Pesquisador de Harvard diz que Lula acerta ao priorizar América Latina e clima na política externa
Hussein Kalout afirmou à CNN que o país precisa se manter neutro na disputa entre Estados Unidos e China e que deve promover o diálogo na Venezuela
O professor Hussein Kalout, pesquisador da Universidade de Harvard e ex-secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2016 e 2018, disse à CNN que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acerta ao dar prioridade na sua política externa para a integração com a América Latina e para as questões climáticas.
Conselheiro Consultivo Internacional do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri) e um dos mais reconhecidos especialistas em relações internacionais do país, Kalout fez um balanço da recente visita de Lula à Argentina e ao Uruguai, além da participação dele na reunião de cúpula da Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos).
Ele afirmou que o Itamaraty terá que fazer um trabalho de reconstrução da política externa depois que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) “conseguiu isolar o Brasil” na sua própria região e também no âmbito do sistema multilateral. O ex-presidente e seus aliados sempre negaram esse isolamento.
Sobre o clima, Kalout foi enfático: “o papel do Brasil na discussão da geopolítica climática é indispensável. Não há como discutir a política do clima no mundo hoje sem o Brasil”.
Durante a entrevista exclusiva, o professor também afirmou que os interesses nacionais exigem que o Brasil se mantenha neutro na crescente disputa geopolítica e econômica entre os Estados Unidos e a China.
Para ele, os Estados Unidos são um país “insubstituível” para nossas relações enquanto a China é “um sócio indispensável”. Os dois países, vale lembrar, são os maiores parceiros comerciais do Brasil.
Kalout disse ainda que Brasília deve promover o diálogo na Venezuela, já que as outras alternativas possíveis (intervenção, isolamento e sanções) não funcionaram. Ele acha que o envolvimento do Brasil será vital para um processo de volta da normalidade democrática à Venezuela e lembra que propor o diálogo “não significa concordar” com um lado ou outro.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Viagem de Lula à Argentina e Uruguai
A viagem do presidente Lula à Argentina e ao Uruguai foi importante e necessária pela perspectiva estratégica do reposicionamento do papel e da presença do Brasil na América do Sul.
Eu acho que mais importante do que o conteúdo [discutido nas reuniões] em si é o simbolismo da visita. O fato é que ao longo dos últimos 4 anos, o Brasil perdeu latitude, perdeu a impulsão no teatro geopolítico latino-americano.
O Brasil renunciou nesse período à sua condição de líder natural da região. Deixou de ser um ator responsável pelo processo de integração do desenvolvimento.
Então o maior valor agregado da viagem foi a restauração da presença brasileira em seu entorno regional. A América Latina em geral e a América do Sul, em particular, serão prioridades na agenda da política externa brasileira.
Prioridade para a América Latina
A América Latina tem mesmo que ser a prioridade [da política externa brasileira]. Vamos pensar em duas dimensões: a dimensão global e a dimensão regional. O Brasil não terá condições de ser um ator global, se ele não consegue se consolidar como um ator regional.
Nenhum país do mundo consegue ser um ator de grande influência nas relações internacionais em grandes temas mundiais, se ele não consegue influir no seu entorno regional. Se você não consegue liderar na sua própria região, você não vai conseguir liderar em outros tabuleiros mais complexos e mais competitivos.
Isolamento sob Bolsonaro
O governo Bolsonaro conseguiu isolar o Brasil seja na dimensão regional seja uma dimensão global, e também no âmbito do sistema multilateral. Eu acho que o trabalho que terá que se fazer hoje na política externa brasileira é um trabalho de reconstrução. Um trabalho de criação de uma nova estratégia de política internacional que seja capaz de defender o interesse nacional.
Política climática
É um retorno conjugado com os interesses de curto, médio e longo prazo. Por exemplo: uma das prioridades do governo hoje são as políticas relacionadas a combater as mudanças climáticas.
