Sobreviventes do ataque aéreo em Mianmar detalham massacre de inocentes
Segundo relator especial da ONU, resposta da comunidade internacional a Mianmar não foi focada nem estratégica, ao contrário da abordagem "coordenada" vista na invasão da Ucrânia pela Rússia
Nota do editor: Aviso: esta reportagem contém detalhes que alguns leitores podem achar perturbadores
Quando helicópteros e caças lançaram fogo e bombas em uma festa na aldeia no último dia 11, a junta militar de Mianmar insistiu que estava mirando em “terroristas”.
Mas entre os mortos naquele dia, no que foi o ataque mais mortífero das forças da junta contra civis desde que tomou o poder há dois anos, havia dezenas de mulheres e crianças, a mais nova com apenas seis meses de idade.
A CNN conversou com meia dúzia de testemunhas oculares e sobreviventes que disseram que os alvos na vila de Pazigyi, parte de um distrito autônomo na região central de Sagaing, eram civis desarmados desfrutando de uma celebração comunitária.
O ataque aéreo de 11 de abril matou 186 moradores, entre eles 40 com menos de 18 anos, de acordo com Aung Myo Min, ministro de direitos humanos do Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), a administração paralela de legisladores destituídos de Mianmar.
Famílias vieram de aldeias vizinhas para Pazigyi para tomar café da manhã no evento, uma reunião social para a inauguração de um salão da administração pública. Cerca de 300 pessoas se reuniram, disse uma testemunha ocular. As crianças comiam arroz e brincavam. As pessoas estavam bebendo chá e conversando.
A carnificina começou às 7h45 da manhã, quando caças da junta lançaram duas bombas sobre a multidão.
Um helicóptero Mi35 circulou por 15 minutos, abrindo fogo contra os feridos e aqueles que tentavam ajudá-los, disseram à CNN vários sobreviventes e grupos de ativistas no local.
Pouco antes do pôr do sol, um helicóptero militar voltou, atirando contra aqueles que vieram cremar os mortos, disseram testemunhas.
“Ouvimos um estrondo. Caí no chão, segurando o peito e tinha uma enorme nuvem de fumaça […] Levantei e percebi que minha filha tinha sumido”, disse um pai que sobreviveu ao atentado.
Enquanto os feridos gritavam por socorro, ele procurou freneticamente entre os mortos e feridos por sua filha de 3 anos e seus pais. Ele deseja permanecer anônimo porque teme represálias da junta.
Minutos depois, o helicóptero militar que circulava acima começou a atirar, disparando contra quem se mexesse.
“Era um campo de matança. Havia pessoas espalhadas por toda parte”, disse ele, lutando para falar. “Uma mulher morreu na minha frente. Eu estava tremendo e assustado […] por que eles matariam seus próprios civis?”.
“O cheiro daquele incidente ardeu e o fedor grudou nas minhas roupas”, disse ele.
Embora tenha sido ferido na explosão, o pai continuou a procurar por sua família nas pilhas de corpos e escombros. Várias horas depois, ele os encontrou.
Ele perdeu sete membros da família no ataque.
Devastado, ele disse à CNN que sua filha de 3 anos era uma menina “inteligente”, com um “rosto redondo e cheio” e de “boa conversa”.
Uma das últimas lembranças que ele tem da filha é ajudá-la a aplicar thanakha – uma pasta usada por mulheres e meninas birmanesas para proteger a pele – no rosto naquela manhã.
“Aquele foi o último dia dela viva, foi eu que a ajudei pela última vez?”, ele disse, caindo em lágrimas.
O pai disse que tenta se consolar sabendo que sua filha mais velha, de 7 anos, sobreviveu. Alguns aldeões perderam famílias inteiras.
Desde que derrubou o governo democraticamente eleito em fevereiro de 2021, a junta de Mianmar voltou cada vez mais seu formidável arsenal contra o povo que o governo antes representava.
O regime usou o poder aéreo para esmagar um movimento de resistência determinado a remover os militares do poder e restaurar a democracia. Mas os ataques também atingiram civis, escolas, hospitais e residências.
Houve 56 ataques aéreos da junta militar entre janeiro e março deste ano, segundo o embaixador de Mianmar nas Nações Unidas, Kyaw Min Tun, que representa o NUG. A CNN não pode verificar o número de forma independente.
Na quinta-feira (20) – 10 dias após o ataque mortal – os militares retornaram à área de Pazigyi para “operações de limpeza”, disse Aung Myo Min à CNN.
Os militares realizaram ataques aéreos na quinta-feira e enviaram cerca de 200 soldados para a área para “matar qualquer um que ficasse”, disse ele. A CNN não pode verificar o relatório de forma independente e procurou a junta militar para comentar.
Vídeos e imagens das consequências em Pazigyi, mostrados à CNN por testemunhas e um grupo de ativistas local, mostram corpos, alguns queimados irreconhecíveis ou em pedaços, bem como prédios e veículos destruídos e muitos escombros. Outros mostram a dor cega de sobreviventes e familiares, de pais gritando por seus filhos.
Temendo novos ataques, equipes de resgate e aldeões passaram dias limpando o local, varrendo detritos e queimando carne humana que cobria o chão.
Alguns sobreviventes fugiram para a floresta em busca de segurança e dizem que agora estão lutando por comida e água – com medo de voltar para suas aldeias.
Outro sobrevivente, que falou à CNN sob condição de anonimato por motivos de segurança, disse que perdeu 30 membros de sua família extensa. O mais novo tinha apenas dois anos e o mais velho 70.
Ele estava ajudando a cozinhar no evento e disse que sobreviveu pulando em uma vala.
