Crítica: “O Livro dos Prazeres” é tão reflexivo quanto a obra de Lispector
Em entrevista à CNN, diretora Marcela Lordy e elenco falam sobre o processo de adaptar a obra de Clarice Lispector para as telas
Até o primeiro diálogo aparecer no filme “O Livro dos Prazeres”, passam-se 10 minutos. É um paradoxo interessante, como se todas as palavras escritas por Clarice Lispector estivessem na cabeça da protagonista, ainda não acessíveis ao público. Esse silêncio inicial, segundo a diretora, Marcela Lordy, é praticamente autobiográfico.
“Ficar em silêncio sempre foi uma dificuldade minha”, diz. “Quando eu li o livro, tinha acabado de me separar de um relacionamento longo e me identifiquei com a protagonista”.
Trata-se de uma personagem inquieta, de fato. Professora primária, Lóri (Simone Spoladore) pula de um relacionamento para o outro sem criar qualquer conexão real com as pessoas que conhece, até que ela encontra Ulisses (Javier Drolas), por quem se apaixona, mas sem se entregar totalmente.
“Quem é essa mulher?”, Simone pergunta. “Ela é deprimida, é chata, é insegura? Tudo isso reduz muito. Acredito que ela seja uma buscadora da própria vida”.
Durante a conversa que teve com a CNN, a atriz disse que sempre interpretou mulheres que eram despedaçadas em frente à câmera e que se sentiu bem em fazer uma personagem, que, segundo ela, tem um processo reverso.
“No meu primeiro longa, interpretava uma filha que era morta pelo pai”, diz. “Viver uma personagem que se reintegra a si mesma é muito revigorante”.
Porém, foi uma preocupação da diretora trazer a protagonista para um lugar mais perto do público.
Sendo uma pessoa um tanto angustiada, e ainda em busca de uma própria identidade, Lóri não consegue demonstrar afeto por quem se relaciona, passando, em um primeiro momento, uma aura que beira a antipatia.
“Quis muito trazer um desenvolvimento para a história de Lóri. Não queria que dissessem: olha lá o filme daquela chata”, diz Marcela Lordy.
Enquanto a personagem pode soar como insensível para alguns, para o ator Javier Drolas ela está apenas invertendo os papéis de gênero convencionais.
“O desapego é masculino”, diz. “Quando vemos uma mulher se relacionando com quem quer, sem demonstrar qualquer importância, é algo estranho”.
Lugar de mulher
Através de diálogos certeiros, a diretora consegue emular o ambiente que Clarice Lispector cria em seu livro, expondo fragilidades dos personagens a todo momento, sem qualquer julgamento.
“Clarice sempre foi muito empática em sua escrita”, diz a diretora. “Ela se coloca no lugar de homens, mulheres e até animais”.
Marcela leu e releu o livro que, como o título sugere, possui diversas passagens com relações sexuais.
Segundo a diretora, existe uma edição de “O Livro dos Prazeres”, por exemplo, que mostra uma sequência de relações desse tipo. Marcela decidiu empregar isso no filme com mais cautela e naturalismo.
“Tudo no longa tem razão de ser. Quis filmar essas cenas de um ponto de vista diferente, sem uma objetificação da mulher”.
O sexo no filme é, antes de tudo, cuidadosamente plástico. Há uma preocupação para que a cinematografia entregue uma reflexão ao espectador, e não apenas algo carnal.
“As primeiras cenas são mais duras, rápidas, isso porque a Lóri está pensando em outra coisa, com a mente longe. Quando ela está conectada, no seu eixo, as cenas são mais demoradas, por exemplo”.
Para Simone, todo o processo de filmagem foi simbólico.
“A gente está falando de uma escritora mulher, uma diretora mulher e uma narrativa que coloca a mulher como centro de tudo, se descobrindo e a aprendendo a fazer suas próprias escolhas.”
Javier complementa a fala da colega dizendo que o filme desconstrói o amor romântico, mostrando esse sentimento com idas e vindas, como ele realmente é.
Por fim, Lóri descobre o afeto ao mergulhar em si própria e, nesse processo, dá voz à famosa frase de Clarice: “Amar não é morrer”.
O filme estreia nesta quinta-feira (22) nos cinemas brasileiros.