Se você quer discutir isso no tabuleiro, digamos das Nações Unidas, num tabuleiro junto com as potências europeias, asiáticas e junto com os Estados Unidos, você tem que começar a organizar o contorno amazônico.
Então, você precisa discutir isso no contexto regional. Você não tem como discutir isso no contexto global se você não harmonizar a política regional, entende? Imagine se o Brasil vai discutir o tema da Amazônia com outras forças globais e o país tem uma visão totalmente diferente dos demais países da Amazônia na América do Sul.
O papel do Brasil na discussão da geopolítica climática é indispensável. Não há como discutir a política do clima no mundo hoje sem o Brasil. Então o país tem um peso gravitacional muito próprio nesse tema.
Mas, ao mesmo tempo, o Brasil precisa construir um projeto de desenvolvimento sustentável em conjunto com os países que também têm partes da floresta amazônica.
É preciso discutir marcos de proteção ambiental modernos e alinhados com esses países se a gente for discutir uma nova matriz energética limpa.
Para o Brasil liderar nesse aspecto é importante aglutinar esses países e desenhar uma estratégia conjunta com os nossos vizinhos.
Relações com a Venezuela
Nós temos um problema real na Venezuela que o próprio governo Lula reconhece. Como conseguir avançar com a democracia por lá? A intervenção pelo uso da força não é uma solução plausível. O isolamento também não é plausível. Já tentou-se o isolamento e não funcionou. Aplicar sanções também não resolveu.
Tanto é que quando explodiu a guerra na Ucrânia, a primeira coisa que os Estados Unidos fizeram foi mandar uma delegação para Caracas para negociar com o [presidente Nicolás] Maduro para comprar petróleo por causa da necessidade de ter acesso a recursos energéticos venezuelanos. Ou seja, os Estados Unidos tiveram que flexibilizar a sua posição em função de sua necessidade estratégica.
Isto revela o quê? Que o isolamento, o uso da força e a imposição não vão funcionar no contexto latino-americano. Então, o que sobra: o diálogo.
E para ter um diálogo é preciso construir um arcabouço baseado na confiança e é preciso a partir daí trabalhar dentro de um cronograma no médio prazo para convencer tanto a situação quanto a oposição de que o único caminho é o diálogo.
E eu acho que o papel do Brasil nesse processo será vital. Propor o diálogo não significa você concordar [com um ou outro lado]. Eu entendo que a situação da Venezuela é uma situação dramática, uma situação complexa. Mas as outras fórmulas não funcionaram. Então, eu só enxergo um caminho: o diálogo.
Disputa estratégica entre EUA e China
Eu acho que o Brasil, nessa disputa, não tem que tomar o lado nem da China e nem dos Estados Unidos. Tem que tomar o lado do Brasil, com suas decisões estratégicas. Nós temos a obrigação de combater a fome, de reduzir a pobreza, de reduzir a desigualdade, de gerar emprego, gerar renda e gerar crédito.
Então, se o nosso interesse são esses e também queremos ser artífices das discussões climáticas, de lutarmos por uma ordem internacional multipolar, então nós temos que atuar dentro de uma lógica que preserva a nossa capacidade de atuarmos com os dois países.
Eu acho que os Estados Unidos são um país insubstituível dentro do mapa estratégico da política externa brasileira. É o principal investidor direto no Brasil e o segundo maior parceiro comercial. É onde temos uma grande comunidade brasileira no exterior. É um parceiro importante há mais de um século. Portanto, é um sócio hemisférico insubstituível.
E a China é um sócio estratégico indispensável. É o nosso principal parceiro comercial. É nosso sócio nos Brics (o grupo que reúne, além do Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul). Então o Brasil pode atuar como um ator capaz de reduzir o grau de tensão entre os dois países e nós temos que maximizar os nossos interesses com os dois lados, não tomar partido nessa contenda.
