Série de casos de violência doméstica leva jovens chineses a questionar o casamento
Ativistas e especialistas denunciam atuação de tribunais no país, que dificultariam pedidos de divórcio
*Nota: o texto abaixo contém alguns relatos de violência doméstica. Recomenda-se cautela.
Uma série de casos de violência doméstica na China, incluindo um assassinato cometido em plena luz do dia que foi capturado em vídeo e amplamente divulgado nas redes sociais, provocou indignação – e reacendeu um debate entre os jovens sobre o casamento.
O assassinato na província oriental de Shandong chamou a atenção do público depois que imagens feitas por uma testemunha foram publicadas online.
No vídeo, um homem é visto repetidamente dirigindo um carro por cima de uma mulher – posteriormente identificada pela polícia como a esposa dele. Em várias ocasiões, o homem sai do carro para verificar se a mulher ainda está viva, antes de continuar o ataque.
Em outra situação, a polícia da cidade de Dongying disse em comunicado que um homem de 37 anos foi detido depois de espancar a esposa de 38 anos até a morte por “disputas familiares”. O caso ainda está sob investigação.
O ataque havia se tornado o principal tópico de tendência no Weibo, site semelhante ao Twitter da China, acumulando 300 milhões de visualizações.
Muitos ficaram chocados com o nível de crueldade na ocorrência, que se segue a dois outros casos de violência doméstica e homicídio envolvendo mulheres que chamaram a atenção do público.
No mês passado, um homem na província de Guangdong, no sul, esfaqueou a esposa e a cunhada até a morte. A esposa teria sofrido anos de violência doméstica e planejava o divórcio, disse sua família ao jornal estatal The Paper.
E, na semana passada, surgiu outro caso, envolvendo uma mulher na metrópole de Chengdu, no sudoeste do país, que afirmou ter passado oito dias em uma unidade de terapia intensiva depois de ser atacada pelo marido em um quarto de hotel em abril.
O homem teria descoberto que ela estava pensando em divórcio e solicitando uma ordem de proteção no tribunal, de acordo com relatos da mídia estatal. O caso veio à tona depois que a mulher postou sobre a situação nas redes sociais, onde disse que ele a havia agredido 16 vezes durante os dois anos de casamento.
Nas discussões online, esses casos são cada vez mais citados pelos jovens como um alerta para o casamento, dado o que muitos veem como proteção inadequada para vítimas de violência doméstica e a dificuldade de sair de casamentos abusivos.
“Não é de admirar que todos tenham medo do casamento agora”, pontuou um comentário no Weibo com mais de 4 mil curtidas.
Outros citaram um ditado popular entre as jovens mulheres chinesas: “Mantenha-se segura ficando longe do casamento e do parto”.
Tais sentimentos representam um desafio potencial para o governo chinês, que tem lutado para reverter as taxas decrescentes de casamentos e nascimentos do país diante de uma crise populacional.
Um número crescente de jovens está adiando ou evitando totalmente o casamento, devido aos encargos financeiros associados e às desigualdades de gênero arraigadas.
“Embora o casamento possa trazer alguns benefícios, na verdade é mais uma restrição para as mulheres, e cada vez mais mulheres estão se conscientizando disso”, avaliou Feng Yuan, acadêmica feminista e cofundadora do Equality, um grupo de defesa dos direitos das mulheres e igualdade de gênero em Pequim.
“Dada a sua prevalência, a violência doméstica é um problema que todos conhecem, mesmo que eles próprios não o tenham enfrentado”, complementou.
“Assunto de família”
Na China, a violência doméstica tem sido tradicionalmente considerada um assunto familiar privado. Após duas décadas de luta de ativistas dos direitos das mulheres, o país finalmente impôs sua lei antiviolência doméstica em 2016.
A lei define o que é violência doméstica pela primeira vez, abrangendo tanto a violência física quanto a psicológica – embora não aborde o abuso sexual, como o estupro conjugal.
Assim, autorizou os tribunais a emitir ordens de proteção para as vítimas e a polícia a emitir advertências por escrito contra os agressores.
