que os chinelões Birkenstock, os Crocs, os chinelos UGG e as calças de agasalho da Nike estavam entre os itens de roupa mais procurados do ano.
Refletindo uma mudança tanto na realidade quanto na mentalidade, as roupas de ficar em casa, ou “loungewear”, substituíram os trajes de escritório. Já os leves vestidos de casa – confortáveis o suficiente para ir do home office ao sofá-cama – ganharam popularidade. O termo “cottagecore”, uma tendência da internet que encapsula o espírito de uma vida aconchegante e rústica, dos “cottages” (chalés), gerou um grande burburinho: usuários do TikTok exibiram várias de suas tentativas de canalizar a estética em casa.
A cultura pop, é claro, ajudou a destacar essas tendências. O videoclipe do BTS para “Life Goes On” mostrou a boyband coreana usando pijamas combinados, jogando videogame e olhando melancolicamente para fora das janelas. Ah, nada como ser um ídolo jovem, rico e autoisolado.
Declarações
O uso de roupas para se posicionar adquiriu um significado totalmente novo em 2020. De camisetas de protesto em apoio ao movimento Black Lives Matter a mercadorias políticas antes das eleições nos Estados Unidos, as pessoas se vestiram não para impressionar, mas para transmitir mensagens poderosas.
De acordo com os dados da plataforma Lyst, as pesquisas de moda usando termos como “voto” aumentaram 29% nos EUA um mês antes da eleição presidencial. Quando Michelle Obama usou seu agora famoso colar com a palavra “VOTE”, desenhado por Chari Cuthbert, os pedidos do item dispararam.
Antes da eleição, o Instagram foi inundado com celebridades postando selfies em ternos rosa choque graças a uma campanha lançada pela marca de roupas de trabalho Argent e pelo grupo de defesa Supermajority, que incentivou as mulheres a exercerem seu poder de voto e reforçou ainda mais o uso do rosa para sinalizar força e solidariedade feminina.
Seja intencional ou não, a escolha de Savannah Guthrie de usar um terno rosa (que não fosse da marca Argent) para entrevistar o presidente Trump durante uma sabatina na rede de TV NBC não passou despercebida.
Consciente
A crescente demanda por roupas locais, feitas à mão e sustentáveis não é uma tendência nova. Mas a pandemia viu um aumento nas compras orientadas por valores, refletindo uma mudança de mentalidade entre os consumidores mais prudentes, que, talvez, também tenham tido mais tempo para pensar sobre as marcas às quais emprestam sua lealdade.
Em um relatório divulgado em abril, a Lyst observou um aumento de 69% nas pesquisas por “couro vegano” de um ano para outro.
Na Nigéria, Akerele disse que comprar materiais de outros países se tornou um desafio, então estilistas e a comunidade em geral foram incentivados a construir negócios mais verticalmente integrados.
Segundo ela, a mudança reduziu a pegada de carbono da indústria. “Isso ajudou a diminuir o desperdício no sistema de uma forma que só a compra local sob demanda consegue; além disso, capacitou nossa comunidade de artesãos e cadeias de suprimentos locais, gerando renda para eles em meio à inflação”.
Vasudev disse que, na Índia, ela notou duas mudanças de comportamento, ambas beneficiando os artesãos locais.
“Uma foi a resposta esmagadora aos artesãos que vendem diretamente online (com a ajuda, é claro, de ONGs e coletivos de artesanato). A outra foi o aumento dos vários fundos para artesãos e instituições de caridade. Os consumidores indianos se esforçaram para apoiar os ‘karigars’ (artesãos). Comprando, doando, priorizando o produto Made in India”.
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Digital
De Xangai a Londres, as semanas da moda ao longo do ano se tornaram digitais para apresentar novas coleções com segurança.
Durante a London Fashion Week em setembro, a Burberry transmitiu seu desfile (filmado ao vivo na floresta) na Twitch, uma plataforma de mídia social mais popular entre jogadores de videogame do que entre fashionistas.
Mais tarde naquele mês, em Milão, o diretor criativo da Moschino, Jeremy Scott, trocou modelos por bonecas, apresentando de forma inteligente uma versão em tamanho reduzido de sua coleção em um vídeo que resumiu o absurdo do momento.
Meses antes, em maio, a estilista congolesa Anifa Mvuemba, fundadora da marca Hanifa, fez um streaming de uma coleção 3D hipnotizante de suas mais recentes criações, usando modelos invisíveis. A ideia inovadora se tornou viral, acumulando milhões de visualizações no Instagram.
Enquanto o e-commerce vem crescendo em popularidade há anos, o setor da moda de luxo tem, historicamente, demorado a abraçar o futuro digital. As queixas mais comuns da indústria dizem respeito à perda de experiências físicas de luxo, como entrar em uma loja lindamente projetada, folhear as páginas de uma revista ou comparecer a desfiles de moda exclusivos.
Embora essas atitudes estivessem mudando lentamente antes da pandemia, 2020 acelerou drasticamente a mudança para a internet. De acordo com o relatório da McKinsey mencionado anteriormente, “avançamos cinco anos na adoção do digital por consumidores e empresas em questão de meses”.
Grégory Boutté, chefe de clientes e diretor digital da Kering (dona da Gucci e da Saint Laurent, entre outras marcas), falou a respeito ao site Business of Fashion em dezembro.
“Nossa receita de comércio eletrônico durante o primeiro semestre de 2020 passou de 6% para 13% da receita geral de varejo em comparação ano a ano. Na América do Norte, alcançávamos 26% do comércio eletrônico; portanto, já estávamos à frente dos 20% que a McKinsey esperava para 2025”.
O executivo observou que espera que esses ganhos se normalizem, uma vez que tais números refletem o fato de as lojas físicas estarem fechadas em grande parte do ano, deixando os compradores sem opção a não ser comprar online.
O futuro
A recuperação da moda após a pandemia deve ser lenta, com especialistas prevendo um ano difícil para as empresas. As tendências observadas durante um ano definido pela crise não serão abandonadas em 2021 e podem mudar permanentemente os contornos do setor.
Algumas dessas mudanças são positivas e, quando se trata de questões de inclusão e sustentabilidade, já tinham até passado da hora de acontecer. O ano de 2020 também pode ter acelerado a compulsão da moda de olhar para frente em busca de um futuro melhor. Afinal, esta é uma indústria repleta de sonhadores.
Bohan Qiu, fundador da agência de comunicação e criação Boh Project, com sede em Xangai, disse que já tem visto exibições de moda mais exuberantes surgindo na China à medida que o país retorna a alguma aparência de normalidade.
“Sinto que as pessoas estão na verdade ficando mais vibrantes, mais experimentais, mais interessantes do que mais conservadoras”, disse. “E dá para ver nas ruas, nas festas ou eventos na China, ou em shoppings: todas as marcas estão exibindo padrões, estampas e enfeites realmente coloridos. Sinto que isso realmente está voltando, é como se estivéssemos comemorando.”
(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).