Especialistas veem escalada do conflito na Ucrânia, ainda sem previsão de fim
Guerra no Leste Europeu completa um ano nesta sexta-feira (24) sem acordo de paz
Na iminência do amanhecer do dia 24 de fevereiro de 2022 no Leste Europeu, o então secretário de imprensa do Pentágono dos Estados Unidos, John F. Kirby, declarava que as tropas russas estavam em posição para atacar a Ucrânia.
“O que vemos é que as forças russas continuam a se reunir mais perto da fronteira e se colocam em um estágio avançado de prontidão para realizar uma ação militar na Ucrânia novamente, praticamente a qualquer momento”, disse Kirby. “Eles estão prontos”, reforçou.
Momentos depois, sob o comando do presidente Vladimir Putin, o exército começava a bombardear e invadir o país vizinho.
Para isso, Putin autorizou uma “operação militar especial” na região separatista de Donbass, no leste ucraniano. Na localidade, estão Donetsk e Luhansk que, posteriormente, seriam anexadas à Rússia, junto com Kherson e Zaporizhzhia.
Após um ano, o conflito segue acirrado. Na última semana, os russos colocaram em marcha sua maior ofensiva desde fevereiro do ano passado, com grande mobilização de contingente operacional e material.
Entretanto, o alvo permanece o mesmo: Donbass. A cidade de Bakhmut, com cerca de 70 mil habitantes, continuava em mãos ucranianas, mas já cercada por três lados pelos russos.
Moscou empregou um grande número de soldados recentemente mobilizados e, de acordo com os ucranianos, mal treinados. O ministro da defesa russo, Sergei Shoigu, enviou para o conflito prisioneiros em troca de eventual anistia, se ainda estiverem vivos.
Os ucranianos e fontes ocidentais esperam, desta vez, um emprego bem mais amplo da força aérea russa. Há relatos de que os russos estão concentrando grande número de jatos de combate e helicópteros de ataque em áreas bem próximas ao Donbass.
A CNN conversou com especialistas para saber o que esperar da guerra nesse segundo ano.
Para Christopher Mendonça, professor de Relações Internacionais do IBMEC de Belo Horizonte, no começo do conflito, alguns analistas observavam que o mesmo não duraria muito tempo, pela diferença de poder bélico entre os dois países. Entretanto, o que vimos foi diferente.
“A guerra continua escalando e considero que teremos em 2023 dificuldades para a finalização do conflito diante dos grandes impasses entre os dois países”, explica Mendonça.
“É difícil dizer com certeza qual o prazo para o fim da guerra mas, nas condições que estamos observando neste momento, não vislumbro que estamos na fase final do conflito. A Rússia encontra dificuldades estratégicas para recuar e os ucranianos tem recebido ajuda externa para manter-se no campo de batalha. Ainda teremos dias de muita destruição no leste europeu”, continua.
Em 3 de fevereiro, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, anunciou um pacote no valor de mais de US$ 2,17 bilhões para a Ucrânia, incluindo mísseis de longo alcance pela primeira vez.
Em uma visita a Kiev no dia 20 de fevereiro, Biden anunciou mais meio bilhão de dólares ao país, juntamente com equipamentos militares, incluindo munições de artilharia.
Um dia após a ida de Biden ao Leste Europeu, Putin alegou em seu discurso anual que o governo ucraniano está protegendo os interesses de seus “mestres ocidentais” em vez dos próprios interesses nacionais do país.
“O regime de Kiev e seus mestres ocidentais assumiram completamente o controle da economia do país”, afirmou o presidente russo. “Eles destruíram a indústria e a economia ucranianas”, continuou.
“Eles são responsáveis pela escalada da situação na Ucrânia… pelo grande número de baixas”. “E, claro, o regime de Kiev é essencialmente estranho ao povo da Ucrânia. Eles não estão protegendo seus próprios interesses, mas os de seus países de guarda”, finalizou o lider russo.
Em seu discurso de Estado da União em 8 de fevereiro, Biden havia declarado que “juntos, fizemos o que a América sempre faz de melhor”, se referindo a união de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) de outras nações que não fazem parte.
“Nós lideramos. Unimos a Otan. Construímos uma coalizão global. Resistimos à agressão de Putin. Ficamos ao lado do povo ucraniano”, expôs.
