Marco temporal: saiba o que está em jogo em julgamento do caso no STF
Tese, defendida por ruralistas, determina que a demarcação de uma terra indígena só pode acontecer se for comprovado que os povos originários estavam sobre o espaço requerido em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição atual foi promulgada
O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (7) o julgamento do marco temporal de terras indígenas. O caso põe em lados opostos ruralistas e povos originários, e está parado na Corte desde 2021.
O tema tem relevância porque será com este processo que os ministros vão definir se a tese do marco temporal tem validade ou não. O que for decidido valerá para todos os casos de demarcação de terras indígenas que estejam sendo discutidos na Justiça.
O marco temporal, defendido por ruralistas, determina que a demarcação de uma terra indígena só pode acontecer se for comprovado que os indígenas estavam sobre o espaço requerido em 5 de outubro de 1988 — quando a Constituição atual foi promulgada.
A exceção é quando houver um conflito efetivo sobre a posse da terra em discussão, com circunstâncias de fato ou “controvérsia possessória judicializada”, no passado e que persistisse até 5 de outubro de 1988.
Cerca de 2.000 indígenas estão acampados em Brasília para acompanhar de perto o julgamento no STF, segundo estimativa da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Quando a Corte começou a julgar o tema, em 2021, aproximadamente 5.000 acampavam na cidade. Parte deles assistiu ao julgamento por meio de um telão montado na Praça dos Três Poderes, em frente ao STF.
Agora, isso não poderá se repetir, já que a Praça ficará fechada. Algumas lideranças e representantes dos povos originários poderão acompanhar o julgamento de dentro do plenário da Corte. A ministra Rosa Weber liberou 50 cadeiras.
Outros 250 indígenas poderão acompanhar o julgamento por meio de um telão que a Corte montará em um gramado que fica em frente ao edifício sede do tribunal e ao lado da Praça dos Três Poderes.
Julgamento
O caso do marco temporal é o terceiro item na pauta da sessão de quarta-feira (7). Os dois processos anteriores também discutem casos envolvendo direitos dos indígenas.
O primeiro item trata de pedido feito por um grupo de agricultores de Santa Catarina para anular a ampliação da Terra Indígena Ibirama-La Klãnõ.
O território em disputa é o mesmo que está sendo analisado no caso concreto do processo do marco temporal.
O próximo item da pauta é um recurso contra decisão que negou andamento a uma ação da Comunidade Indígena do Povo Kaingang contra determinações que mantiveram a anulação de demarcação de uma terra indígena em Laranjeiras do Sul (PR).
A presidente, ministra Rosa Weber, pode chamar processos a julgamento sem necessariamente seguir a ordem de processos em pauta.
O Supremo analisará o marco temporal após o Legislativo avançar sobre o tema. Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que estabelece a tese antes de o STF concluir sua análise.
Especialistas ouvidos pela CNN entendem que os deputados têm legitimidade de legislar sobre o assunto, mas que cabe ao Supremo a palavra final sobre a validade ou não da tese.
O placar do julgamento do marco temporal no STF está empatado em 1 a 1. O relator do caso, ministro Edson Fachin, manifestou-se contra a medida. Para o magistrado, o artigo 231 da Constituição reconhece o direito de permanência desses povos independentemente da data da ocupação.
O ministro Nunes Marques, por sua vez, votou a favor da tese. Considerou que o marco deve ser adotado para definir a ocupação tradicional da terra por indígenas. Em sua justificativa, ele disse que a solução concilia os interesses do país e os dos povos originários.
O julgamento começou a ser analisado pela Corte em 2021. Na ocasião, o ministro Alexandre de Moraes pediu vista (mais tempo para análise). O magistrado devolveu o processo em outubro do mesmo ano.
Votar o marco temporal é uma promessa da ministra Rosa Weber. A magistrada, que se aposenta em outubro, anunciou no fim de março que pautaria o caso. A declaração foi feita durante uma visita à aldeia indígena Paraná, no Vale do Javari, no Amazonas.
No mês seguinte, ela anunciou a data para julgamento em um evento ao lado da ministra Sonia Guajajara, “atendendo à reivindicação” da titular do Ministério dos Povos Indígenas.
No tempo entre pautar o processo e recomeçar de fato o julgamento, a Câmara firmou sua posição aprovando, em 30 de maio, o projeto de lei que estabelece o marco temporal.
A proposta é mais ampla, e traz pontos como a autorização para atividades econômicas em terras indígenas com a contratação de terceiros não indígenas e a participação de estados, municípios e pessoas diretamente interessadas, como produtores agropecuários, no processo de demarcação.