Envolvimento na disputa não serve ao interesse nacional brasileiro. Nós não podemos sacrificar nossa relação com os Estados Unidos para atender uma demanda da China e não podemos sacrificar a nossa relação com a China para atender uma demanda dos Estados Unidos.
Guerra entre Rússia e Ucrânia
A gente tem que ter noção e clareza das nossas capacidades de poder nas relações internacionais. Nossa capacidade real efetiva e prática para influenciar esse conflito é mínima. Os nossos recursos de poder são limitados.
Nós temos que reconhecer isso. Mas a nossa capacidade de influenciar precisa ser propositiva, em prol da paz.
Nossas relações internacionais, historicamente desde o Barão do Rio Branco até o presente momento, excetuando o governo Bolsonaro, sempre foi de respeito ao direito internacional.
Sempre defendemos que o uso da força só pode ser empregado a partir de resoluções autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
A nossa posição tradicional sempre foi a de que o uso da força é o último recurso e só pode ser utilizado se for debaixo de um arcabouço legal. O Brasil pode liderar pelo exemplo, pode contribuir se puder contribuir diminuindo as tensões.
Agora, esse conflito só terá um fim a partir de um entendimento entre a Rússia e os Estados Unidos. Somente assim, a partir de movimentos da Rússia e dos Estados Unidos, com atuação de França e Alemanha por um lado e da China por outro lado. Esses são os players diretamente envolvidos na questão.
E a Turquia foi escolhida, digamos, como um árbitro entre esses dois campos. Então, o Brasil pode somar esforços na tentativa de apaziguar os ânimos, mas o país não tem capacidade ou recursos de poder para influenciar muito o conflito.
Acordo Mercosul x União Europeia
Ficou claro, tanto pelas lideranças europeias como Alemanha e França como pela posição do presidente Lula, a intenção de avançar com o acordo. Desde sua vitória, o presidente Lula vem reiterando a importância da materialização desse acordo.
Obviamente que a materialização desse acordo depende dos países que integram os dois blocos. Mas o que eu vejo como mais importante é a disposição política dos principais países europeus e do principal país do Mercosul para avançarem.
Até onde vai o meu conhecimento, existe ainda a demanda de alguns pequenos ajustes aos corpos do acordo. Mas esses são ajustes muito mais pontuais agora.
África e Ásia
Acho que o Brasil precisa ter um olhar específico para a África, porque hoje a África é um dos continentes que mais crescem.
O Brasil precisa encontrar uma nova abordagem econômica, uma estratégia de inserção econômica e comercial específica para a África. Isso é fundamental, além de uma relação social e cultural.
Além disso, o Brasil precisa ter uma estratégia muito específica para a Ásia. O centro gravitacional das relações internacionais se deslocou para a Ásia, e o Brasil precisa buscar uma abordagem especial para o tabuleiro asiático. Isso é fundamental no âmbito do sistema multilateral.
O Brasil agora precisa definir a ordem de suas prioridades. Só assim o Brasil vai cumprir com o que eu chamo de multilateralismo útil porque não adianta entrar na ciranda do ativismo diplomático e começar a navegar de forma voluntariosa em todos os tabuleiros internacionais sem primeiro ranquear essas prioridades e definir o que que é útil e o que que é prioritário no momento para o governo e quais são as necessidades do país. E aí concentrar seus esforços nas prioridades.
A ordem internacional está passando por transformações, nós estamos saindo de uma ordem internacional euro-americano centrista para uma ordem internacional em que a Ásia e a África ganham maior importância.
Os estudos nas relações internacionais apontam que há um crescimento latente da importância do continente asiático. Teremos uma nova ordem internacional que será regida a partir do continente Asiático.
Então hoje, quando os Estados Unidos tentam conter o poder ascendente da China, isso revela a importância e a elevação do continente Asiático. E quando a gente fala de África nós estamos percebendo uma disputa também pelos recursos naturais da África.