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    Moeda comum entre Brasil e Argentina é “irrealista” por ora, dizem especialistas

    Segundo economistas consultados pela CNN, ainda há uma longa lista de condições que precisam ser atendidas antes da adoção de uma moeda única

    Tamara Nassifda CNN , em São Paulo

    Em primeira viagem internacional de seu terceiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) encontrou com o mandatário argentino Alberto Fernández em Buenos Aires, em que foram retomadas as discussões sobre uma possível moeda comum entre as duas maiores economias da América do Sul.

    No começo desde mês, o tema também foi debatido entre o ministro da Fazenda do Brasil, Fernando Haddad, e o embaixador argentino no país, Daniel Scioli. Na época, Scioli disse que o objetivo é fortalecer o bloco comercial e ampliar o vínculo entre os países da região. Para ele, a ideia não é criar uma moeda única como o euro — moeda oficial dos países-membros da União Europeia — mas sim uma para o bloco.

    O instrumento — que, em tese, poderia impulsionar o comércio regional latino-americano e reduzir a dependência do dólar dos Estados Unidos — ganhou destaque novamente após os dois presidentes assinarem um artigo em conjunto, em defesa de uma moeda comum apelidada de “sur” (sul, em espanhol). Nesta segunda-feira (23), Lula confirmou a intenção durante discurso no país vizinho, ao lado de Fernández.

    “O que nós estamos tentando trabalhar agora é que nossos ministros da Fazenda, cada um com sua equipe econômica, possa nos fazer uma proposta de comércio exterior e de transações entre os dois países, que seja feito numa moeda comum a ser construída com muito debate, muitas reuniões. Isso é o que vai acontecer”, disse o presidente.

    Para especialistas consultados pela CNN, porém, o debate é amplo e “irrealista no curto e médio prazo”.

    “É verdade que uma união monetária entre os dois países poderia trazer benefícios, como aumento do comércio e dos investimentos entre eles e maior estabilidade macroeconômica”, diz Andres Pardo, economista-chefe para a América Latina da XP Investimentos.

    “No entanto, há uma longa lista de condições que precisam ser atendidas antes da adoção de uma moeda única, e essas condições estão longe de serem atendidas. A iniciativa não é nova e já foi mencionada algumas vezes no passado, sem nenhum desenvolvimento real. Não é algo realista a curto ou médio prazo.”

    As ditas “condições” esbarram, por exemplo, no ponto de partida de cada um dos dois países do ponto de vista macroeconômico, como níveis de inflação, taxas de juros, dívida pública e reservas internacionais. Para se ter uma ideia, a Argentina registrou 94,8% de inflação no acumulado de 2022; o Brasil, 5,79%.

    “Para adotar uma moeda comum, é importante que os países atendam a algumas condições básicas, como algum grau significativo de integração econômica, comercial, financeira, bancária, fiscal, entre outras. No entanto, pouquíssimas condições estão sendo atendidas, se é que há alguma. As semelhanças nas políticas e estruturas econômicas são muito importantes e, nesse ponto, as da Argentina são muito diferentes das do Brasil. As dificuldades políticas que prevalecem em cada país também são um fator contrário a tal iniciativa”, diz Pardo.

    Com a disparidade de conjunturas econômicas, os atrativos de uma moeda comum são mais claros para os vizinhos sul-americanos, cuja inflação beirando os 100% ajudou a desvalorizar o peso perante o dólar. Na cotação oficial mais recente, US$ 1 equivale a 184 pesos argentinos. A preocupação está no ônus brasileiro, com a ideia de atrelar a maior economia da América Latina à volátil Argentina.

    “Qual a vantagem para o Brasil? Com que dinheiro e em que moeda a Argentina vai pagar?”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper.

    Na mesma linha, a economista-sênior da Bloomberg Economics, Adriana Dupita, analisa que a adoção da moeda comum exige estabilidade financeira.

    “Só se pode fazer uma movimentação nesse sentido quando os países têm um mínimo de estabilidade financeira para que suas moedas sejam aceitas. E, se essas moedas não são aceitas internacionalmente, como é o caso do real e do peso, uma moeda que combine as duas também não vai ser”, declarou ela.

    “Do lado positivo, o fato de que o Brasil está tentando retomar a liderança na América Latina pode ajudar a dar mais fôlego ao acordo entre Mercosul e União Europeia”, acrescenta Dupita.

    Segundo disseram analistas à âncora do CNN Money, Thais Herédia, ninguém quer criar um euro latino. É um projeto de longo prazo, a semente de um instrumento que pode fortalecer e aumentar a eficiência comercial entre os dois países. Por enquanto, “colocar a carroça na frente dos bois” não é visto como viável.

    “Unidade de conta sul-americana”

    Mais cedo, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, havia comentado sobre a possibilidade de um mecanismo para viabilizar transações comerciais com a Argentina para delimitar a dependência do dólar.

    Segundo apuração da analista de economia da CNN Raquel Landim, os dois países formaram um grupo de trabalho para avaliar a viabilidade de uma “unidade de conta sul-americana”. O mecanismo, que vinha sendo chamado de moeda comum, ganhou outro nome para evitar confusão.

    A ideia seria viabilizar financiamentos de exportações brasileiras para a Argentina por meio de bancos públicos e privados. Em troca, o Brasil teria como garantia os recebíveis dos contratos de exportação, por exemplo, de gás natural.

    A proposta, na análise de Marcos Lisboa, não é a melhor do ponto de vista da política externa brasileira.

    “A Argentina tem um problema grave de inflação e restrição cambial, e os investidores têm uma dificuldade imensa em receber o dinheiro que lhes é devido. Não tem jeito de resolver isso, é um problema da Argentina”, diz Lisboa.

    “E, infelizmente, o Brasil de novo não está optando por fazer acordos com países que podem nos beneficiar, como Europa, [membros da] OCDE, Estados Unidos e leste asiático, que, aliás, é muito complementar à economia brasileira.”

    A “unidade de conta sul-americana” divide opiniões. Para José Augusto de Castro, presidente da Associação Brasileira de Exportadores (AEB), por exemplo, a medida é positiva para o Brasil.

    “A expectativa é positiva, porque os argentinos não compram mais porque não têm divisas. Por muitos anos o país foi o principal mercado para produtos manufaturados brasileiros. Hoje estamos em segundo lugar, perdemos para a China. Retomar essa posição será boa para a indústria nacional”, disse à CNN o presidente da AEB.

    A China tomou a posição de maior exportador para Argentina em 2021. O governo chinês financia diretamente os importadores argentinos, o que ajudou a melhorar o desempenho comercial entre os dois países. José Augusto de Castro lembra que, há 10 anos, o Brasil exportava cerca de U$ 20 bilhões por ano aos vizinhos. Atualmente, a conta chega a US$ 15 bilhões, dos quais 95% são de produtos manufaturados.

    O argumento de retomar a liderança entre produtos exportados, porém, encontra resistência entre os especialistas. Para Otaviano Canuto, ex-vice presidente do Banco Mundial, “o Brasil perdeu espaço para a China por questões estruturais”.

    “Se queremos melhorar nosso perfil de produtos manufaturados, que seja melhorando a competitividade dos produtos, e não por medidas artificiais”, diz ele à reportagem.

    “A competitividade da indústria chinesa no mercado argentino não se dá só por subsídios, mas por qualidade. Usar recursos públicos para tentar se contrapor a isso é algo que não faz sentido. Só faz sentido tornar os produtos mais competitivos, e ponto.”

    *Com informações de Thais Herédia, Raquel Landim, Ligia Tuon e Tainá Falcão.

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