Trapaça no xadrez usa de inteligência artificial a código Morse
Assunto veio à tona depois que pentacampeão mundial Magnus Carlsen abandonou partida e acusou rival, Hans Niemann, de ilegalidades no jogo
A história que abalou o xadrez e não mostrou sinais de diminuir. Tudo o que se fala é sobre o escândalo de trapaça que engoliu o esporte, envolvendo o pentacampeão mundial Magnus Carlsen.
Na segunda-feira (26), Carlsen acusou explicitamente pela primeira vez o colega grão-mestre e rival, Hans Niemann, de trapaça, em uma longa declaração no Twitter.
A acusação vem semanas depois que o norueguês se retirou da Sinquefield Cup em St. Louis, Missouri, nos Estados Unidos, em 19 de setembro, após sua derrota surpresa para o americano.
“Quando Niemann foi convidado no último minuto para a Sinquefield Cup 2022, considerei fortemente desistir antes do evento. Mas finalmente escolhi jogar”, escreveu Carlsen.
“Acredito que Niemann trapaceou mais – e mais recentemente – do que admitiu publicamente. Seu progresso no tabuleiro tem sido incomum, e durante todo o nosso jogo na Sinquefield Cup tive a impressão de que ele não estava tenso ou mesmo totalmente concentrado no jogo em posições críticas, enquanto me superava usando as peças pretas de uma maneira que acho que apenas um punhado de jogadores pode fazer”.
“Este jogo contribuiu para mudar minha perspectiva”.
Niemann, por sua vez, admitiu ter trapaceado aos 12 e 16 anos e disse que havia sido banido de competir no Chess.com, mas disse em uma entrevista ao St. Louis Chess Club que nunca trapaceou em jogos de tabuleiro.
Mas para um jogo que parece tão simples em sua estrutura – um tabuleiro de xadrez, dois jogadores, 32 peças no total e, teoricamente, muita criatividade – a pergunta que muita gente faz é: “Como alguém trapaceia no xadrez?”.
Another shocker as @MagnusCarlsen simply resigns on move 2 vs. @HansMokeNiemann! https://t.co/2fpx8lplTI#ChessChamps #JuliusBaerGenerationCup pic.twitter.com/5PO7kdZFOZ
— chess24.com (@chess24com) September 19, 2022
Ascensão da tecnologia
Apesar de ser um esporte antigo, o xadrez foi arrastado para a era moderna nos últimos anos.
Os computadores e a internet tornaram a competição mais acessível e conectaram os jogadores em todo o mundo, e a inteligência artificial agora oferece aos jogadores as ferramentas para planejar seus movimentos antes mesmo do início da partida.
Tudo realmente começou em 1996, quando o grão-mestre Garry Kasparov, amplamente reconhecido como um dos melhores jogadores de todos os tempos, enfrentou um supercomputador da IBM chamado ‘Deep Blue’ em uma série de partidas.
Embora Kasparov tenha vencido a primeira partida, a máquina ‘Deep Blue’ venceu dois jogos, tornando-se o primeiro programa de computador a derrotar um campeão mundial em um jogo clássico sob os regulamentos do torneio.
Um ano depois, os dois se enfrentaram em uma revanche com ‘Deep Blue’ derrotando Kasparov, tornando-se o primeiro programa de computador a derrotar um campeão mundial em uma partida completa.
Embora as performances de Kasparov contra o ‘Deep Blue’ tenham sido reavaliadas ao longo do tempo, a importância dos resultados não pode ser exagerada. Foi um momento marcante na progressão da capacidade da tecnologia de jogar a partida de xadrez “perfeita” e sinalizou o aumento do efeito da inteligência artificial no xadrez.
Desde então, com melhorias no hardware e software do computador, os mecanismos de xadrez ajudaram a transformar o esporte em um jogo do século XXI.
Conforme definido pelo Chess.com, um sistema de xadrez é um programa que “analisa as posições do xadrez e retorna o que calcula ser as melhores opções de movimento”.
Os sistemas de xadrez tornaram-se muito mais fortes do que os humanos nos últimos anos, com muitos excedendo a classificação de 3.000 Elo – o sistema de classificação Elo mede a força de um jogador de xadrez em relação a seus oponentes. Para contextualizar, Carlsen detém o recorde de maior classificação Elo já alcançada por um jogador humano, quando atingiu 2.882 em 2014.
Stockfish é um dos sistemas de xadrez mais avançados, com uma classificação de mais de 3.500, o que significa que tem 98% de probabilidade de vencer Carlsen em uma partida – e 2% de chance de empatar o pentacampeão mundial, essencialmente tornando uma vitória de Carlsen impossível.
Embora os sistemas de xadrez tenham ajudado os jogadores a aprimorar seu ofício – treinando contra os movimentos perfeitos para se preparar para todas as eventualidades – eles também permitiram que alguns jogadores trapaceassem com mais facilidade.
Como resultado, sites de xadrez online, como o Chess.com, desenvolveram tecnologia antitrapaça para detectar quando os jogadores estão usando software de computador externo durante os jogos na tentativa de coibir o jogo sujo.
Embora a tecnologia antitrapaça tenha melhorado, Emil Sutovsky – diretor geral do órgão regulador do xadrez, a Federação Internacional de Xadrez (FIDE), – diz que o xadrez precisa desenvolver um “contrato social” com os jogadores online para parar de trapacear.
“Agora, o que aconteceu no passado foi que a cultura de trapacear online foi vista como um crime muito menor do que se você estivesse tentando trapacear no tabuleiro”, disse Sutovsky, que considera que trapacear no xadrez online é um “enorme problema”. “Era como se você estivesse jogando um jogo de computador, jogo online, xadrez online, então não foi levado tão a sério”.