Daniela Secches, professora do departamento de Relações Internacionais da PUC-Minas, explica que a única certeza possível no momento sobre o conflito é o seu papel de promoção e aceleração de mudanças profundas na ordem internacional contemporânea.
“O conflito e seu prolongamento tendem a acelerar um processo de desglobalização e autarquização dos Estados, que passam cada vez mais a buscar depender menos das dinâmicas globais. Isso se deve, por um lado, ao considerável impacto que o conflito teve na economia global, especialmente por conta do papel dos Estados envolvidos no comércio internacional de gás, petróleo e grãos”, exemplifica Secches.
“Por outro, a antagonização com a Rússia, uma importante potência militar internacional, tende a interferir nos alinhamentos entre os Estados do sistema internacional. Por exemplo, em tempos recentes, a União Europeia havia se aproximado bastante do Kremlin em termos cooperativos, processo esse que agora é desconstruído diante do conflito. O isolamento da Rússia tende, ainda, a impactar na relação entre as grandes potências em um sentido mais amplo, considerando, em especial, potências asiáticas como a China e a Índia”, continua.
Resistência ucraniana
Drones militares ucranianos registraram neste mês cenas caóticas das tropas russas em torno da cidade de Vuhledar, em Donestk. Tanques andavam descontrolados antes de explodir ou cair em campos minados, soldados corriam em todas as direções, alguns com corpos em chamas, e outros já mortos ficavam presos nos veículos de combate.
Cerca de 20 vídeos geolocalizados pela CNN mostram erros táticos básicos em uma área aberta e plana, onde observadores ucranianos em terrenos mais altos podem direcionar ataques de artilharia e onde campos minados estão piorando as baixas russas.
Um vídeo mostra um tanque entrando em um campo minado e explodindo, seguido quase inconscientemente por um veículo de combate de infantaria que sofre o mesmo destino. Outros mostram drones ucranianos lançando pequenas cargas explosivas em tanques estáticos em campo aberto – e um cemitério de blindados abandonados.
Pelo menos duas dúzias de tanques e veículos de infantaria russos foram desativados ou destruídos em questão de dias, segundo os vídeos, divulgados pelos militares ucranianos e analisados pela CNN e especialistas militares. Imagens de satélite mostram padrões intensos de impactos ao longo das linhas de árvores onde os tanques russos tentaram avançar.
Mesmo que alguns cenários sejam desfavoráveis à Rússia, Daniela Secches analisa que os ganhos ucranianos na região ainda são “marginais”, se for levado em conta o tamanho do Donbass, que hoje é controlado e/ou ocupado pelos russos, em conjunto com o diferencial de suas capacidades militares.
“Os Himmers [sistema de artilharia móvel] enviados pelas potências ocidentais permitiram mais mobilidade ao exército ucraniano e avanço no território. Contudo, a capacidade militar russa é superior, em especial no que diz respeito aos ataques aéreos.”
Ao visitar o Reino Unido em 8 de fevereiro, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, recebeu uma promessa do governo local de treino para pilotos ucranianos em caças avançados da Otan.
O gabinete do primeiro-ministro Rishi Sunak anunciou sanções adicionais à Rússia, bem como planos para acelerar o fornecimento de equipamento militar a Kiev. Pela primeira vez, a Força Aérea e os fuzileiros navais da Ucrânia serão incluídos no programa de treinamento britânico.
“O treinamento garantirá que os pilotos sejam capazes de pilotar sofisticados caças padrão-Otan no futuro”, afirmou a nota.
O comunicado não deu prazo para o treinamento, e autoridades britânicas disseram que ensinar pilotos a usar jatos britânicos leva anos. Mas o primeiro compromisso desse tipo sinaliza o endosso de um relacionamento de segurança de longo prazo com Kiev e pode abrir caminho para que aliados enviem aviões.
Secches especifica que “o envio de jatos, por exemplo, levaria bastante tempo para fazer uma diferença em favor dos ucranianos, pois é um equipamento que demandaria ainda o treinamento de pilotos.” E, por isso, então, em sua visão, “o passar do tempo conta a favor dos russos.”
