Soldados mortos na guerra estampam mesas em escolas para inspirar crianças russas
Rússia tenta reescrever a história dentro das salas de aula do país
Segurando um buquê de rosas, um lenço preto amarrado e usando um vestido de bolinhas, uma mulher de meia-idade chega a um salão de paredes rosa na região russa da Chuvashia.
Em um vídeo trêmulo com música balalaica sombria, adolescentes de tênis branco, dignitários de terno escuro e homens de uniforme militar se reúnem ao longo das paredes, com as mãos cruzadas à frente.
Esta cena parece uma reunião para um funeral – mas não é. É assim que a Escola Komsomolskaya marca a abertura de uma nova carteira escolar, a chamada “mesa do herói” estampada com o rosto e a biografia de um dos mortos de guerra da Rússia, que já foi aluno desta mesma escola.
Cerimônias como esta – dezenas documentadas nas páginas das redes sociais das escolas e em reportagens locais em toda a Rússia – fornecem um vislumbre de como um país em guerra tenta doutrinar seus mais jovens.
Também faz parte de um esforço mais amplo na Rússia para priorizar o ensino pró-guerra e patriótico em instituições educacionais, uma espécie de apólice de seguro contra quaisquer sementes iniciais de dissidência.
As mesas fazem parte de uma iniciativa pan-russa chamada “Projeto Escola Nova” e são financiadas pela “Rússia Unida”, um partido firmemente pró-Putin.
No início de maio, o Rússia Unida disse que havia mais de 14 mil carteiras em 9 mil escolas em todo o país.
A CNN viu imagens ou vídeos de pelo menos 26 regiões da Rússia, onde pelo menos uma mesa foi aberta em uma escola local.
Notícias locais sugerem que algumas escolas usam as carteiras para recompensar bom comportamento ou boas notas.
Jingles e jingosim
As cerimônias em si variam, mas o jingoísmo envolvido não.
Crianças em uniforme militar cerimonial cantam o hino nacional, carregam bandeiras e batem o calcanhar no chão durante a marcha.
As cenas lembram mais os desfiles da Praça Vermelha do que o pátio da escola.
No vídeo postado em uma página de mídia social da Escola No. 1 em Chuvashia, a voz inabalável de um menino diz: “Glória àqueles que viveram na terra preciosa. Glória aos que agora vivem nela”.
De boina verde, trança branca e luvas combinando, outra aluna, uma jovem, diz: “Hoje na vida de nossa instituição de ensino é outro acontecimento significativo. A abertura da mesa do herói dedicada ao nosso graduado Gennady Alexandrovich Pavlov, que morreu durante uma operação militar especial na Ucrânia em 27 de fevereiro de 2022, protegendo os interesses da pátria.”
A mulher de vestido de bolinhas enxuga os olhos enquanto caminha para ficar atrás da mesa. Sua mão toca brevemente as imagens impressas do rosto de seu filho.
As carteiras em todo o país são padronizadas: verdes, com fotos militares, biografia, medalhas concedidas (muitas vezes postumamente) e data de falecimento do militar.
A mesa na Chuvashia descreve como Gennady Pavlov morreu apenas três dias após o início da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia.
Ele foi morto durante uma operação militar para capturar o aeroporto Antonov em Hostomel, parte da tentativa fracassada da Rússia de marchar sobre Kiev no início da guerra.
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Daniil Ken, que representa um sindicato antigovernamental de professores chamado Teachers’ Alliance, disse à CNN que a iniciativa da mesa foi lançada há cinco anos.
Naquela época, “o projeto não era tão importante para a sociedade russa, mas desde que a guerra na Ucrânia começou, o governo decidiu usar este projeto para homenagear os soldados que morreram na Ucrânia”, contou.
Isso poderia explicar em parte o número de mesas, em mais de 14 mil, sendo muito maior do que o número de mortes que a Rússia reconheceu oficialmente na Ucrânia.
O Ministério da Defesa russo não divulgou atualizações sobre suas baixas desde setembro passado, quando o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, disse que menos de 6 mil soldados russos foram mortos.