Uma ala dos deputados defendia que o Legislativo votasse o projeto antes que o STF julgasse o assunto. O texto ainda precisa passar pelo Senado.
A tese
O processo do marco temporal em discussão no STF teve sua repercussão geral reconhecida em 2019. O instrumento permite que a definição adotada pela Corte sirva de baliza para todos os casos semelhantes em todas as Instâncias da Justiça.
O caso concreto é uma ação do Instituto do Meio Ambiente do Estado de Santa Catarina (IMA) contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klaño. O território fica às margens do rio Itajaí do Norte, em Santa Catarina. Da população de cerca de 2.000 pessoas, também fazem parte indígenas dos povos Guarani e Kaingang.
O governo catarinense pede a reintegração de posse de parte da área, que estaria sobreposta ao território a Reserva Biológica Sassafrás, distante cerca de 200 quilômetros de Florianópolis.
A data da promulgação da Constituição Federal — 5 de outubro de 1988 — é o ponto central da tese do marco temporal. No artigo 231 da Carta Magna, está estabelecido o seguinte:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
A proposição de um marco temporal já havia sido ventilada antes, mas ganhou tração a partir de um precedente que apareceu em julgamento do próprio STF, em 2009, quando a Corte julgou a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Na ocasião, os ministros entenderam que os indígenas tinham direito ao território porque estavam no local na data da promulgação da Constituição. A partir daí a tese passou a ser mobilizada para os interesses contrários aos indígenas.
Ou seja, se eles poderiam também pleitear as terras sobre as quais não ocupassem na mesma data.
Critério objetivo
Representantes do agronegócio entendem ser fundamental a delimitação de um marco temporal para trazer segurança jurídica às disputas no campo. Outro ponto destacado é a possibilidade de uma decisão a favor dos indígenas afastar investimentos no setor, com impactos para toda economia.
Paulo Sérgio Aguiar, vice-presidente da Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa), disse à CNN que a Constituição traz uma condição objetiva para demarcar terras indígenas.
“No caso Raposa Serra do Sol, o STF trouxe o posicionamento do artigo 231, de que são as terras que os índios ‘ocupam’ e não ‘ocuparam’. Ou seja, que eles estavam ocupando em 5 de outubro de 1988”, disse.
Aguiar critica o processo de demarcação de terras indígenas, dizendo que há pouca margem para contestação e participação de proprietários, além do que considera falta de objetividade das provas trazidas para amparar a ocupação tradicional da terra.
Ele também afirmou que o voto do ministro Edson Fachin, no STF, permite que indígenas reivindiquem terras ocupadas em um passado “muito distante”.
Lucas Beber, vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT), afirmou que é uma “vontade popular” a resolução desse impasse.
“A gente enxerga que essa definição vai trazer tranquilidade jurídica para indígenas e proprietários de terras”, afirmou. “O marco temporal tem que ficar claro que não impede que sejam demarcadas áreas onde eles estavam ocupados em 1988.”
Direito originário
Conforme disse à CNN a advogada Kari Guajajara, o direito dos povos indígenas a seus territórios é um direito originário, ou seja, que antecede o próprio Estado brasileiro, e que está assegurado textualmente na Constituição.
“O Brasil tem vários capítulos não resolvidos e um deles é a pauta dos povos indígenas”, afirmou. “Essa tese é reflexo da incapacidade e da não vontade estratégica para resolver esse capítulo da história e assegurar os direitos dos povos aos seus territórios”, declarou.
A advogada, que atua na defesa jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), disse não ver possibilidade de um desfecho favorável aos indígenas via Congresso.
“A gente espera que no Judiciário, no papel contra majoritário que ele tem para manter a democracia em pé, que possa fazer essa análise imparcialmente”, afirmou. “O Judiciário é o único Poder que tem condições de reconhecer esse direito originário e se fazer respeitar a Constituição”.
Segundo a Apib, todos os 1.393 territórios indígenas (já demarcados, em processo de homologação ou de identificação) correm risco de serem impactados, caso seja estabelecido um marco temporal.
A situação traria efeitos especialmente nocivos a povos isolados e de recente contato, pela dificuldade em se comprovar a ocupação de determinado território em outubro de 1988.
“Se aprovada, a tese reforça uma política de esquecimento que ignora todo processo de violência sofrida pelos povos indígenas, de remoções forçadas e de expulsões”, disse a advogada.