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    Xi Jinping queria que a China fosse uma potência do futebol; saiba o que deu errado

    Líder chinês almejava a qualificação do país para outra Copa do Mundo, sediar um dos eventos e ganhar o campeonato mundial

    Andrew McNicolAndrew Raineda CNN*

    Foi um sonho chinês impulsionado pelo mesmo tipo de ambição que viu o país sair da pobreza para se tornar a segunda maior economia do mundo no intervalo de apenas algumas décadas.

    Em 2011, cerca de um ano antes de se tornar o líder do país, Xi Jinping expressou sua visão de transformar a China de um nanico para uma superpotência do futebol.

    Ele pensou no maior prêmio existente do esporte e delineou um plano de três etapas para a seleção masculina: qualificar-se para outra Copa do Mundo, sediar uma Copa do Mundo e ganhar uma Copa do Mundo.

    Para um país que na época estava fora do top 70 das seleções do mundo e que se classificou para a maior competição de futebol apenas uma vez (em 2002) desde sua primeira tentativa em 1957, a dimensão da tarefa era imensa.

    No entanto, poucos duvidaram da determinação de Xi quando, em 2016, a Associação Chinesa de Futebol revelou um plano para tornar o país uma “superpotência mundial do futebol” até 2050.

    Para dar suporte a essa meta, uma onda de gastos virou a cabeça de jogadores e torcedores de todo o mundo. Conglomerados, construtoras e incorporadoras estatais, inflados por um boom imobiliário, encheram de dinheiro a principal competição doméstica do país.

    A Superliga Chinesa (CSL) virou um celeiro de estrelas estrangeiras em busca de altos pagamentos, e cada grande nome a assinar um contrato era mais surpreendente que o anterior. O brasileiro Alex Teixeira assinou com Jiangsu Suning por US$ 54 milhões (cerca de R$ 273 milhões); alguns compatriotas fizeram o mesmo: Hulk com o Xangai SIPG por U$ 60 milhões (cerca de R$ 303 milhões); e Oscar, também com o Xangai, por US$ 65 milhões (cerca de R$ 328 milhões).

    Logo a CSL estava rivalizando com as maiores ligas da Europa em termos de dinheiro gasto. No boom da temporada 2015-16, US$ 451 milhões (cerca de R$ 2,3 bilhões) foram gastos em transferências, levando o campeonato para as cinco principais ligas do mundo em termos de gastos.

    Entretanto, mais de uma década depois de Xi ter revelado o seu sonho publicamente pela primeira vez, as fortunas do futebol da China caíram tão rapidamente quanto subiram. Decisões financeiras precárias e a suposta corrupção no alto escalão, juntamente com uma pandemia de três anos, deixaram o esporte em frangalhos.

    Quando a Covid-19 atingiu a economia e o mercado imobiliário estagnou, os fundos de empresas estatais do estado secaram. Regras rigorosas de pandemia significaram menos torcedores assistindo aos jogos ao vivo e, consequentemente, menos patrocinadores.

    Os clubes lutaram para pagar salários; muitos dos jogadores e treinadores estrangeiros que haviam chegado para elevar o padrão do esporte no país desistiram – e vários citaram a postura rígida de zero Covid do governo como culpada, pois ela tornou impossível aos esportistas verem suas famílias.

    Com a temporada de 2023-24 do CSL começando em 15 de abril (num claro sinal do caos reinante, a data oficial de início foi anunciada com apenas uma semana de antecedência), a maioria das equipes ainda está freneticamente buscando substituições.

    Muitos acreditam que, na verdade, o estrago já estava feito muito antes de a Covid-19 entrar em campo e que o vírus “agravou todo o cenário financeiro da Superliga Chinesa, acelerando a sua queda e tornando quase impossível obter receitas de patrocinadores e emissoras”, de acordo com William Bi, um consultor esportivo baseado em Pequim.

    Enquanto as razões por trás do aparente desaparecimento do sonho de Xi continuam a ser uma questão de debate sem fim (como em qualquer bom jogo de futebol), os fatos concretos mostram que a maioria dos talentos estrangeiros trazidos para construir essa visão já deram no pé.

    As estatísticas não mentem: das 100 melhores ofertas de transferências da liga, de acordo com o banco de dados Transfermarkt, pelo menos 75 eram jogadores estrangeiros. Apenas três permanecem na China.

    A corrida do ouro

    Poucas coisas ilustram as tentativas e tribulações do futebol chinês tão bem quanto a entrada de jogadores de estrelas, nascidos e criados no exterior, que vieram para a CSL e adquiriram a cidadania chinesa para se tornarem elegíveis para a seleção masculina.

    A rápida naturalização de jogadores estrangeiros com laços familiares com a China foi vista como uma maneira rápida de elevar o padrão do esporte. O ex-jogador do Arsenal Nico Yennaris (agora conhecido como Li Ke) e o ex-jogador do Everton Tyias Browning (Jiang Guangtai), ambos com ascendência chinesa, estavam entre os primeiros a dar esse passo.

