Brics se torna clube de autocracias liderado pela China
Lula não figurará na foto inaugural da cúpula do novo grupo na Rússia por acidente, não por desejo
A reunião de cúpula dos Brics, desta terça (22) até quinta-feira (24), na Rússia, marca a sua conversão, de um bloco de grandes nações emergentes, para um clube de regimes autoritários que gravitam ao redor da China. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não figurará na foto inaugural dos governantes do Brics+, como é chamado, não por falta de desejo, mas por um capricho do destino.
O Brasil é representado pelo chanceler Mauro Vieira, enquanto Lula acompanha a cúpula por vídeo, depois de um pequeno acidente doméstico no sábado (19) que levou seu médico, Roberto Kalil, a dissuadi-lo de fazer a longa viagem até a histórica cidade de Kazan, na república russa do Tatarstão, e de enfrentar a pesada agenda de chefes de Estado.
O bloco acolherá Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito e Etiópia, convidados no ano passado, por iniciativa da China, duplicando seu número de integrantes. O Brasil e a Índia não queriam essa expansão, mas a China impôs o seu desejo.
O governo Lula desejava a entrada apenas da Argentina, como forma de ajudar na eleição do candidato de esquerda, Sergio Massa. Ele foi derrotado pelo “libertário” Javier Milei, que rejeitou o convite, depois de uma campanha em que prometeu não cultivar contatos com os governos “comunistas” da China e do Brasil.
Para ampliar ao máximo a impressão de que a Rússia não está isolada, o presidente Vladimir Putin convidou mais de 20 outros países que manifestaram desejo de ingressar no Brics+. Exatamente com o mesmo objetivo, Putin mais uma vez não participará da cúpula do G-20 no mês que vem no Rio de Janeiro.
Desde que invadiu a Ucrânia, o autocrata russo não vai a essas reuniões, para não ser visto esnobado pelos governantes das democracias mais ricas do mundo. Um agravante, no caso dessa cúpula, é o fato de o Brasil ser signatário do Acordo de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional, que emitiu ordem de prisão contra Putin por causa do sequestro de milhares de crianças ucranianas, separadas de seus pais e levadas à força para “centros de reeducação” na Rússia, entre outros crimes de guerra.
Entre os países que pretendem ingressar no Brics+ está a Venezuela. Segundo apuração dos analistas Renata Varandas e Caio Junqueira, da CNN, o governo brasileiro se opõe a essa inclusão e pede, como fez no ano passado, sem êxito, que o bloco defina os critérios de expansão.
O critério é claro: a China busca se projetar como líder do Sul Global, como árbitro de conflitos locais e como incentivadora da contestação da ordem internacional baseada em regras. Nessa última categoria se enquadram o Irã, que patrocina o Hamas, o Hezbollah e os Houthis; a Venezuela, que ameaça invadir a Guiana; a própria China, que contesta a soberania de Taiwan e de territórios do Japão e das Filipinas; e a Rússia, que ocupa parte da Ucrânia.
Apesar da retórica do “multilateralismo” empregada por China, Rússia e Brasil, a estratégia conduz a um mundo bipolar: de um lado, o chamado Ocidente Coletivo, formado por países democráticos e liberais; de outro, o chamado Sul Global, que embora inclua democracias como o Brasil, a Índia e a África do Sul, sofre a predominância de autocracias iliberais, nas quais o Estado exerce poder maior sobre a economia e os cidadãos.
A cristalização desses blocos ficou clara na divisão dos votos no Conselho de Segurança da ONU acerca das crises da Ucrânia e da Faixa de Gaza. Estados Unidos, China e Rússia exerceram seu poder de veto no Conselho para impedir a aprovação de resoluções contrárias a seus interesses, contribuindo para uma paralisia ainda maior da entidade.
O mesmo já vem acontecendo na Organização Mundial do Comércio, na qual os Estados Unidos impedem a nomeação de juízes para o painel de apelação, por considerar que a China se beneficia das regras de livre comércio criadas sob liderança americana.
O próximo passo nesse movimento da China por meio dos Brics pode ser o enfraquecimento do G-20. Esse grupo foi criado como forma de ampliar a interlocução com as maiores economias do mundo, antes restrita às sete democracias mais ricas, reunidas no G-7. A consolidação do Brics+ como bloco econômico liderado pela China tende a dividir o G-20 segundo alinhamentos geopolíticos.
A fusão dos interesses geopolíticos e econômicos se expressa no plano da China, Rússia e Brasil de consolidar um sistema de pagamentos alternativo ao dólar. O objetivo mais premente é ajudar países como Rússia, Irã e, eventualmente, Venezuela e Cuba, que também pretendem ingressar no bloco, a driblar as sanções impostas pelos Estados Unidos e, em alguns casos, pela União Europeia.
Não há dúvida de que a dominância do dólar traz grandes benefícios para os Estados Unidos e prejuízos para os outros países, que ficam sujeitos a flutuações cambiais sobre as quais não têm controle, e sofrem de menor atratividade de seus títulos da dívida e investimentos, entre outros fatores.
Mas a melhor forma de lidar com esse problema não é passar a orbitar em torno do renminbi, a moeda chinesa, por sua vez sujeita à arbitragem do Banco Cenral Chinês, ainda menos transparente e previsível do que aquela feita pelo Fed, seu equivalente americano.
Para um país como o Brasil, seria melhor investir no equilíbrio das contas públicas, na independência do Banco Central, na liberalização do comércio, na segurança jurídica e em reformas que aprimorem o ambiente de negócios, como aquelas preconizadas pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), para aumentar a atratividade dos investimentos. Mas não é esse o caminho escolhido pelo governo Lula.