Christopher Mendonça ratifica que uma das grandes dificuldades da Ucrânia é sua debilidade em termos de força aérea. Em sua opinião, “ter vantagens no ar é um fator muito importante em um conflito.”
“Com ajuda de outros países as Forças Armadas ucranianas tem conseguido manter certo equilíbrio de poder frente às ofensivas russas. Não há certeza sobre a capacidade de resistência da Ucrânia [especialmente no tempo que o país conseguirá manter] mas certamente a ajuda externa recebida pelos mesmos tem prolongado o conflito”, prosseguiu.
Possibilidade de entrada da Otan no conflito e ameaça nuclear
Após intensos debates dentro da Otan em janeiro, os governos da Alemanha e dos Estados Unidos aprovaram o envio de tanques para fortalecer a defesa ucraniana.
Os alemães mandarão pelo menos 14 tanques modernos do modelo Leopard 2 – outros países europeus podem enviar mais algumas dezenas. O número é suficiente para equipar uma companhia de tanques no padrão ocidental da Otan, composta por três pelotões (com quatro tanques cada) e mais dois tanques na sede, de acordo com as especificações do exército norte-americano.
De acordo com o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, os tanques Leopard 2 fornecidos pela Alemanha podem ser implantados operacionalmente na Ucrânia dentro de três meses.
“O objetivo é montar rapidamente dois batalhões de tanques Leopard 2 para a Ucrânia”, disse o comunicado, com o restante a ser completado por suprimentos de parceiros europeus.
Os EUA enviarão 31 tanques M1 Abrams – suficientes para equipar cerca de duas companhias –, fabricados no país. Na referida data, Joe Biden também havia destacado que o Reino Unido enviará seus próprios tanques Challenger 2 – pelo menos 14, segundo o governo britânico – embora não haja detalhes sobre os prazos.
Entretanto, mesmo com a grande ajuda à Ucrânia, os especialistas não observam uma entrada direta da Otan no conflito.
Em 21 de fevereiro, Putin suspendeu a participação russa no novo tratado START com os Estados Unidos, que limita os arsenais nucleares estratégicos dos dois lados.
Segundo Daniela Secches, a participação da organização na guerra colocaria frente à frente as duas maiores potências nucleares do mundo. “Juntos, Rússia e EUA detêm mais de 90% do arsenal nuclear mundial. Isso significa que um confronto direto entre os dois Estados, que seria materializado com a entrada da Otan, é algo muito custoso para todos por abrir caminho para uma destruição mútua assegurada.”
“Diante desse elemento, acredito que seja improvável uma entrada direta da Otan, a menos que ocorra, por exemplo, algum tipo de ataque a Estados membros da organização, como a Polônia, ou algum outro evento inesperado.”
Christopher Mendonça cita que, conforme a legalidade do estatuto da entidade, para sua entrada seria necessário vivenciar um ataque a um dos países que fazem parte.
“Embora o conflito na Ucrânia tenha impactos diretos sobre a segurança europeia não houve por parte dos russos nenhum ataque a um país que compõe a aliança militar. A entrada da Otan não é impossível, mas é bastante improvável. ”
O professor de relações internacionais do IBMEC observa que o risco de se usar armamentos nucleares é muito alto.
“Na verdade, as armas de destruição em massa foram criadas para não ser usadas mas para garantir certo nível de capacidade de negociação entre os países. Acredito que um ataque nuclear seja improvável mesmo sendo a Rússia uma grande potência nessa área. Um ataque desta magnitude asseguraria um contra-ataque de igual ou maior capacidade, o que geraria um contexto de grande destruição. Racionalmente não é este o objetivo de nenhum dos países envolvidos no conflito.”
Fim da guerra
Em novembro do ano passado, durante seu discurso virtual aos líderes do G20, em Bali, na Indonésia, Zelensky apresentou um plano de paz com dez pontos para pôr fim a guerra.
Na ocasião, o líder ucraniano disse acreditar que aquele seria o momento que a guerra poderia ter fim. “Estou convencido de que agora é a hora em que a guerra destrutiva russa deve e pode ser interrompida”, afirmou.