    Mais controversas foram as naturalizações de cinco brasileiros – Fernando (que se tornou Fei Nanduo), Aloisio (Luo Guofu), Elkeson (Ai Kesen), Ricardo Goulart (Gao Late) e Alan Carvalho (A Lan) – nenhum deles com laços chineses.

    Os céticos argumentam que todas essas naturalizações vieram durante os anos de boom, quando os tempos eram bons e o dinheiro estava fluindo. Durante a pandemia, os cinco brasileiros deixaram a China – e apenas dois voltaram. Ricardo Goulart, que saiu em 2021 depois de anunciar que seu time, o Guangzhou, não conseguia pagar seus salários, até renunciou à sua nacionalidade chinesa.

    E não foi só ele. Roberto Siucho, nascido e criado no Peru, foi outro que repensou sua posição. Siucho renunciou à cidadania peruana para pedir a naturalização através de seu falecido avô chinês depois de se transferir para os gigantes da CSL Guangzhou Evergrande em 2019.

    “Foi uma decisão muito difícil porque eu sabia que, uma vez que eu me tornasse um cidadão chinês, perderia minha chance de ser chamado para a seleção do Peru”, disse Siucho, que formalmente mudou seu nome para Xiao Taotao.

    “Mas eu senti que era uma boa opção. Acho que, se meu avô estivesse vivo, teria ficado muito feliz”.

    Passados alguns anos, Siucho se renaturalizou peruano e voltou para seu antigo time, o Universitario. Ele ambiciona entrar para a seleção peruana.

    Nenhum fato específico levou à decisão, e sim “um pouco de tudo”. Mesmo assim, houve um claro ponto de virada.

    “2019 foi um ano maravilhoso na China. Minha família conseguiu me visitar e viver experiências no país. Então a Covid aconteceu”, contou Siucho. “Chegou num ponto em que eu não tinha visto minha família por um ano e as regras me impediam de trazê-los enquanto as fronteiras estivessem fechadas. Muitos jogadores saíram por causa disso”.

    Covid-19, o ponto de virada

    Vencedor da Copa do Mundo de 2006 pela Itália, Fabio Cannavarro (o primeiro treinador do Siucho em Guangzhou) expressou um sentimento semelhante quando desistiu de US$ 28 milhões (cerca de R$ 141 milhões) em salários e bônus para ao deixar a posição em 2021, dizendo à mídia estatal que a “Covid mudou tudo”.

    Outros nomes estrangeiros sinônimos dos anos dourados da CSL, como o trio brasileiro Hulk, Paulinho e Alex Teixeira – que juntos custaram mais de US$ 150 milhões, ou cerca de R$ 758 milhões, só para chegar ao país – também saíram por meio de transferências gratuitas ou rescisão mútua.

    Alex Teixeira desistiu de seu pedido de naturalização e Paulinho, visto por muitos como um dos maiores jogadores da história da CSL, citou explicitamente a Covid em sua decisão de sair.

    A política severa de “zero Covid” da China obrigou os times a treinar e competir em locais “bioseguros” dos quais os jogadores não podiam sair durante meses.

    “Era difícil mentalmente não poder sair ou fazer nada. Mas foi a única maneira de continuarmos”, disse Siucho.

    Em meio a todos os surtos e lockdowns, os contratos foram muitas vezes adiados, levando a uma maior frustração. Quando havia jogos, eles ocorriam em estádios vazios desprovidos de clima de jogo. A saudade de casa bateu forte em muitos jogadores.

    “Por três anos, não consegui ser marido ou pai. Via minha família depois de nove, até 10 meses às vezes. Não é a vida que eu quero”, desabafou John Mary Honi Uzuegbunam, um cidadão camaronês que jogou pela equipe da CSL Shenzhen FC e pelo time da segunda divisão Meizhou Hakka de 2018 a 2022. Ele perdeu o nascimento de seus primeiros filhos, gêmeos, e seus dois primeiros aniversários.

    “Era um sentimento muito horrível o de voltar para casa do treino e ficar sozinho. Eu olhava para fotos da família no meu telefone e pensava: ‘caramba, sou um homem casado, eu tenho filhos, o que estou fazendo?’”

    Mary agora joga no Caykur Rizespor da Turquia.

    O dinheiro secou

    Ao mesmo tempo em que as restrições da Covid-19 tornavam a vida um martírio para muitos dos jogadores, a pandemia fazia estragos também nas empresas que bancavam seus salários.

    O grupo Evergrande, cujo colapso em 2021 desencadeou a pior crise do mercado imobiliário já registrada no país, fez com que o governo chinês colocasse sua mão forte no setor.

