Análise: Aos 100 anos, Henry Kissinger ainda nos ensina o valor da “visão de mundo”
Ex-Secretário de Estado e ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos completou 100 anos no último sábado (27)
Há doze anos, quando fui convidado para falar em uma pequena reunião no centro cultural 92nd Street Y de Nova York, conversei com um grupo de manifestantes que
aguardavam a chegada do palestrante principal.
O tal convidado era Henry Kissinger e eu fiquei surpreso ao ver que o grupo estava ali para protestar contra “uma palestra dada por um renomado criminoso de guerra”.
Eles voltaram três anos depois, quando Kissinger se apresentou novamente no mesmo local. Na nova oportunidade, os manifestantes criticaram o histórico de
Kissinger “em relação ao Timor-Leste, Papua Ocidental, Vietnã, Camboja, Chile, Chipre, Bangladesh, Angola e outros lugares”.
Os eventos citados aconteceram décadas atrás. Eles incluem o ápice da guerra do Vietnã e inúmeras outras crises nas quais o então Secretário de Estado dos EUA Kissinger fez o seu melhor para chegar a alguma conclusão racional.
A maioria dos manifestantes mal havia nascido quando esses eventos se desenrolaram, ou seja, quando Kissinger estava sem dúvida afetando profundamente o resultado de cada um dos fatos.
A lista de queixas apenas atesta o amplo escopo de pessoas, lugares e eventos que ele influenciou no curso de uma carreira notável.
No entanto, se há uma lição para tirar de seus anos no cargo e das décadas seguintes, é a amplitude da visão totalmente racional e desapaixonada que Kissinger tem do mundo e de tudo o que o move. Ele a chama de “weltanschaüng” ou visão de mundo.
Nesta semana, na qual Kissinger comemora seu 100º aniversário em 27 de maio, é razoável olhar para trás e examinar a herança do diplomata e estrategista e como ele
impactou – para melhor ou de vez em quando, para pior – o mundo que serviu como sua tela.
Da Alemanha do entre guerras à política americana, Kissinger tocou ou impactou praticamente todas as crises ou oportunidades que enfrentamos hoje – e ao longo do caminho mudou o mundo como poucas outras pessoas que nunca foram eleitas para o poder que detiveram.
Nascido na Alemanha em 1923, poucos anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial, ele deixou o país em 1938 porque seus pais, judeus, tiveram a precaução de deixar o país com a intensificação da perseguição de Hitler ao seu povo.
Cinco anos depois, Kissinger naturalizou-se norte-americano e, no final da Segunda Guerra Mundial, entrou em Harvard, onde se graduou, concluiu o doutorado e se tornou um ilustre professor de governo (ele foi um dos meus professores).
Ao longo da sua carreira acadêmica, no entanto, ele foi montando cuidadosamente a base para se lançar como uma autoridade em política estratégica para presidentes de ambos os partidos – Dwight Eisenhower, John F. Kennedy e Lyndon B. Johnson. Depois, ele gravitou para o lado do Partido Republicano, começando como conselheiro do governador de Nova York e depois do vice-presidente Nelson Rockefeller.
Por isso, não foi uma surpresa quando Nixon nomeou Kissinger como seu Conselheiro de Segurança Nacional.
A longa sombra do Vietnã
Kissinger poderia ser mais bem descrito, talvez, como um onívoro, capaz de observar e compreender, influenciar, até mesmo transformar de forma clara e óbvia inúmeros eventos e o próprio mundo.
A questão, então, é: com um palco tão evidente para exercer seu papel e tantos eventos e crises convergentes, como algumas de suas ações podiam ou podem ser justificadas, na época ou agora?
“Tudo é relacionado com a credibilidade dos EUA, da qual a ordem global dependia”, disse Michael Mandelbaum, professor emérito de política externa americana da Johns
Hopkins School of Advanced International Studies.
Uma grande questão é o motivo para a guerra no Vietnã e seu imenso preço em vidas e em poderio militar. A busca por uma justificativa real foi algo buscado de forma tão implacável por Kissinger quanto as conversas de paz que ele armou e que levaram ao fim do conflito.
Muitos usaram o Vietnã como um talismã de como não tentar outras incursões estrangeiras enormes e caras – em dinheiro e vidas americanas –, particularmente no caso do Afeganistão.
Mas Kissinger e o então presidente dos EUA, Richard Nixon, haviam herdado a complicada situação no Vietnã quando chegaram ao cargo. O conflito foi um legado da presidência de Lyndon Johnson, que fazia qualquer coisa para evitar a derrota.
