Especialistas pedem à Câmara alterações na reforma tributária para combater desigualdades racial e de gênero
Entre propostas está o corte de alíquota para produtos de higiene menstrual; ofício também pede mudança na Constituição para que formulações de leis levem desigualdades em consideração
O Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero, do Núcleo de Direito Tributário na FGV, enviou ofício à Câmara dos Deputados na última semana em que pede alterações no texto da reforma tributária para combater desigualdades racial e de gênero no sistema de cobrança de impostos.
O documento apresenta quatro propostas. Em entrevista à CNN, a coordenadora do grupo, Tathiane Piscitelli, diz que a reforma é uma “oportunidade rara” para que essas desigualdades sejam atacadas.
A primeira proposta é a inclusão de produtos relacionados à higiene menstrual e à economia do cuidado entre aqueles sujeitos a 50% da alíquota do Imposto Sobre Valor Agregado (IVA).
As especialistas propõem também alterações no Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), para que se considerem as dimensões de gênero e raça.
Além disso, solicita a inclusão de parágrafo no artigo 150 da Constituição, para que a formulação de políticas tributárias sempre considere os impactos na desigualdade de gênero e raça.
“Se tivermos esse dispositivo [na Constituição], podemos ter um avanço muito significativo. Isso pode vir desde incentivos fiscais para bens de primeira necessidade e ligados à economia do cuidado, até a criação de incentivos para empresas contratarem mulheres em situação de violência doméstica, chefes de família”, explica a especialista.
Uma quarta proposta pede redução de 100% para alíquota de alimentos in natura. Ainda solicita a possibilidade de revisão de trecho da lei que corta a alíquota de ultraprocessados.
Por que o sistema é desigual?
Em entrevista à CNN a deputada Tabata Amaral (PSB-SP) afirmou que a desigualdade de gênero na tributação se dá especialmente pela “arbitrariedade e falta de transparência” do sistema atual.
Segundo a deputada, o sistema tributário atual se tornou um “Frankenstein” por conta de diferentes pressões de lobby exercidas ao longo das décadas.
A desigualdade de gênero na cobrança se dá pelo fato de o acesso às posições de poder — que permitem “lutar” por benefícios fiscais — ser desequilibrado.
“Na prática, ter espaços de poder ocupados majoritariamente — ou mesmo exclusivamente — por homens brancos faz com que seus interesses e produtos sejam considerados, enquanto aqueles que afetam majoritariamente mulheres, a população pobre e negros não são”, aponta.
Essa tese é descrita em uma dissertação de Luiza Machado Menezes, mestra em direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — e que também assina o ofício enviado à Câmara.
O trabalho, entre outras coisas, analisa a tributação sobre produtos ligados à economia do cuidado e à fisiologia feminina.
O estudo mostra, por exemplo, que anticoncepcionais (30%) são três vezes mais onerados que camisinhas (9,25%) e quase duas vezes mais onerado que viagra (18%).
Os absorventes (27,25%) são três vezes mais onerados que fraldas geriátricas (9,25%) e se aproximam do nível de tributação de bens de luxo.
Piscitelli, da FGV, explica que a desigualdade é agravada pelo fato de a tributação no Brasil ser concentrada no consumo.
“No consumo, todos pagam a mesma alíquota independente da renda. Assim, a situação é mais gravosa para a população de baixa renda. O indivíduo mais prejudicado na sociedade é a mulher negra porque é a pessoa que menos ganha neste país”, explica Piscitelli.
Uma pesquisa da ONU Mulheres mostrou que no Brasil as mulheres recebem, em média, um salário que é 21,3% inferior ao dos homens.
As mulheres negras recebem um salário 55,6% inferior ao dos homens brancos.
Reforma e desigualdade
Tabata Amaral acredita que a reforma tributária combate a desigualdade de gênero no sistema de cobrança de impostos brasileiro. Única parlamentar do grupo de trabalho que analisou a matéria na Câmara, ela defende, contudo, que há espaço para novos avanços.
“A reforma tributária do jeito que está hoje — por mais que eu defenda avanços — é um passo muito importante no combate a essas desigualdades”, disse.
“Esse já é um passo importante, mas um dos debates que espero que avance é sobre o cashback. A população mais pobre, por consequência mulheres e negros, pagam proporcionalmente mais impostos que a população mais rica e seriam beneficiados por este mecanismo”, completa.
A deputada federal afirma ter “esperanças” que essas mudanças possam ser debatidas no Legislativo, apesar do perfil “conservador” da maioria dos parlamentares que o compõem atualmente.
“O Congresso é bastante conservador no sentido de receoso de bater pautas mais inovadoras, preso ao discurso das redes sociais e não aos fatos em si”, explica.
Segundo apuração da CNN, a reforma tributária deve ser votada na Câmara dos Deputados entre quarta (5) e sexta-feira (6). O texto que vai ao plenário deve receber poucos ajustes em relação ao preliminar apresentado por Aguinaldo Ribeiro.
A expectativa dos articuladores do texto é de que a matéria possa se aproximar dos 400 votos. Apesar da busca por “unidade”, detalhes do texto ainda são discutidos e devem vir à tona no plenário.