A Ucrânia e os Estados Unidos forneceram estimativas muito mais altas de baixas russas, embora os números exatos sejam evasivos e obscurecidos pelo sigilo do tempo de guerra.
Ken, que agora vive exilado fora da Rússia, disse que colocar uma mesa na antiga escola de um soldado é tornar a guerra pessoal para as crianças russas.
“Você vê a foto dele, o nome dele, ele foi nosso aluno há apenas alguns anos”, disse ele, e para os jovens “é difícil não sentir isso dolorosamente e não acreditar no que os funcionários estão dizendo neste momento”.
Em janeiro, Alena Arshinova, primeira vice-presidente do comitê de educação da Duma Estatal e membro do partido Rússia Unida, disse que havia decidido “melhorar essa experiência… As crianças deveriam ter a oportunidade de aprender história não apenas nas páginas dos livros didáticos mas também, em geral, todo o ambiente escolar deve contribuir para o desenvolvimento do interesse da criança pelo estudo da história do seu país.”
Reescrevendo a história
No entanto, as páginas dos livros didáticos de história são outra parte do esforço de propaganda educacional do governo russo.
Olga, uma professora de inglês em São Petersburgo, diz ter visto livros didáticos que removeram qualquer referência ao fato de que Kiev foi a primeira capital da Rússia entre os séculos 9 e 13.
“Eles querem dizer que havia apenas a Rússia, não a Ucrânia”, disse.
Os livros didáticos também estão sendo atualizados para incluir eventos mais recentes.
Em abril, o ministro da Educação da Rússia, Sergey Kravtsov, revelou um novo livro didático da 11ª série que, segundo ele, inclui uma seção sobre “as razões por trás da operação militar especial”, o termo eufemístico que a Rússia usa para sua guerra na Ucrânia.
Olga diz que também viu livros de história que contêm citações do presidente Vladimir Putin e do ex-presidente Dmitry Medvedev, agora vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia.
Eles são retratados, disse ela, como “os maiores líderes da história russa moderna, que são os heróis. Os alunos têm que aprender suas palavras de cor e citá-las em qualquer lugar…. foi muito ridículo.”
VÍDEO – Soldados russos capturados relatam horrores da guerra
Não é apenas teoria – há também um elemento prático na abordagem do governo nas escolas. O ministério promete reintroduzir no currículo o treinamento militar básico, um retrocesso aos tempos soviéticos, e algumas escolas já começaram.
Em um vídeo postado pela agência de notícias estatal russa RIA Novosti de uma escola em Simferopol, na Crimeia ocupada pela Rússia, uma menina que parece ter cerca de 10 anos compete com seus colegas para desmontar e remontar um fuzil Kalashnikov. Ela completa o exercício em 45 segundos.
Na região de Sakahalin, no extremo leste da Rússia, uma reportagem local mostra alunos da 8ª série fazendo o mesmo exercício.
“É útil para um homem aprender temas militares”, diz um aluno. “Seria difícil no exército sem treinamento.”
E o governo está intensificando os esforços para garantir que o patriotismo comece cedo. Em setembro do ano passado, lançou uma nova iniciativa para todas as idades escolares – uma série de aulas intitulada “Conversas sobre coisas importantes”.
Os tópicos incluem “Símbolos da Rússia”, o “Bloqueio de Leningrado” e “Valores Tradicionais da Família”, todos oferecendo oportunidades para discutir os méritos da pátria e, em alguns casos, sentimentos diretamente pró-guerra.
Um site especial oferece vídeos e materiais didáticos para escolas adaptadas para diferentes faixas etárias, de seis a 18 anos.
“Nosso objetivo é libertar a Ucrânia e alcançaremos a vitória”, proclama um veterano da Segunda Guerra Mundial em um vídeo recente para marcam o Dia da Vitória na Rússia.
“Eu entendi que não ficaria muito mais tempo”
Essas aulas foram a gota d’água para Tatyana Chervenko, então professora de matemática para alunos da 7ª e 8ª séries em um subúrbio de Moscou.
