Ucranianos relatam o que têm feito em um ano de medo e incertezas
Adaptação constante tem sido chave para reforçar a resistência
O som da guerra cortou Kiev na madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022.
Em meio a destruições e o rápido avanço das tropas russas, a capital ucraniana despertou assustada.
Pessoas saíram às ruas em busca de orientação e abrigo. Policiais jogados para fora da janela dos carros empunhavam cones e pediam para que todos se escondessem. O sentimento era de medo e incerteza.
As estações de metrô se tornaram a única proteção para muitos. Como guerra não é novidade no país, muitos terminais já são preparados para servir de abrigos. Portas que mais parecem paredes de igrejas guardam o acesso à escada rolante.
Lembro-me de ter cronometrado o tempo que a descida durava. Passava de um minuto fácil.
Lá embaixo encontrei um homem que me contou que pretendia sair da Ucrânia o mais rápido possível, para garantir um local seguro à sua família. Mas reforçava que pretendia voltar para lutar, representando desde o primeiro dia a resiliência dos ucranianos.
Durante os primeiros meses de guerra, um dos principais métodos para sair de perto das regiões de combate – tanto por aqueles que tentam mudar de cidade, quanto por quem resolve atravessar as fronteiras, foi o transporte ferroviário.
E um dos principais destinos foi a cidade de Lviv, no Oeste do país. A quase 600 quilômetros da capital ucraniana, Lviv é considerada um dos pontos mais seguros do país. E foi da estação central da cidade que acompanhei muitas das partidas.
A guerra provocou o maior fluxo migratório dos últimos 50 anos. Mais de 8 milhões de ucranianos deixaram o país. A Polônia recebeu o maior número de refugiados na Europa.
Foi lá que encontrei a Valéria e sua mãe. Na época, me contaram que planejavam passar pouco tempo fora de casa. Um ano depois de chegar à Alemanha, a estudante explica que o retorno já não parece tão certo.
“Realmente eu pensei que seria por dois ou três meses, mas agora vejo que estamos aqui há um ano e nada. É difícil entender que a guerra não acabou ainda”.
A estudante conta que tem uma preocupação constante com quem ficou em seu país: “Pensamos neles todos os dias. Se ficamos sabendo que houve uma sirene na Ucrânia, nós logo ligamos para eles e perguntamos se está tudo bem. É algo como se todos os dias e a cada momento, eles pudessem morrer”.
Para contornar a ansiedade, um dos principais sentimentos de quem decidiu ficar ou não pôde sair da Ucrânia, o jeito tem sido se ocupar.
A Mariya Yasnyska decidiu ajudar jornalistas logo no começo da guerra e me acompanhou em parte desta cobertura. Ela é professora e conta que a restrição do uso de energia elétrica têm sido um dos principais desafios.
“O que mudou é que nós temos muitos apagões. E isso se tornou muito comum. Podemos ficar sem eletricidade por quatro horas ou por oito horas. E quando não tem eletricidade… sem eletricidade, não tem internet”.
Outro desafio é comprar comida e certos produtos nos preços médios, de antes da guerra. Desde que fábricas ucranianas foram tomadas por russos, os valores têm ficado instáveis.
“Ainda estamos nos adaptando. E precisamos encontrar maneiras de como trabalhar, como continuar trabalhando”. Mas o dia da guerra não sairá da memória de quem estava lá.
“É difícil esquecer um momento como esse. É como se você estivesse em um filme, sabe? Sobre a segunda guerra mundial. E você está vivendo todas as histórias que o seu avô te contou. E você é tão pequeno”, me conta Andriy, marido da Mariya.
Ele trabalha atualmente como tradutor em uma ONG de ajuda humanitária.
Desde o primeiro dia de guerra, ucranianos têm usado o que sabem fazer de melhor para ajudar como podem.
Ainda em março, conheci o Mirsolav na estação central de Lviv. O dentista aguardava uma locomotiva que levaria material cirúrgico a um colega voluntário em Kharkiv, no leste do país. A cidade foi duramente atacada no início da guerra.
Indignado, ele me contou que pessoas estavam ficando sem hospitais e poderiam morrer por falta de remédios.
Um ano depois, a luta de Miroslav em ajudar a salvar vidas continua. Agora, os esforços estão concentrados em angariar recursos pra compra de medicamentos, equipamentos de proteção e o que mais for necessário para ajudar aqueles que foram resgatados e quem segue na batalha.
O dentista já ajudou a organizar seminários para dentistas, que já arrecadaram mais de US$ 30 mil, além de leilões com objetos encontrados na linha de frente, que vão de pedaços de mísseis a bandeiras assinadas pelos soldados. Os lucros são revertidos para ajudar justamente quem está nas linhas de contato.
“Com um pouco da ajuda financeira, compramos carros e alguns desses carros foram levados para a linha de frente, alguns carros foram usados depois para retirar pacientes e também compramos um ônibus grande para organizar banhos quentes para os militares”, diz.
A instabilidade constante da guerra parece não impactar só um compromisso diário: cada um ajuda como pode. São incansáveis tentativas de se adaptar para continuar resistindo que têm surpreendido o mundo. Tudo pra tentar aliviar a dor de vidas e famílias que podem nunca mais ser as mesmas.