Embora alguns tenham sugerido que foi Kissinger que procurou retardar o processo em direção à paz durante a campanha presidencial de Nixon, gravações que surgiram na esteira do caso Watergate sugeriram que Nixon realmente usou outro subordinado, H.R. Haldeman, para “sabotar” as negociações de paz.
No entanto, as notas na época sugeriram que Kissinger – que fazia parte do canal de comunicação de Johnson com os vietnamitas do Norte – pode muito bem ter influenciado a equipe de campanha de Nixon para agir exatamente como o antecessor Johnson.
Mandelbaum, autor de “The Four Ages of American Foreign Policy: Weak Power, Great Power, Superpower, Hyperpower” (“As Quatro Eras da Política Externa Americana: Poder Fraco, Grande Poder, Superpotência e Hiperpotência” sem edição no Brasil), citou um trecho de um pequeno livro que Kissinger publicou assim que tomou posse em 1969.
“O compromisso de 500 mil americanos [aproximadamente o número de militares no país asiático] resolveu a questão da importância do Vietnã. Pois o que está jogo agora é a confiança nas promessas americanas. Por mais que esteja na moda que seja ridicularizar termos como ‘credibilidade’ e ‘prestígio’, eles não são vazios; outras nações podem equipar suas ações com as nossas somente se puderem contar com nossa firmeza.”
Firmeza foi de fato um tema que percorreu toda a era de Kissinger e o mundo com o qual ele se interagiu depois de deixar o posto no governo Nixon. O complexo esforço de quatro governos para ganhar algum tipo de paz no Vietnã se deteriorou ao longo de quatro anos de negociações em Paris.
Foi Kissinger quem proclamou em 26 de outubro de 1972 que “a paz está à mão”. O jornal “The New York Times” publicou toda a transcrição da coletiva de imprensa de Kissinger naquela data em duas páginas completas do jornal.
“Para Kissinger, tudo era um enorme quebra-cabeças, com cada peça desempenhando um papel crítico, mas distinto para um único fim: a ascensão da América como o poder supremo do mundo.” (David A. Andelman)
As ações finalmente levariam à retirada americana e, dentro de dois anos, a tomada do Vietnã do Norte de todo o país. Ho Chi Minh e Hanói pareciam ter “vencido” a guerra.
Na verdade, a forma como a vitória foi estruturada levou à criação de uma nação que é hoje um baluarte do capitalismo.
Além disso, à medida que os EUA procuram se distanciar da China, pelo menos em termos econômicos, o Vietnã é hoje um parceiro muito valorizado, talvez um aliado absoluto.
De fato, um número maior de iniciativas funcionou muito bem durante os oito anos de Kissinger em duas presidências, sob Nixon como Conselheiro de Segurança Nacional e sob Gerald Ford com o título de Secretário de Estado.
Ao mesmo tempo em pressionava o Vietnã em uma conferência de paz, Kissinger se movia em outras direções que causavam tremores diplomáticos em Hanói.
Na época, ele também fazia movimentos em direção ao fim das hostilidades com a União Soviética e dava os primeiros passos em abrir relações diplomáticas plenas com a China.
Ambos eram os únicos grandes apoiadores do Vietnã do Norte.
O mundo como um quebra-cabeça
Para Kissinger, tudo era um enorme quebra-cabeças, com cada peça desempenhando um papel crítico, mas distinto para um único fim: a ascensão da América como o poder supremo do mundo.
Foi o diplomata quem, em uma missão profundamente secreta em Pequim, arranjou para o presidente Nixon se tornar o primeiro presidente americano a visitar o presidente
Mao Zedong e seu primeiro-ministro Chou Enlai, construindo um caminho para as relações diplomáticas dos EUA com a China.
Ao mesmo tempo, Kissinger embarcou numa campanha de conversas com a União Soviética que levaria a reduções acentuadas nos arsenais estratégicos de armas nucleares, cuja manutenção e expansão constituíam um enorme fardo para o orçamento americano – e uma profunda ameaça à estabilidade global e até mesmo à sobrevivência da espécie humana.
E tem também a questão do Oriente Médio. Em outubro de 1973, Israel foi invadida em pleno Yom Kippur, o dia mais sagrado do ano judaico, por uma coalizão de exércitos árabes liderados por Egito e Síria, que foram derrotados pelas forças israelenses a um grande custo.
Compreendendo os riscos em termos de diplomacia, de acesso às vastas reservas de petróleo árabes e de simples humanidade, Kissinger começou a empreender uma série de viagens diplomáticas, visitando incansavelmente Israel e seus vizinhos, num esforço para consolidar uma paz duradoura.
Sua ação teve sucesso, até certo ponto. Nunca mais Israel foi invadido por qualquer exército nacional, embora a paz total nessa região instável não tenha sido conquistada.