Embora a legislação tenha trazido algum progresso na proteção das vítimas e na conscientização social sobre a violência doméstica, especialistas dizem que sua aplicação continua irregular e muitas vezes ineficaz, em parte devido à cultura patriarcal profundamente enraizada do país e às barreiras existentes há muito tempo no sistema judicial.
Feng, a estudiosa feminista, observou que em muitos lugares a polícia ainda trata os casos de violência doméstica como um assunto de família.
“A violência entre membros da família não é tratada com o mesmo nível de importância que a violência entre estranhos… Muitas vezes é tratada levianamente pela polícia e pelos tribunais”, comentou.
“Portanto, muitas vítimas não puderam receber ajuda efetiva e oportuna, e muitas tragédias evitáveis de violência doméstica não foram interrompidas a tempo”, adicionou.
Casamentos abusivos
Para alguns jovens chineses, o medo do casamento também decorre da dificuldade de sair dele – principalmente quando o relacionamento se torna abusivo.
Em 2021, o governo chinês impôs um “período de reflexão” de 30 dias aos casais que buscam se separar – amplamente percebido como uma tentativa de conter o aumento da taxa de divórcio em meio a uma crise populacional iminente.
A política atraiu críticas de que poderia prender as pessoas em casamentos infelizes ou até mesmo abusivos.
Em resposta, o Ministério de Assuntos Civis disse que o “período de reflexão” só se aplica ao divórcio consensual registrado no sistema de assuntos civis, e as vítimas de violência doméstica podem pedir o divórcio no tribunal.
Mas nos tribunais chineses é extremamente difícil para as vítimas ganhar um processo de divórcio com base em violência doméstica, de acordo com Ethan Michelson, professor de sociologia e direito na Universidade de Indiana, Bloomington e autor do livro “Decoupling: Gender injustice in China’s Divorce Courts” (“Separação: Injustiça de gênero nos tribunais de divórcio da China”, em tradução livre)
“As mulheres estão aparecendo no tribunal com evidências realmente fortes e convincentes que apoiam suas alegações de violência doméstica, e os juízes as estão ignorando completamente”, ressaltou Michelson, que revisou 260 mil veredictos judiciais em casos de divórcio entre 2008 e 2023.
Cerca de um quarto dos veredictos que Michelson analisou foram em casos apresentados por mulheres que acusaram seus maridos de violência doméstica.
A maioria foi negada e, entre os poucos que foram aprovados, quase nenhum foi concedido com base em violência doméstica, de acordo com o especialista.
“As alegações de violência doméstica, mesmo quando são apoiadas por evidências, não fazem diferença – como se os juízes simplesmente não se importassem”, ponderou.
Os juízes chineses há muito tendem a negar os pedidos de divórcio, pontua Michelson. Nos tribunais, é quase uma prática padrão que os juízes neguem uma petição de divórcio na primeira vez que ela é apresentada, e uma segunda petição de divórcio só pode ser apresentada seis meses depois, ainda de acordo com o especialista.
“Quando os juízes negam o divórcio de mulheres que fazem alegações de violência doméstica, eles prolongam sua exposição ao abuso e à violência”, disse ele.
Parte da razão para os juízes negarem os pedidos de divórcio é prática: encerrar os casos rapidamente é uma “estratégia de enfrentamento” para magistrados sobrecarregados que têm com muitos casos, destacou Michelson. Mas também há um lado ideológico e político nisso, acrescentou.
“Durante décadas, houve pressão ideológica sobre os juízes para reconciliar casais e preservar casamentos, mas ficou muito mais forte sob Xi Jinping”, observou, apontando para a promoção do líder chinês de valores familiares tradicionais que enfatizam a harmonia.
As taxas decrescentes de casamento e nascimentos na China só aumentaram a pressão, mas negar os pedidos de divórcio das vítimas de violência doméstica só será contraproducente para o objetivo do governo de promover nascimentos, afirmou.
“É simplesmente ridículo pensar que preservar casamentos abusivos e tóxicos de alguma forma vai promover a fertilidade”, complementou.
“Na verdade, o oposto seria verdadeiro. Libertar as mulheres de casamentos abusivos e tóxicos para que possam se casar com alguém que realmente amam e as tratam bem – isso tem mais chances de promover a fertilidade”, finalizou Michelson.