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    Análise: Trump réu é teste para Judiciário e instituições dos EUA

    Veremos o quão resilientes são as instituições norte-americanas —ou se o governo Trump causou danos profundos o suficiente para minar o princípio básico de que ninguém está acima a lei

    Jill Filipovicda CNN*

    A semana marcou um momento triste e impressionante na história americana: um ex-presidente chegando a um tribunal federal, sob custódia pelos US Marshals — órgão da polícia federal americana —, acusado de colocar a segurança do país em risco ao manusear incorretamente documentos confidenciais e, depois, obstruir os esforços para investigar seus supostos crimes.

    Esta é a primeira vez que um ex-presidente americano é indiciado por acusações federais. E as próprias acusações tornam esse momento ainda mais preocupante.

    O ex-presidente Donald Trump se declarou inocente de todas as 37 acusações federais em um tribunal federal em Miami na tarde de terça-feira.

    Ele é acusado de levar ilegalmente documentos confidenciais de segurança nacional, quando deixou o cargo em janeiro de 2021, e então supostamente compartilhar alguns desses documentos – que incluem segredos de segurança nacional altamente sensíveis – com pessoas que não possuem autorizações de segurança, recusando-se a devolver todos dos documentos, mentindo sobre isso e conspirando para encobrir.

    Os documentos em questão, segundo o governo, “incluíam informações sobre as capacidades de defesa e armamento dos Estados Unidos e de países estrangeiros; programas nucleares dos Estados Unidos; vulnerabilidades potenciais dos Estados Unidos e seus aliados a ataques militares; e planos para possível retaliação em resposta a um ataque estrangeiro”.

    Não é preciso ser um especialista em segurança nacional para entender o quão perigoso é ter esses documentos flutuando por aí — ou armazenados em um banheiro na Flórida, como foi o caso de alguns documentos, de acordo com a acusação federal.

    Trump nega qualquer irregularidade. Após sua confissão de “inocência” na terça-feira, ele foi solto e continua sua campanha para mais um mandato como presidente.

    A acusação diz que Trump reteve intencionalmente informações de segurança nacional, violou a Lei de Espionagem mais de 30 vezes e conspirou para obstruir a justiça, entre outros crimes. Como o próprio ex-procurador-geral de Trump, Bill Barr, disse à Fox News no domingo: “Se pelo menos metade [das acusações] for verdadeira, ele está frito. É uma acusação muito detalhada e muito, muito contundente”.

    Se o ex-presidente está “frito” ou não, resta saber. O que está claro, porém, é que este caso será um teste para o sistema de Justiça dos EUA e a força das instituições nacionais em uma (por enquanto) América pós-Trump.

    A constante “desconstrução do estado administrativo”, os ataques a instituições americanas essenciais e o empilhamento do judiciário federal com ideólogos conservadores e muitas vezes desqualificados permanecem entre os legados mais devastadores do governo Trump.

    Manifestantes apoiadores do ex-presidente dos EUA Donald Trump demonstram apoio em frente ao tribunal federal de Miami.
    Manifestantes apoiadores do ex-presidente dos EUA Donald Trump demonstram apoio em frente ao tribunal federal de Miami. / Win McNamee/Getty Images

    Agora, com Trump enfrentando acusações por pelo menos alguns dos muitos crimes que ele foi acusado de cometer, veremos o quão resilientes são as instituições —ou se o governo Trump causou danos profundos o suficiente para minar o princípio básico de que ninguém está acima a lei.

    A juíza que supervisionará este julgamento, Aileen Cannon, é uma indicada por Trump que enfrentou críticas por sua decisão a favor do pedido dele para que terceiros revisassem a busca do FBI em sua residência em Mar-a-Lago no ano passado.

    A decisão dela, concordaram observadores jurídicos de ambos os lados, foi chocante e sem precedentes. Um tribunal federal de apelações decidiu contra a decisão em dezembro.

    Em um sistema judicial funcional, os juízes individuais podem ter suas próprias opiniões políticas, mas fazem o possível para deixar suas preferências pessoais de lado e decidir com base na lei e no precedente legal.

    Essa norma caiu rapidamente nos Estados Unidos, já que uma Suprema Corte agora repleta de juízes conservadores — três deles nomeados por Trump — rasgou precedentes de longa data e retirou direitos de milhões de americanos.

    Outros juízes de extrema direita nomeados por Trump emitiram decisões ultrajantes e chocantes que qualquer observador legal honesto tem que admitir que são motivadas pela ideologia, não pela lei — desde anular a aprovação de décadas de uma droga indutora de aborto até a emissão de decisões muito incomuns em favor do ex-presidente a simplesmente ignorar décadas de litígios anteriores.

    Uma questão é se a juíza Cannon conduzirá o caso corretamente ou usará sua política — e como ela se comportará será um indicador do efeito corretivo das instituições americanas ou do resultado corrosivo da presidência de violação de normas de Trump.

