Análise: Invasão do Grupo Wagner na Rússia mostrou Putin como enfraquecido e ingênuo
Revolta de mercenários contra o Estado russo forçou um presidente visivelmente zangado a se dirigir à nação e ameaçar Prigozhin, líder das tropas particulares, com consequências terríveis
Os acontecimentos do último fim de semana na Rússia se caracterizam como uma interrupção quase surreal do longo conflito que se desenrola na vizinha Ucrânia.
A revolta de Yevgeny Prigozhin, lider do Grupo Wagner, conta o Estado russo explodiu e recuou no espaço de 24 horas, mas as consequências de seu motim de curta duração podem reverberar por muito mais tempo.
As forças Wagner, apesar de toda a sua ostentação, nunca seriam fortes o suficiente diante das forças de segurança russas. A marcha sobre Moscou envolveu tropas dispersas que tinham pouca forma – e poder de fogo insuficiente para desafiar os militares regulares.
Apesar da arrogância de Prigozhin, não há praticamente nenhuma evidência de que quaisquer unidades regulares russas tenham ficado do lado de Wagner, embora algumas possam ter optado por não enfrentá-los.
De certa forma, foi surpreendente que as tropas de Prigozhin tenham chegado tão longe.
Ainda assim, a saga foi humilhante para os militares russos e, no mínimo, embaraçosa para o Kremlin.
Houve o bizarro encontro registrado entre Prigozhin e dois oficiais militares experientes em Rostov-on-Don, durante o qual ele os repreendeu como adolescentes condenados à detenção [e disse que o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, havia fugido].
Prigozhin e seus homens conseguiram assumir o quartel-general do Distrito Militar do Sul sem um murmúrio, muito menos um tiro.
De fato, as forças regulares russas (exceto por alguns helicópteros sobre a cidade de Voronezh) parecem ter caminhado como sonâmbulos durante os eventos do dia.
O breve drama forçou um presidente visivelmente zangado, Vladimir Putin, a se dirigir à nação no sábado e ameaçar Prigozhin com consequências terríveis, levantando até mesmo o espectro de uma guerra civil no processo.
O muito valorizado senso de propósito nacional em uma luta existencial contra o que Moscou afirma falsamente serem neonazistas ucranianos que eram criaturas do Ocidente foi perfurado pelo que às vezes era um dia de melodrama.
Alguns momentos, como a rápida construção de bloqueios de estradas na periferia sul de Moscou e a mobilização de forças especiais chechenas para avançar para Rostov, foram reminiscentes da tentativa de golpe de 1991 pelos linhas-duras soviéticos contra Mikhail Gorbachev – não no sentido político, mas pelo acaso e natureza incipiente dos eventos.
Acima de tudo, o dia expôs a natureza transacional das relações entre as elites russas. O que começou como um comportamento “traidor” e um desafio criminoso ao estado que deve ser tratado impiedosamente terminou com um acordo espalhafatoso negociado pelo ditador vizinho que deu a Prigozhin um “cartão de saída da prisão” e anistia aos amotinados que avançavam sobre Moscou.
Putin parece ter saído mais fraco
Isso não passou despercebido em Kiev, com um assessor do chefe do gabinete do presidente ucraniano, Mikhailo Podolyak, dizendo que “no final das contas, tudo volta ao normal, [Prigozhin] não é um traidor, ele é um herói da Rússia, e assim por diante. É um estado falido.”
A mídia estatal russa fez um grande esforço para mostrar como Putin estava no controle o tempo todo. “A noite toda o presidente esteve em contato com todas as estruturas de aplicação da lei”, disse Pavel Zarubin, repórter da TV estatal no domingo.
E, na realidade, a Rússia “não está à beira de uma guerra civil ou de uma grande convulsão, mesmo que haja um nível não desprezível de descontentamento com o estado de coisas em todo o país”, conclui Thomas Graham no think tank do Conselho de Relações Exteriores (CFR, na sigla em inglês).
Mas como Prigozhin conseguiu uma rota de fuga horas depois de apostar a fazenda na derrubada do estabelecimento militar, sua saída de cena ainda deixou Putin parecendo mais fraco, até mesmo um pouco ingênuo.
Durante anos, Putin tolerou e até encorajou as ambições de Prigozhin, sua companhia militar privada Wagner foi inicialmente uma maneira barata de projetar o poder russo na África, realizar tarefas básicas de guarda na Síria e mais tarde servir como um contrapeso útil para o estabelecimento de defesa.
O ativismo de Prigozhin, sua pilhagem de prisões russas como bucha de canhão, a prontidão de seus combatentes para partir para a ofensiva e, finalmente, tomar a cidade de Bakhmut, apesar das perdas, contrastava com a liderança quase invisível do Ministério da Defesa e a constante mudança de elenco de generais liderando a “operação militar especial”.
Putin o repreendeu indiretamente este mês depois que Prigozhin recusou uma ordem para registrar (e, assim, impedir) Wagner no Ministério da Defesa (na linguagem colorida de marca registrada); mas nenhuma ação foi tomada.