“E muitos jogadores suspeitaram que outros jogadores estão trapaceando e, naturalmente, foram mais motivados a tentarem eles mesmos. Isso é algo que não está acontecendo no xadrez sobre o tabuleiro. Agora, essa cultura ou herança realmente precisa mudar e as pessoas devem perceber que, seja trapaça online ou sobre o tabuleiro, é trapaça”.
“Especialmente agora, quando a situação mudou, pois há prêmios sérios em jogos, tours como o do próprio [Carlsen] Magnus, então toda essa percepção naturalmente deve ser substituída pelo entendimento de que trapacear online é um pecado muito sério e a punição deve ser também ser muito séria por isso”.
Enquanto a FIDE está lutando para combater a trapaça online, tem havido um nível de pureza no xadrez sobre o tabuleiro, com a trapaça se provando ser muito mais difícil de ocorrer.
Andy Howie, árbitro e membro da Comissão Fair Play antitrapaça da FIDE, delineou algumas das medidas em vigor para evitar trapaças em jogos sobre o tabuleiro, como detectores de metal, scanners de sinal, scanners não lineares e imagens térmicas.
Mas as medidas de segurança não impediram as pessoas de tentar trapacear e a história do jogo está repleta de escândalos.
Subterfúgio
Acusações de trapaça e jogo sujo já aconteceram durante a final do Campeonato Mundial de Xadrez de 1978, descrita por um grande mestre que estava lá como “a partida de campeonato mundial mais desconcertante e suja da história do xadrez”.
A certa altura, o jovem campeão soviético, Anatoly Karpov, alegou que o exilado russo, Viktor Korchnoi, estava tentando cegá-lo com seus óculos de sol espelhados, relata o El País.
Mais tarde, os garçons serviram a Karpov um iogurte de mirtilo e Korchnoi sugeriu que isso poderia ser um tipo de comunicação codificada dos analistas de seu oponente.
Karpov acabou vencendo a partida, que é recriada em um filme russo de 2021 chamado “The World Champion”.
Mais recentemente, a FIDE retirou Gaioz Nigalidze, da Geórgia, o seu título de grão-mestre e o baniu do xadrez competitivo por três anos em 2015 por visitar repetidamente o banheiro no meio de um jogo para pesquisar em seu telefone a melhor jogada a se fazer.
Também em 2015, um árbitro pegou o jogador amador italiano, Arcangelo Riccicardi, usando código Morse e uma câmera para trapacear em uma competição.
Riccicardi estaria escondendo uma câmera de vídeo dentro de um pingente em seu pescoço, fios presos ao seu corpo e uma pequena caixa sob a axila.
“Eu continuei olhando para ele. Ele estava sempre sentado, nunca se levantava”, disse o árbitro-chefe Jean Coqueraut ao La Stampa. “Muito estranho, estamos falando de horas e horas de jogo. Acima de tudo, ele sempre ficava com os braços cruzados com o polegar sob a axila. Ele nunca tirava”.
“E ele piscava de forma não natural, como se estivesse concentrado no tabuleiro, mas perdido em algum outro pensamento. Então percebi: ele estava decifrando os sinais em código Morse. Ponto, traço, ponto, traço, ponto, traço. Foi isso”.
Riccicardi negou a trapaça.
É incerto se Niemann de fato trapaceou Carlsen – o americano nega veementemente as acusações. De qualquer forma, teoricamente, se alguém inserisse os movimentos de Carlsen em um sistema de xadrez como o Stockfish, por exemplo, essa pessoa seria capaz de vencer ou empatar com Carlsen com quase 100% de probabilidade.
Não houve evidências conclusivas de qualquer maneira, mas o pentacampeão mundial parece estar convencido de que houve um jogo sujo envolvido na Sinquefield Cup.
É muito mais difícil trapacear quando você está sentado do outro lado do tabuleiro do seu oponente, com ele olhando nos seus olhos e com um árbitro checando as jogadas por cima do seu ombro, mas isso não impediu que os jogadores tentassem ao longo da história.
Howie diz que os melhores jogadores que confiam em suas carreiras no xadrez são menos propensos a trapacear pois têm mais a perder.
“Você tem pessoas como Hikaru Nakamura ou Magnus Carlsen ou Levon Aronian ou Ian Nepomniatchtchi. Se eles fossem pegos trapaceando, seria devastador para eles, para as carreiras deles”, disse ele à CNN. “Esta é a carreira deles. Eles não podem se dar ao luxo de fazer isso, porque seria totalmente devastador para eles”.
“Eles perderiam toda credibilidade, todo patrocínio. Eles simplesmente têm muito a perder. Agora, isso não significa que tratemos como se eles nunca fossem trapacear, longe disso. Quando estamos lidando com os torneios deles, na verdade somos muito, muito rigorosos, apenas para garantir que não haja […] nunca espero encontrar nenhuma dessas trapaças”.
“Eu ficaria realmente chocado se encontrasse um desses caras trapaceando. Mas à medida que você desce para os escalões mais baixos, é quando é mais provável que você encontre pessoas trapaceando, jogadores mais fracos. As pessoas que veem isso como nada importante para elas, pois são banidas por alguns anos. ‘E daí? Eu vou voltar e jogarei em alguns anos. Não estou muito preocupado com isso’. Não tem o impacto sobre eles como tem nos melhores jogadores. O jogo não é o sustento deles”.
E como a controvérsia Carlsen-Niemann continua a dominar o esporte, quem sabe qual verdade os eventos revelarão.