Análise: Putin acaba de colocar uma mina terrestre sob seu regime
Ao anunciar uma mobilização parcial, ele quebrou um contrato social não escrito com os russos de que as autoridades ficariam fora de suas vidas privadas
Em um discurso nacional televisionado na manhã desta quarta-feira (21), o presidente russo, Vladimir Putin, anunciou uma mobilização parcial de seus cidadãos.
Isso significa que ele essencialmente quebrou um contrato social não escrito com os russos: nós, os cidadãos, permitimos que vocês, as autoridades, roubem e lutem, mas em troca vocês ficam fora de nossas vidas privadas.
Começando uma nova fase da guerra na Ucrânia, encurralado, Putin está arrastando uma parcela significativa de russos com ele. De fato, o presidente declarou guerra na frente doméstica — não apenas contra a oposição e a sociedade civil, mas contra a população masculina da Rússia.
Por que Putin está assumindo esse risco? Porque ele mesmo encorajou uma aversão pública à guerra por vários meses.
A mobilização está repleta de profundos descontentamentos na sociedade. É justamente por isso que ele decidiu fazer uma mobilização parcial, e não completa. A longo prazo, ele colocou uma mina sob seu regime; no curto prazo, ele enfrentará sabotagens.
Por muito tempo, Putin promoveu uma aversão das massas ao conflito, uma aversão que será paga agora pelos russos, que estão sendo transformados em bucha de canhão.
Como o anúncio de quarta-feira pode tirar a população de sua zona de conforto — em especial aqueles que permaneceram indiferentes à “operação especial”?
Até agora, pelo menos, a principal emoção, ou melhor, sua ausência, foi a indiferença. Essa indiferença vem em diferentes tons — genuína, imitativa ou autocultivada.
O russo que se enquadra nos 30% que apoiam “muito” a “operação especial” (quase 50% “definitivamente” apoiam, um pouco menos de 20% não apoiam) não tem opinião própria, prefere a pedir emprestada da TV estatal ou de Putin, bloqueando para si mesmo as más notícias e fontes alternativas de informação.
Mas, às vezes, essa parcela não gosta da guerra em si, e uma pessoa entre esses 30% poderia mudar sua atitude em relação a Putin e suas iniciativas.
A indiferença das pessoas comuns beneficia Putin. Nós, os cidadãos, não interferimos nos assuntos de nossa classe política e apoiamos suas iniciativas, mas em troca pedimos que mantenham uma impressão de normalidade.
Que é o que Putin faz, combinando habilmente mobilização parcial em apoio à guerra e a si mesmo com desmobilização.
Programas de entretenimento estão de volta à TV, fogos de artifício explodiram nas festividades anuais do Dia da Cidade de Moscou (uma piada irônica deste dia foi que o prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, comemorou o início da contra-ofensiva ucraniana), e as pessoas continuam vivendo normalmente as suas vidas. O interesse nos eventos de guerra na Ucrânia foi baixo durante todo o verão.
Mas mesmo os indiferentes não puderam ignorar o contra-ataque ucraniano. Embora aqui também prevalecesse a relutância em saber a verdade: se os oficiais diziam que não era uma retirada, mas, sim, um reagrupamento de tropas, assim seria. No entanto, mesmo os talk shows oficiais do Kremlin estavam cheios de confissões de fracasso.
Isso não provocou um desejo de paz — que também está presente no humor até mesmo daqueles que geralmente apoiam a operação —, mas causou uma explosão de agressões e discursos de ódio.
Houve pedidos para “tirar as luvas brancas” e já punir realmente a Ucrânia. Isso é o que Putin fez ao lançar ataques de mísseis em infraestrutura, usinas de energia e instalações hidrelétricas. Isso é vingança e raiva, mas raiva que revela fraqueza em vez de força.
Os radicais estão descontentes com Putin e exigem uma guerra até o fim e uma mobilização geral, mas o ditador do Kremlin carece de recursos para uma vitória rápida, incluindo, sobretudo, recursos humanos — é por isso que começa a recrutar bucha de canhão, mesmo de condenados cumprindo pena.
Dito isto, não é lucrativo para Putin provocar o descontentamento das classes médias, que ficam felizes em assistir à guerra do sofá de sua casa, mas não estão dispostas a ir para as trincheiras. Além disso, a mobilização geral desviaria o capital humano necessário para a economia. Simplesmente não haveria quase ninguém para trabalhar.
O descontentamento com Putin por parte dos falcões radicais não é um fenômeno novo. No entanto, ela ainda não se manifestou de fato. Mas eles não têm chance de competir com Putin — os radicais ultraconservadores serão reprimidos com a mesma energia que os liberais pró-ocidentais: o ditador não tolerará nenhuma competição no nicho da guerra e do imperialismo.
A opinião pública na Rússia é muito inerte, e algo extraordinário terá que acontecer para que o clima mude para valer. O mesmo acontece com os problemas econômicos.
Até agora a crise socioeconômica não era tão visível. A derrocada completa está sendo adiada, mas, como dizem alguns economistas, provavelmente se manifestará no final de 2022 e início de 2023.
Enquanto a opinião pública está em estado de inércia, Putin tem a chance de encontrar as palavras certas para narrar as derrotas como vitórias.
Ele poderia parar a guerra agora mesmo descrevendo as perdas como ganhos. E em parte o fez, quando decidiu consertar as perdas anunciando a realização urgente de referendos a cerca de uma adesão à Rússia nos quatro territórios ucranianos ocupados pelas suas tropas.
É evidente que Putin não está pronto para parar o que começou. Ele presume que a Rússia terá sucesso no campo de batalha, ou que pelo menos ganharia uma posição mais forte nos territórios ocupados ao declará-los russos.
Neste caso, qualquer combate seria avaliado como um ataque à Rússia. E então ele terá a oportunidade de transferir a “operação especial” para o status oficial de guerra e criar a possibilidade de mobilização geral.
Agora, Putin anunciou apenas uma mobilização “parcial” limitada.
E tudo isso pode ser um erro. Quanto mais Putin adiar o fim da guerra — mesmo tendo em vista a desconfiança já expressa publicamente de seus principais “amigos”, como o presidente chinês Xi Jinping e o primeiro-ministro indiano Narendra Modi —, mais difícil será para ele fazer a paz ser retratada como uma vitória.
Sim, a opinião pública está mentalmente preparada para uma longa guerra, mas quem sabe quando a fadiga da tensão constante, que deve ser aliviada pela indiferença cuidadosamente nutrida, romperá e mudará o clima. Putin diz que tem tempo e que o exército russo não tem pressa.
Porém, com o andar da carruagem, as derrotas se tornarão cada vez mais difíceis de serem apresentadas como vitórias — sobretudo para os 30% hesitantes que “preferem” apoiá-lo.