Por que homicídios cometidos por mulheres são mais difíceis de aceitar
Condenações e penas para mulheres condenadas por homicídio são duas vezes maiores que homens que cometeram o mesmo tipo de crime
A reação que você tem ao ler uma notícia de que um homem assassinou a companheira seria a mesma ao saber que uma mulher matou o marido com nove tiros?
Ainda que os crimes sejam intoleráveis, uma manchete com a frase “mulher assassinada” parece ser mais comum de entender do que “mulher assassina” – e, talvez por isso, a segunda causa muito mais incômodo e horror na sociedade.
Nos Estados Unidos, 11% dos homicídios em 2019 foram realizados por mulheres. No entanto, as penas e condenações são quase o dobro do que os homens recebem por crimes muito semelhantes ou iguais.
Sunny Schwartz, advogada que dedicou a carreira a reformar programas prisionais no país, acredita que o sistema judiciário é injusto com mulheres. À CNN, Schwartz conta que até pouco tempo, a violência contra as mulheres acusadas de homicídio não era usada como prova. “Há centenas de mulheres que estavam apenas se defendendo e estão apodrecendo na cadeia há décadas”, contou.
Uma chance, nove tiros
Hoje, Crystal está livre, mas por mais de 20 anos fez parte do grupo de mulheres que Schwartz descreveu.
Crescida no campo, desenvolveu uma paixão por cavalos, um refúgio dos abusos físicos que sofria do pai na infância. Ao longo da vida, viveu relacionamentos conturbados e abusivos, só se sentindo segura na profissão: entrou para as Forças Armadas aos 19 anos e se tornou oficial da polícia militar, com a função de ensinar os colegas a atirar com “armas poderosas”.
À CNN, Crystal revelou que conheceu Richard, um discreto analista de sistemas de computador, quando já estava para desistir do amor, aos 36 anos. Unidos pela paixão por animais e pelo sonho de viajar o mundo, não demoraram muito a se casarem. Acreditando, enfim, ter encontrado um amor tranquilo que tanto desejava, Crystal deixou de viver “no paraíso” já na lua de mel.
“Eu achava que ele nunca me machucaria… Mas ele machucou”.
Ao se recusar a ter relações sexuais naquele dia pós casamento, Crystal recebeu um tapa do recém marido. Na época, a mãe de Richard estava à beira da morte e Crystal “deu um desconto”, acreditando que o homem estava apenas sob muito estresse. “Era o que eu pensava sempre que ele me batia”.
Aos poucos, Richard isolou Crystal em sua propriedade, a privando de contato com vizinhos, carteiros e qualquer outra pessoa que aparecesse em sua casa – e não se importava em deixar roxos e marcas aparentes na esposa.
Com medo de sofrer maiores agressões físicas, ela não falou para ninguém sobre o que passava, mesmo quando ele a forçou a deixar as Forças Armadas. Enquanto isso, o analista de sistemas se comportava de maneira “paranoica” após ler livros sobre o Armagedon (na Bíblia, a batalha final de Deus contra a sociedade humana) e estocava alimentos e armas.
Em 8 de agosto de 1992, Crystal decidiu sair para cavalgar e, ao voltar, viu o marido esperando na porta de casa. “Vou matar esse cavalo”, disse Richard, iniciando uma briga que terminaria com ele morto com nove tiros pelo corpo. Entre tapas, socos e xingamentos, Richard pegou uma arma e apontou para Crystal, que pegou uma outra arma próxima. “Se ele se mexer, eu estou morta”, pensou.
Treinada para matar, como ela mesma conta à CNN, Crystal acertou o primeiro tiro na cabeça do marido quando o viu mexer as mãos, mas não sabe explicar o por quê disparou mais oito vezes – o que foi crucial para ser condenada a 20 anos à perpétua, aos 38 anos.
Talvez, com essa narrativa, você compreenda os motivos que a levaram a assassinar o marido. Mas o júri, não. Na Califórnia, as agressões a longo prazo não são consideradas em um julgamento, apenas o “perigo iminente”.
Após cumprir 22 anos de prisão, Crystal revelou que não tinha a intenção de matar Richard, mas fazer com que ele parasse de agredi-la.
“Às vezes eu penso… Quando vi a mão dele com a arma se mexer, será que era um movimento inocente?”