“Minha sobrinha chorava e me abraçava, ‘tio me ajuda’, ela dizia”, relembra, visivelmente aflito. “Havia estudantes, grávidas, idosos. Que ameaça representam? Esses militares não são humanos. Eles são mais selvagens do que os animais”.
Aqueles que sobreviveram agora precisam lidar com o horror que viveram.
“Quantas crianças terão que morrer antes que os líderes mundiais tomem uma atitude?”, perguntou outro sobrevivente, que disse que sua sobrinha de 1 ano e seu sobrinho de 3 anos foram mortos no ataque.
Ataques diários a civis
Os militares de Mianmar travaram guerras de décadas com vários grupos étnicos armados. Os abusos dos direitos humanos contra as populações civis no país, particularmente nos estados étnicos, foram bem documentados.
Mas houve um aumento do poder de fogo dos militares desde o golpe, com ataques quase diários em todo o país, segundo grupos de monitoramento locais.
Um relatório de 2022 do Relator Especial da ONU sobre Direitos Humanos em Mianmar disse que os estados membros, incluindo Rússia e China, forneceram armas à junta desde o golpe – equipamentos que poderiam ter sido usados para atacar civis. Eles incluem caças, veículos blindados e sistemas de defesa aérea, de acordo com o relatório.
Um dia antes do ataque de Sagaing, os militares bombardearam uma escola e uma igreja no estado vizinho de Chin, disseram combatentes da resistência local e o Governo de Unidade Nacional de Mianmar. Nove pessoas foram mortas no ataque no município de Falam, incluindo o diretor da escola, sua esposa e seu filho.
A CNN não conseguiu entrar em contato com os militares para comentar o ataque em Chin, mas anteriormente negou ter alvejado civis, apesar de um crescente corpo de evidências.
Em março, pelo menos 22 pessoas, incluindo três monges, foram mortas em um mosteiro no sul do estado de Shan.
Os militares disseram que os civis foram atingidos por tiros e mortos por combatentes da resistência, enquanto a Força de Defesa das Nacionalidades Karenni negou que estivessem na área e culpou os soldados da junta.
O legista que realizou as autópsias disse à CNN que as vítimas apresentavam sinais de tortura e foram baleadas várias vezes, indicando que foram mortas intencionalmente.
Os aldeões com quem a CNN falou em Pazigyi disseram que não sabem por que a junta atacou sua aldeia.
Muitas áreas na região de Sagaing são redutos da resistência que não estão sob o controle dos militares, que consideram todos os combatentes da resistência pertencentes às Forças de Defesa do Povo e ao NUG como terroristas.
O porta-voz militar Major General Zaw Min Tun disse que o ataque a Pazigyi tinha como alvo “terroristas”. Os militares também afirmaram que a pólvora e os explosivos no local provocaram uma “grande explosão”, causando as mortes.
Ele alegou que os combatentes da resistência plantaram minas perto do local do ataque, que – junto com explosivos e pólvora que eles supostamente estavam armazenando – levaram a uma explosão. A junta também disse que civis inocentes podem ter sido forçados a ajudar os “terroristas”.
Dr. Derrick Pounder, um patologista forense independente que revisou as filmagens e fotos do ataque, disse que a área e o tipo de ferimentos por estilhaços nos corpos sugerem uma arma “lançada do ar”, e não uma mina terrestre, que causou a explosão.
“A área coberta pela explosão, o caráter dos ferimentos por estilhaços e os grandes fragmentos aparentes de estilhaços vistos apoiam fortemente a alegação de uma arma lançada do ar e são difíceis, senão impossíveis, de conciliar com a alegação de uma mina terrestre ou série de minas terrestres”, disse.
Alguns corpos gravemente machucados que ele verificou, “têm queimaduras instantâneas com perda de roupas devido aos efeitos da explosão e muitos mostram ferimentos por estilhaços e mutilações”.
“Algumas mutilações são extremas com desmembramento e estripação. Grandes fragmentos de metal, possivelmente do invólucro de um dispositivo explosivo, estão associados a alguns corpos”, acrescentou.
A “escalada campanha de terror” da Junta
O último massacre provocou protestos internacionais. Em declarações separadas, os embaixadores do Reino Unido e dos EUA na ONU condenaram o ataque aéreo e pediram ao regime que cesse sua violência.
O representante da ONU, Kyaw Min Tun, disse que os “crimes hediondos da junta militar claramente constituem crimes de guerra e crimes contra a humanidade”. “Esses ataques mostram a crescente campanha de terror da junta contra o povo de Mianmar”, acrescentou.
Para impedir que a junta decole seus jatos, há apelos crescentes por ações tangíveis da comunidade internacional, incluindo a proibição das importações de combustível de aviação, bem como um embargo abrangente de armas.
“Qualquer coisa que possamos fazer para tornar mais difícil, mais caro para eles colocarem esses helicópteros no ar para matar pessoas, para colocarem as mãos em armas, para colocarem as mãos na tecnologia que está sendo usada como armas”, disse o relator especial da ONU, Tom Andrews. “Qualquer coisa que o mundo possa fazer para impedir que esses materiais cheguem às mãos da junta, isso pode salvar vidas”.
Andrews disse que a resposta da comunidade internacional a Mianmar não foi focada nem estratégica, ao contrário da abordagem “coordenada” vista com a invasão da Ucrânia pela Rússia.
Os sobreviventes que perderam famílias no ataque da última terça-feira perguntam quantas pessoas mais terão que morrer antes que tal ação seja tomada.
“Queremos que você nos dê ajuda prática. Quantos de nós terão que morrer? Quanto tempo temos que sofrer?” disse o homem de Sagaing, que perdeu muitos familiares no ataque.
“Por favor, não nos abandone”, implorou.
*Com informações de Teele Rebane, Salai TZ e Su Chay, da CNN, e de Naw Kler Soe e Fon, que escreveram da Tailândia.