    Várias caixas com documentos secretos foram escondidos no banheiro do resort de Donald Trump/ US District Court/Southern District of Florida

    Outra é como o resto do Partido Republicano reagirá. Mesmo antes de verem todas as acusações, muitos políticos republicanos já defendiam o ex-presidente, embora alguns tenham dito que as acusações fizeram parecer que Trump foi imprudente ao lidar com os documentos.

    “A porta de um banheiro trancado”, disse o presidente da Câmara, Kevin McCarthy, a repórteres na segunda-feira (12), referindo-se ao local onde alguns dos documentos foram encontrados em Mar-a-Lago. E os principais oponentes de Trump, com exceção de Chris Christie, deram um passo incomum de não enfatizar as acusações em suas campanhas.

    O líder da minoria no Senado, Mitch McConnell, disse que “ficará fora disso”. Mas a segurança nacional não deve ser uma questão partidária, e o Partido Republicano deve à nação avaliar os fatos deste caso com olhos claros. Em vez disso, o partido parece, em grande parte, ainda amarrado ao trem de Trump —mesmo quando ele sai dos trilhos.

    E, finalmente, há a questão do público. Trump e seus aliados estabeleceram sua própria narrativa, mesmo diante de evidências contundentes apresentadas em detalhes minuciosos: que esta é uma caça às bruxas partidária; que os liberais e democratas farão de tudo para destruir o ex-presidente; e que o Departamento de Justiça, como o processo eleitoral da América, simplesmente não é confiável.

    Como as falsas alegações anteriores de Trump de que a eleição de 2020 foi roubada, este é um ataque tanto aos democratas quanto à democracia americana de forma mais ampla e pode ter o efeito de minar em longo prazo seriamente a confiança do público no estado de direito e na própria nação.

    Os americanos já perderam significativamente a confiança em nossas instituições mais veneradas, com a Suprema Corte e a Presidência tendo as maiores quedas entre 2021 e 2022, de acordo com uma pesquisa da Gallup.

    Prender e acusar um ex-presidente não é pouca coisa, e qualquer que seja a política de alguém, hoje é um dia sombrio nos EUA.

    Ex-presidente dos EUA Donald Trump durante CNN Town Hall, em 10 de maio de 2023.
    Ex-presidente dos EUA Donald Trump durante CNN Town Hall, em 10 de maio de 2023. / Will Lanzoni/CNN

    Não há como convencer os apoiadores mais fervorosos de Trump de que sua versão dos eventos não é verdadeira, mesmo que sua versão mude, e mesmo que ele sempre conte mentiras descaradas — assim como montes de evidências nunca conseguiram convencer muitos apoiadores de Trump que a eleição de 2020 foi realmente livre e justa, e Joe Biden foi o vencedor por direito.

    Esses tipos de divisões — não apenas em opiniões, mas em fatos, são lacunas difíceis de preencher. E superá-las torna-se ainda mais difícil quando os líderes de um dos dois principais partidos políticos se recusam a defender a verdade, a democracia e o estado de direito. Em uma época de partidarismo cada vez maior, hoje marca outro grande ponto de virada que parece virtualmente garantido para afastar ainda mais os apoiadores de Trump do resto do país.

    Ainda assim, por mais deprimente que seja, seria muito mais prejudicial para o futuro da nação simplesmente dizer que os ex-presidentes estão imunes às consequências legais de suas ações. Ignorar a transgressão não a resolve; permite que apodreça e, potencialmente, para que os maus atores atuem novamente, ou para que outros continuem de onde pararam.

    Qualquer presidente que for descoberto por ter usado documentos de segurança nacional para se gabar e desrespeitar a lei americana deve ser responsabilizado. Deixar de fazer isso não unificará o país; apenas minará a confiança em seu senso básico de justiça e em seu sistema de justiça.

    Até agora, as engrenagens do sistema de justiça estão funcionando. A acusação é meticulosa. A custódia, apesar da atmosfera carnavalesca fora do tribunal e dos comentários ultrajantes de sempre de Trump nas redes sociais, foi realizada com pouco alarde dentro do tribunal.

    Trump voltou a Nova Jersey, onde fez um discurso bombástico chamando sua acusação de “o abuso de poder mais perverso e hediondo da história de nosso país”. Mas a questão agora é se a justiça realmente prevalecerá – ou se esse ex-presidente, indiciado em 37 acusações, não apenas violou a lei, mas o sistema projetado para aplicá-la.

    *Nota do editor: Jill Filipovic é jornalista de Nova York e autora do livro “OK Boomer, Let’s Talk: How My Generation Got Left Behind”. As opiniões expressas neste comentário são exclusivamente dela. Veja mais opiniões na CNN.

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