Ela disse que seu primeiro pensamento quando ouviu falar deles foi que provavelmente teria que largar o emprego.
“Eu entendi que não ficaria muito mais tempo.”
Ela perseverou inicialmente por causa de seus alunos.
Tatyana havia consultado um advogado, que garantiu que as aulas eram, segundo a lei russa, voluntárias e, portanto, em vez dessas “Conversas”, ela ministrava aulas extras de matemática para seus alunos. Mas ela diz que estava sendo pressionada pela escola.
Ela recebeu várias repreensões e, a certa altura, em outubro, a polícia foi chamada e ela foi presa, disse ela, embora liberada no mesmo dia sem acusações.
Finalmente, em dezembro de 2022, ela foi demitida, disse. Chervenko acredita que o nível de propaganda nas escolas é a maneira do estado russo de garantir que seu poder seja “para sempre”.
“Seus filhos também aprenderão e se tornarão adultos, lutarão, apoiarão a pátria e assim por diante”, disse ela.
Seu próprio filho de 8 anos vai para a escola um pouco mais tarde nos dias marcados para as “Conversas sobre coisas importantes”.
Os professores dizem que a guerra criou um clima de medo, onde você não pode falar o que pensa, mesmo para colegas amigáveis.
Olga, a professora em São Petersburgo, disse à CNN que foi chamada ao escritório do diretor de sua escola no primeiro mês da guerra, depois de expressar sua oposição à chamada “operação militar especial” aos colegas.
“Ela me avisou que se eu continuar, ela terá que recorrer a um órgão especial do estado. Ela quis dizer o FSB”, disse ela, referindo-se à agência de segurança da Rússia.
Ken, da Aliança dos Professores, disse que o sindicato agora arrecada fundos para pagar multas para professores que foram sancionados pelas novas leis russas contra “desacreditar o exército russo”.
O Ministério da Educação da Rússia não respondeu ao pedido da CNN para comentar sobre as carteiras e outras mudanças nas escolas russas desde o início da guerra.
Uma janela para a guerra
As “mesas de heróis” não são apenas uma ferramenta de propaganda. Eles oferecem uma visão rara sobre o verdadeiro custo desta guerra, algo que a Rússia tentou esconder.
Mikhail Stepanov, um exilado russo que vive na Virgínia, dedicou seu tempo a descobrir a verdadeira escala das perdas russas por meio de seu site Poteru.net.
Ele passa seus dias vasculhando a internet em busca de quaisquer sinais de baixas russas postados em fóruns de bate-papo, mídias sociais e canais oficiais – e muito rapidamente as mesas se tornaram uma de suas fontes mais importantes.
“Quando você está procurando fotos dos mortos e usa o Google, ou imagens do Yandex ou Vkontakte, você digita o nome do cara e a palavra ‘morto’ e geralmente obtém sua ‘mesa de herói’”, disse Stepanov.
“Só me assusta e instila terror que em alguns anos essas crianças deixarão a escola com esse nível de propaganda, tendo o único pensamento incutido nelas de que ir para a guerra sem reclamar é a única contribuição que podem dar e morrer para o país”.
Entre as cerca de 500 mesas que descobriu, Stepanov diz que um pequeno número era para combatentes do Grupo Wagner, acrescentando peso à evidência recente de que o grupo não era uma empresa militar tão “privada” quanto afirmava.
Uma mesa, para um jovem de 21 anos de Khabarovsk, no extremo leste da Rússia, diz que ele morreu em agosto de 2022 em “Artyomovsk” (o nome preferido da Rússia para a cidade ucraniana oriental de Bakhmut).
Entre suas honras militares listadas está uma medalha “por bravura e coragem” de Wagner. Ken se preocupa com os impactos de longo prazo dessa campanha de propaganda.
“São milhões de estudantes, cidadãos do país, que você pode reunir em um só lugar, diga a eles o que deseja e alguém acreditará em você”, disse. “É algo muito perigoso para os alunos e terá um impacto na sociedade russa por décadas.”