Veja os pontos apresentados pelo líder ucraniano:
- Radiação e segurança nuclear
- Comida segura
- Segurança energética
- Libertação de prisioneiros e deportados
- Implementação da Carta da ONU
- Retirada das tropas russas e cessação das hostilidades
- Justiça
- Ecocídio e a proteção do meio ambiente
- Prevenção de escalada
- Confirmação do fim da guerra
Sobre o fim do conflito com a retirada das tropas russas do território ucraniano e cessação das hostilidades, Daniela Secches relata não acreditar ser possível a adoção da medida no atual estágio ou uma cessão russa.
“Tanto o Kremlin quanto Kiev articulam a questão territorial como central para eles, e não parece haver espaço para concessões no momento. De um lado, para ter algum tipo de vitória, a Rússia precisa garantir a Crimeia e acesso a ela. Por outro, a posição de Zelensky passa por defender a inegociabilidade da integridade territorial da Ucrânia.”
A negociação proposta por Zelensky, para Christopher Mendonça, geraria um incomodo na Rússia, visto que até o momento nenhum acordo foi firmado.
“O presidente ucraniano tem tentado negociar o fim do conflito. Algumas sugestões foram apresentadas à diplomacia russa mas ainda sem sucesso. O cumprimento dos ‘pontos de Zelensky’ significariam um recuo das Forças Armadas russas, o que geraria um grande desconforto ao presidente Putin que pretende sair deste contexto vitorioso.”
“Neste sentido não vejo como provável o atendimento das demandas do presidente ucraniano pelo Kremlin.”
Retirada das tropas russas da Ucrânia aprovada na Assembleia-Geral da ONU
A Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, na última quinta-feira (23), uma resolução de pede a retirada das tropas russas da Ucrânia.
Por 141 votos a favor, 7 contrários e 33 abstenções, o texto traz recomendação do Brasil pela “cessação de hostilidades” entre Rússia e Ucrânia.
A CNN teve acesso ao texto na íntegra em que, por sugestão dos brasileiros, países-membros “reiteram suas demandas para que a Rússia imediatamente, completamente e incondicionalmente retire todas as suas forças militares do território ucraniano dentro das fronteiras reconhecidas internacionalmente e apela a uma cessação de hostilidades”.
Mendonça pontua que pouco provavelmente a ação terá efeitos práticos e imediatos. “O fórum adequado para discussões com este teor é o Conselho de Segurança, órgão no qual a Rússia tem poder de veto além de dispor de assento permanente. O Conselho de segurança vive um momento de paralisia decisória exatamente pelo fato de que a Rússia [e talvez a China] tende a vetar qualquer proposta que favoreça a Ucrânia ou que possa ser considerado um recuo russo.
“O Donbass ainda é foco de profunda violência e o diagnóstico que trago é de que o conflito tende a perdurar pelos próximos meses, sem um horizonte próximo de encerrar as ofensivas entre os dois países”, finaliza.
Rússia analisa medidas de paz formuladas pelo Brasil
O vice-chanceler russo, Sergei Ryabkov, expôs, também na quinta-feira, que o país analisa as iniciativas de paz formuladas pelo presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de acordo com a agência de notícias Tass.
Ainda foi pontuado que Moscou “aprecia a posição equilibrada do Brasil“, citando a recusa de Lula de enviar munições para o conflito.
Em uma entrevista exclusiva à CNN, em 10 de fevereiro, antes de um encontro com Biden na Casa Branca, Lula declarou que se mandasse munições para o conflito, estaria entrando na guerra. Em sua opinião, a invasão russa foi um equívoco e ela não poderia ter feito isso por fazer parte do Conselho de Segurança.
Na opinião de Mendonça, “o Brasil vivenciou uma mudança de governo [sai Jair Bolsonaro e entra Lula] mas do ponto de vista de seu posicionamento no conflito russo-ucraniano houve uma manutenção de princípios e de posicionamento. O Brasil é, por si, um país que evita se envolver em contextos de crise de segurança. Embora discursivamente o presidente Lula tenha condenado as ofensivas entre os dois países o Brasil mantém uma posição de neutralidade”, expõe Mendonça.
A posição é complementada por Secches: “Nossa tradição é de assumir papeis de mediação e de promoção de soluções pacíficas. Diante disso, não considero que seja uma decisão que impacte de forma muito significativa a imagem internacional do Brasil.”
(*Com informações da CNN)