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    Quanto vale a vida de um gay ou negro

    Série de assassinatos de Dahmer, no documentário da Netflix, escancara o racismo e a homofobia da polícia e da sociedade na investigação das mortes

    Rafael CâmaraLetícia Vidicada CNN , em São Paulo

    O quanto é assustador para uma pessoa gay assistir Dahmer?

    Estou falando da série da Netflix que retrata a vida, ou melhor, a morte de todas as vítimas do serial killer norte-americano Jeffrey Dahmer. Ao todo foram dezessete.

    A maioria homens pretos e gays.

    Confesso que não consegui chegar até a metade dos episódios e passei direto para o documentário, também na Netflix.

    Acho que eu queria ver o rosto real desse assassino que agiu entre 1978 e 1991 e expôs as falhas da polícia de Wisconsin, nos Estados Unidos.

    Consegui não só acompanhar depoimentos gravados à polícia, onde ele conta o que fazia com cada vítima, mas também assisti uma sucessão de erros e de descasos das autoridades, que permitiram que Jeffrey continuasse agindo por mais de uma década.

    Descaso por conta do racismo e homofobia.

    Divido hoje a coluna com a minha parceira do CNN No Plural, Letícia Vidica, já que esses dois temas nos interessam particularmente. Eu homem cis gay e ela uma mulher negra.

    “Essas instituições de estado [polícia] se pautam por uma lógica de reconhecimento de cidadania ainda muito restrita a esses grupos [negros e gays], então esses grupos ainda não são vistos como cidadãos que tem o mesmo direito e a mesma legitimidade regidos pelos poderes públicos”, explica o professor de diretos humanos Renan Quinalha.

    Será que hoje, quase trinta anos depois dos assassinatos, gays e negros conseguiram esse reconhecimento de cidadania?

    Avançamos bastante e isso é inegável, mas ainda precisamos falar mais alto para sermos ouvidos.

    As vítimas de Dahmer também gritavam, mas antes mesmo de mostrarem que eram vítimas, tinham que provar que não eram culpadas.

    Isso te lembra algo nos dias de hoje?

    “Acho que fica muito evidente quando a polícia em vários momentos, chega ali e fala: isso é uma questão entre namorados, a gente não pode se meter, mas é essa representação estigmatizante de pessoas LGBts como fontes de problema, de droga, de promiscuidade, de práticas sexuais duvidosas. Isso é uma manifestação direta e expressa dessa LGBTfobia institucional”, explica Quinalha.

    Aqui no Brasil, também tivemos um caso de um serial killer que, segundo a polícia, foi responsável por 13 assassinatos de homens gays. Digo segundo a polícia, porque o jornalista Roldão Arruda, em seu livro “Dias de Ira” questiona essa versão.

    Quem se lembra do maníaco do Trianon?

    Entre os anos 1986 e 1989 a cidade de São Paulo vivia em clima de terror por causa de uma série de assassinatos a homens gays. Todas as mortes foram atribuídas ao michê Fortunato Botton Neto, que encontrava seus clientes na altura do parque Trianon – local que por anos foi ponto de prostituição masculina, próximo à Avenida Paulista.

    Para o jornalista, o “Maníaco do Trianon” foi um bode expiatório já que das treze mortes ele teria confessado sete e sido condenado por apenas três.

    Mas não estou aqui para questionar se foi ou não Fortunato quem cometeu todos esses crimes, mas as investigações policiais que não se aprofundavam nos casos porque não era interessante saber quem assassinava gays.

    E tudo isso acontece em uma época em que as famílias das vítimas também tinham interesse em esconder o real motivo dos crimes, que era homofobia, já que também não era nada interessante para pais e mães revelarem que seus filhos estudiosos e bem-sucedidos gostavam de homens.

    Com essa pitada de preconceito, a cada ano, mais e mais homossexuais vão morrendo sem ter direito de ter seus casos realmente investigados.

    Caso Dahmer

    Voltando ao caso Dahmer, um canibal americano – como define o título da série, a polícia tinha um duplo motivo para não seguir com as investigações já que as vítimas não eram apenas gays, mas também negras.

    O racismo nos olhos dos policiais também contribuiu para anos e anos de impunidade, mas essa parte eu deixo para a jornalista Letícia Vidica, que também deixa aqui a sua impressão por tanto descaso.

    “Eu vou te ouvir”. Foi o que disse o reverendo Jesse Jackson para Glenda Cleveland, vizinha do assassino Jeff Dahmer, que por anos tentou ser ouvida e foi em vão.

    Ninguém a ouviu. Mais uma vez, a voz negra gritou, mas ninguém ouviu.

    Quantos decibéis precisamos atingir para sermos ouvidos ou para ter legitimado nosso pedido de socorro? Foi o que pensei ao ver a série que descreve a sequência de assassinatos e de brutalidade cometidos por Dahmer contra homossexuais – em sua maioria negros. Mesmo com tantas ligações para a polícia, com tantas mortes… por anos, nada levantava suspeita. E, por anos, ninguém ouviu a vizinha que berrava e clamava por ajuda.

    Vidas negras importam?! Quantas vidas negras mais precisam ser tomadas para que, de fato, se importem? Quantos gritam todos os dias, mas, por mais alto que gritem, é só a melanina de nossas peles que, no fim, vai importar.

    “O racismo tem muitos tentáculos e a gente precisa combater todos eles”, assim bem definiu o reverendo Jesse Jackson ao explicar que era importante combater o racismo cometido também pelas instituições naquele caso contra a população negra e gay. Duas opressões que se somam e só reforçam ainda mais o racismo que permeia muitas instituições.

    A presença do reverendo, famoso ativista dos direitos civis americanos (que lutou ao lado de Martin Luther King) joga ainda mais luz ao caso porque existe sim o racismo institucional presente nessa história: mortes de homens negros em um bairro periférico cometidos por um homem branco do perfil ‘que não levanta suspeita’.

    Me pergunto se o caso tivesse sido cometido por um negro em um bairro branco e contra homens brancos gays? E se o caso tivesse acontecido em um bairro de média ou alta renda com população branca? E se uma vizinha desse mesmo bairro tivesse ligado para a polícia? Faria tantas vezes? Demorariam tantos anos para encontrar o assassino?

    Obviamente, a conduta seria diferente. Conduta diferente que também revela a forma como cidadãos negros e brancos são vistos na sociedade. Quantos negros são parados diariamente e, sem nenhum sinal de suspeita, se tornam suspeitos só porque são negros e sem direito a resposta, explicação ou qualquer pedido de ajuda?! Isso me ferve a cabeça e me embrulha o estômago.

    O fim – quase – seria o mesmo: descaso da investigação policial por tratar o caso como apenas mais um caso de morte de pessoas negras.

    Mas o reverendo Jackson ao ser o ÚNICO a ouvir o verdadeiro lado da história de Glenda provou e reforça que SIM vidas negras importam!

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