Ao longo do caminho, Kissinger participou de outras questões: uma guerra civil no Paquistão Oriental que levou à divisão e criação da nação de Bangladesh; o apoio das ações indonésias para evitar a independência da ilha de Timor-Leste; uma série de intervenções na América Latina incluindo golpes militares apoiados pela CIA para remover o presidente socialista do Chile, Salvador Allende e a presidente Isabel Perón da Argentina.
E ainda em toda a África, onde cimentou as relações com o ditador do Zaire, Mobutu Sese Seko, e pressionou para a formação de um governo da maioria negra na Rodésia (agora Zimbábue).
Em retrospecto, muitas dessas posições parecem ter sido profundamente equivocadas, especialmente seus movimentos na América Latina e na África.
Mas, naquela época, no auge do confronto e da concorrência entre os EUA e a União Soviética, elas não foram mal orientadas. Foi somente nos últimos anos que grande parte do resto do mundo de Kissinger ameaçou sair dos trilhos que ele tão cuidadosamente estabeleceu.
Hoje, os EUA estão em profundo desacordo com a China e a Rússia. Ainda não há paz no Oriente Médio, embora Israel nunca mais tenha sido atacado em uma guerra de nações. Já a Rússia e a China estão fazendo incursões profundas em toda a África.
Como ser Kissinger
Kissinger continuou dando sua opinião muitas dessas questões – em grande parte através da operação de consultoria privada que ele lançou em 1982 que virou um
colosso multinacional, fornecendo conselhos e gerando um fluxo constante de mais de 100 livros e textos.
Não é surpreendente portanto que, em muitos círculos, Kissinger e sua visão do mundo ainda sejam muito apreciados. Em 2015, a revista “Foreign Policy” lhe deu rótulo de “o secretário de Estado mais eficaz dos últimos 50 anos”, com uma classificação quase duas vezes maior do que o número dois, James Baker, e quatro vezes maior que a terceira colocada, Madeleine Albright.
Na verdade, embora Kissinger tenha trabalhado formalmente para apenas dois presidentes, praticamente todos os líderes de todos os partidos políticos o consultaram, assim como inúmeros líderes mundiais. A cada um deles, ele nunca deixou de pregar o valor indispensável da visão de mundo, a tal “weltanschaüng”.
Kissinger ainda acredita profundamente na necessidade de entender os fundamentos das ambições e sensibilidades de qualquer oponente, algo que parece ter iludido muitos líderes contemporâneos, especialmente nos Estados Unidos.
Quando se trata da China, por exemplo, ele disse à revista “The Economist” recentemente que autoridades americanas “dizem que a China quer dominação mundial. O fato é que eles [a China] querem ser poderosos. Eles não estão caminhando para a dominação do mundo em um sentido hitleriano. Não é assim que pensam ou alguma vez pensaram na ordem mundial”.
Quando se trata de Rússia e Ucrânia, Kissinger escreveu, em um notável ensaio em dezembro passado na revista “Spectator”: “O resultado preferido para alguns é uma Rússia tornada impotente pela guerra. Discordo. Por toda a sua propensão à violência, a Rússia fez contribuições decisivas para o equilíbrio global e para o equilíbrio de poder por mais de meio milênio. Seu papel histórico não deve ser degradado”.
Mesmo hoje, aos 100 anos, ele está pronto para servir, se alguém quiser chamá-lo. O diálogo a seguir aconteceu durante uma entrevista recente ao canal de TV CBS:
“Se um de seus assessores ligasse para Pequim e dissesse: ‘O doutor Kissinger gostaria de falar com o presidente Xi’. O presidente aceitaria falar com senhor?”
“Há uma boa chance de ele atender minha chamada, sim“, disse Kissinger.
“E Vladimir Putin? ‘Provavelmente, sim’. E se um presidente americano perguntasse: ‘Henry, o senhor voaria para Moscou e conversaria com Putin?’ ‘Eu estaria disposto a ir, sim’, respondeu. ‘Mas eu seria um conselheiro, não uma pessoa com função ativa’.” É algo a considerar.
Nota do editor: David A. Andelman, colaborador da CNN, duas vezes vencedor do Deadline Club Award, é um cavaleiro da Legião Francesa de Honra, autor de “A Red Line in the Sand: Diplomacy, Strategy, and the History of Wars That Might Still Happen (Uma Linha Vermelha na Areia: Diplomacia, Estratégia e História das Guerras que ainda podem acontecer, sem edição no Brasil)” no blog Andelman Unleashed. Ela já foi correspondente estrangeiro para o “New York Times” e a CBS News. As opiniões expressas neste texto são do autor.