    O time de futebol masculino ligado ao grupo, o Guangzhou Evergrande, não conseguiu pagar integralmente os salários dos jogadores e, em 2022, o bicampeão asiático caiu de divisão na Superliga Chinesa.

    “O futebol chinês mudou, muitas equipes estavam em crises financeiras. Mesmo o Guangzhou, uma das melhores equipes da China, vivia uma situação difícil. Foi complicado”, contou Siucho.

    Estádios vazios não só não recebem dinheiro de ingressos como também perdem acordos de patrocínio. Com a economia do país vítima de um grande revés, conglomerados e desenvolvedores imobiliários tinham menos dinheiro para investir.

    Nem todos os problemas foram causados pela Covid. Alguns vieram simplesmente de más decisões de negócios. Em uma tentativa de promover o talento local, em 2017 a Associação Chinesa de Futebol (CFA) aumentou a tributação sobre as contratações no exterior: qualquer clube que gastasse mais de US$ 7 milhões (cerca de R$ 35 milhões) teria que pagar um montante igual à CFA. Os clubes responderam apertando drasticamente suas carteiras, o que por sua vez atingiu a presença dos torcedores e o interesse doa patrocinadores.

    As consequências de todas essas forças combinadas são pesadas. Um clube após o outro foi forçado a fechar enquanto lutavam para equilibrar as contas ou se manterem com seus salários de estrelas.

    Entre os maiores fracassos está o Jiangsu Suning, que fechou os portões em 2021 citando problemas financeiros apenas meses depois de ser coroado campeão da liga. No ano seguinte, o treinador Chang Woe-ryong, do time Chongqing Liangjiang, emitiu um pedido de desculpas emocionado dizendo que clube não conseguia pagar seus funcionários.

    Em janeiro, o Wuhan Yangtze se tornou a primeira equipe em 2023 a se retirar da liga. Foi a sexta desde o início da pandemia e uma das mais de 35 em todas as divisões. Em fevereiro, sete ex-jogadores e treinadores de Shenzhen apresentaram queixas à Fifa sobre salários não pagos.

    Em março, o Guangzhou City não conseguiu atender aos requisitos financeiros para jogar na nova temporada da CSL. O Hebei FC, enquanto isso, admitiu que se esforçava até para pagar contas de água e eletricidade, e nem sequer podia pensar nos salários.

    “Uma vergonha completa para a China”

    Trazer talentos estrangeiros para a CSL não significava apenas naturalizar estrelas nascidas no exterior, mas também melhorar o nível de jogadores locais de futebol na esperança de que isso, por sua vez, se refletisse na seleção nacional.

    A situação da seleção masculina da China no ranking mostra que isso não aconteceu, mesmo com a nomeação de um novo técnico, o sérvio Aleksandar Jankovic, num esforço para virar o jogo.

    Enquanto isso, a equipe feminina relativamente subfinanciada é talvez a única esperança do futebol chinês. O time número 14 no ranking mundial venceu a Asian Cup do ano passado e é considerado uma força para a Copa do Mundo Feminina da Fifa em julho.

    Da mesma forma, as chances da China de sediar uma Copa do Mundo parecem igualmente exageradas para o momento, tendo em conta os vários escândalos de corrupção que surgiram no futebol chinês.

    O órgão de fiscalização anticorrupção do Partido Comunista está atualmente investigando uma série de figuras da CFA, incluindo o ex-presidente Chen Xuyuan, o ex-vice-presidente Yu Hongchen, o ex-treinador Li Tie, o ex-secretário-geral Liu Yi, o ex-gerente geral da CSL Dong Zheng, o ex-chefe do comitê disciplinar CFA Wang Xiaoping  e outros.

    Como se isso não bastasse para dar à Fifa uma pausa para pensar em qualquer proposta futura da China, o único representante da Fifa do país, Du Zhaocai, perdeu recentemente o seu lugar.

    Em abril, Du se tornou o mais recente investigado numa série de “suspeitas de violações da disciplina e da lei”, com o governo atribuindo um grupo de trabalho de sete membros para liderar a CFA nesse meio tempo.

    Num sinal de que até mesmo os torcedores podem ter mudado de ideia, um vídeo com um ator popular criticando a seleção masculina na plataforma de mídia social chinesa Weibo recebeu centenas de milhões de visualizações no ano passado.

    O vídeo surgiu após uma série de derrotas da seleção, incluindo o 3-1 para o Vietnã, que encerraram as esperanças de se qualificar para a Copa do Mundo de 2022. O ator e comediante Gong Hanlin atacou os atletas com supersalários em um tipo de stand-up dirigido ao parlamento chinês, o Congresso Nacional do Povo.

    “Times de futebol com uma renda anual de 3 milhões, 5 milhões ou até mesmo dezenas de milhões, e mal se vê um gol no campo”, disse Gong. “É uma vergonha completa para o povo chinês”.

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