Essa tentativa do ministério pode ter levado Prigozhin para sua drástica iniciativa; mas mesmo que Putin visse isso acontecer, ele falhou em evitar o feito. Ele disse que as ações de seu ex-chef e camarada de São Petersburgo foram uma “punhalada nas costas”.
A liderança do Ministério da Defesa, especificamente Shoigu e o chefe do Estado-Maior Valery Gerasimov, ficou em silêncio e aparentemente ausente durante a crise. Suas reputações já manchadas parecem ter sofrido outro golpe, enquanto dois generais de alto escalão se manifestaram – exigindo que Prigozhin encerrasse sua escalada.
Um oficial ucraniano observou com alguma satisfação que “vários oficiais superiores responsáveis pela tomada de decisões optaram por se abster de emitir ordens ou fazer movimentos decisivos, optando por esperar pelo resultado”.
Verniz desbotando
Pode levar semanas para que qualquer remodelação de pessoal se materialize em Moscou, mas “alguém terá que assumir a culpa por não cortar a rebelião pela raiz. É justo apostar que Putin não se culpará. Haverá muitas acusações dentro do Kremlin, pois as facções de elite procuram salvar suas próprias posições e corroer seus rivais”, diz Graham, do CFR.
Os eventos do fim de semana parecem ter destruído o verniz já desbotado da onisciência de Putin, corroído por uma série de erros de cálculo no planejamento e execução da guerra e uma severa subestimação da resposta do Ocidente.
Como tal pantomima pode se desenrolar sob a vigilância do lendário ex-agente da KGB, revelando as divisões entre as elites russas? Como disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, à CNN no domingo, as forças russas esperavam tomar Kiev “em questão de dias” 16 meses atrás.
“Agora, eles precisam se concentrar em defender Moscou – a capital da Rússia – contra mercenários e os próprios homens de Putin.”
Graham corrobora com essa ideia.
“Isso inevitavelmente desviará a atenção dos líderes seniores da Rússia do esforço de guerra – e não apenas no curto prazo… O Kremlin terá que dedicar mais recursos para garantir que nenhuma ameaça semelhante surja no futuro”, escreve ele.
Em um estado autoritário, a dúvida é corrosiva. Phillips O’Brien, professor de estudos estratégicos na Universidade de St. Andrews, na Escócia, diz que “para uma ditadura construída sobre a ideia de poder incontestado, isso foi uma humilhação extrema e é difícil ver o gênio da dúvida jamais sendo forçado a voltar para a garrafa”.
Hanna Notte, associada sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, concorda – até certo ponto.
“É concebível que a corrosão de seu governo esteja em movimento. E mais importante, que o processo continue”, escreveu Notte no Twitter.
“Mas também existe a possibilidade de que a imensa disfuncionalidade do sistema que observamos hoje possa ser bastante durável e não se tornar perigosa para #Putin.”
Putin parece acreditar que pode derrotar todos os oponentes – o Ocidente, a Ucrânia e provavelmente Prigozhin. E Notte diz que se “a contraofensiva da Ucrânia ficar abaixo das expectativas, o regime pode se mostrar menos frágil do que muitos pensavam”.
Fillip para os ucranianos
O Kremlin pode muito bem usar a revolta para fortalecer ainda mais o aparato de opressão, a única parte do Estado russo que parece funcionar com relativa eficiência.
Ainda desconhecido, o efeito cascata dos eventos do fim de semana sobre as tropas russas de base na Ucrânia, cujo moral já está frágil. Muitos provavelmente se perguntarão mais uma vez pelo que estão lutando, à medida que a contraofensiva ucraniana ganha ritmo.
E, claro, o episódio é apenas um estímulo para os ucranianos. Um oficial militar ucraniano foi mostrado de forma provocativa nas mídias sociais comendo pipoca enquanto observava os acontecimentos na Rússia.
Podolyak diz que “Prigozhin humilhou Putin/o Estado e mostrou que não há mais o monopólio da violência”, e passou a zombar do estado russo como uma “estrutura frágil mantida unida pela inércia em uma asa e uma oração”.
É claro que é uma hipérbole, mas enquanto a contraofensiva da Ucrânia luta para ganhar impulso, a perspectiva (ainda que fraca) de uma ameaça interna a Putin é provavelmente um pensamento reconfortante.
Quanto a Prigozhin, visto pela última vez apertando a mão de admiradores ao deixar Rostov: seu paradeiro atual é desconhecido. Mas supondo que ele esteja inteiro, é provável que ele volte. Sua empresa de gerenciamento disse à CNN que responderia a perguntas assim que voltasse a se comunicar.
“O instrumento de Prigozhin é o Telegram. Putin é famoso por não estar na Internet; ele aparentemente não entende de mídia social. Grande erro”, diz o biógrafo de Stalin, Stephen Kotkin.
Quanto ao quadro geral, o Kremlin de Putin “permaneceu, e continua sendo, viável enquanto não houver alternativa política”, acrescenta Kotkin. “Agora, podemos ver o quão vazio é o regime. Putin involuntariamente lançou um teste de estresse de seu próprio regime”.