Mergulhando em pesadelos
Violência doméstica pode ser altamente discutido atualmente, mas em 1990 era muito mais comum ver homens abusivos se tornando celebridades e mulheres vítimas se tornando piadas. Porém, quando o homicídio é de um bebê, olhar a culpada como um monstro não parece uma tarefa difícil.
Assim como Crystal, Sarah contou à CNN que cresceu em um ambiente conturbado: pais alcoólatras e violentos, uma irmã constantemente enviada a abrigos e reformatórios e o serviço social batendo em sua porta com frequência.
“Não foi a violência física que deixou cicatrizes, foi a tortura psicológica”
Com 16 anos, longe dos pais e da irmã, Sarah conseguiu o primeiro emprego em uma clínica veterinária. Foi lá que conheceu Ben, o homem que se tornou o centro de seu universo, como ela mesma o descreve. Juntos por anos, viveram como “espíritos livres” e viajaram pelo país até os 30 anos, quando se fixaram em Anchorage, no Alasca, em 2001.
Não havia brigas, discussões ou ofensas, algo que Sarah enfrentava como um sucesso em relação ao ambiente que cresceu e sabia que enxergava Ben como um homem incapaz de cometer erros.
“Ele era tão extrovertido e carismático, com tantos interesses diferentes… Eu não tinha nenhum, só ele”.
Alguns anos depois, Sarah começou a viver um novo sonho: a gravidez. Porém, a enfermeira notou algo errado: sua filha tinha o tipo mais fatal de nanismo. Sarah poderia ter o bebê com uma doença terminal ou buscar um aborto no segundo trimestre da gestação. Escolheu a primeira e deu início àquilo que considera um verdadeiro pesadelo.
Deixou os antidepressivos que tomava há anos de lado e passou a preocupar-se intensamente com sua filha, ainda dentro de sua barriga, privando Ben de qualquer estresse, já que ele viva sua “ascensão no mercado da cerveja”. Aos poucos, viu o companheiro distante não só da gravidez, mas de tudo que envolvia o casal.
À CNN, Sarah revelou não se lembrar da sensação de ver a filha pela primeira vez: “É como se eu não estivesse lá”.
Tentando dar conta de tudo, passou a se afundar em pensamentos negativos sobre não dar conta da responsabilidade que assumiu, enquanto o marido voltava ao trabalho poucos dias depois do nascimento.
“Parecia uma questão de vida ou morte, não conseguia dormir, descansar, ter paz ou mesmo só respirar”.
Em duas semanas após o parto, a recente mãe foi consumida pela ideia de tirar a vida da própria filha. Um dia, a levou no trabalho de Ben com a intenção silenciosa de que ele a salvasse. Ao voltar para casa, a amamentou e a sufocou até a morte. Presa desde 2015, dias depois do homicídio, Sarah contou que foi só então que se sentiu aliviada. A última vez que viu o marido foi no dia do julgamento.
Mais uma vez, pode ser que você sinta uma certa empatia com Sarah, mas é difícil acreditar que uma mãe seja capaz de assassinar o próprio bebê. Diana Barnes, psiquiatra especializada em saúde mental da mulher, explicou à CNN que os casos de infanticídio são mais comuns do que imaginamos e, muitas vezes, têm nome: psicose pós-parto.
“É como uma ruptura total com a realidade”, contou. “É caracterizada por delírios e falsas crenças sobre você mesma e o bebê”. Sem dúvidas de que Sarah vivia um surto psicótico durante a gravidez, Barnes acredita que ela estava desassociada do que vivia e fazia.
Quando as mulheres matam
Em uma sociedade que sabe que tirar uma vida é errado, especialmente de uma criança, é controverso dizer que mulheres são vítimas assim como seus bebês ou que nove tiros podem ser justificados pelo passado?
Em busca dessa resposta, a jornalista Lisa Ling conversou com as duas mulheres condenadas para entender melhor o que as levaram a cometer crimes tão chocantes. Como Crystal está vivendo em liberdade depois de tudo o que viveu? E como Sarah, que segue cumprindo sua pena, lida com a culpa de um crime tão difícil de entender?
O episódio “Mulheres Que Matam” vai ao ar no dia 7 de maio, às 19h15, na CNN Brasil na TV, YouTube e Prime Video.