Caso Pelicot revela que não existe lugar seguro no mundo para ser mulher
Homem que dopou esposa para ser estuprada na França escancara os perigos constantes que as mulheres correm mesmo em uma sociedade que se diz feminista
“Não é um monstro, é um homem”. A frase que se espalhou pelas redes sociais nas últimas semanas resume o choque de realidade causado pelo caso Dominique Pelicot, o francês de 71 anos que dopou a esposa entre 2011 e 2020 para que ela fosse estuprada por 50 desconhecidos.
Se um septuagenário, considerado um pai e avô amoroso, um trabalhador honesto, ex-eletricista e agente imobiliário, pôde cometer abusos dentro da própria casa, qual mulher está segura? O caso prova que em pleno século XXI, a vida das mulheres está em constante perigo, até mesmo em um país visto como um dos bastiões do feminismo.
A defesa dos direitos femininos na França tem raízes históricas. Já no século XV, a escritora Christine de Pizan defendeu o direito das mulheres à educação.
Três séculos depois, Olympe de Gouges criticou a exclusão das mulheres da “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão” na Revolução Francesa de 1789; e em 1791, escreveu uma célebre declaração dizendo que a mulher possuía direitos naturais idênticos aos dos homens.
Em 1949, no livro “O Segundo Sexo”, Simone de Beauvoir estruturou as bases que definem o feminismo moderno ao discutir a opressão da mulher em um mundo dominado pelo homem.
A França começou 2024 nas manchetes de jornais internacionais por ter se tornado, em março, o primeiro país a prever o acesso ao aborto em sua Constituição. E agora um julgamento tenebroso, acompanhado pelo mundo todo, levanta um questionamento sobre a hipocrisia do país em relação às suas mulheres.
Franceses gostam de se intitular progressistas, mas Dominique Pelicot mostra que por trás dos rótulos mais sedutores existe uma sociedade complexa, marcada por um machismo estrutural como qualquer outra.
Mesmo no país que foi um dos berços das conquistas feministas mais memoráveis da atualidade, não foi possível evitar que atrocidades acontecessem num canto qualquer, tão trivial como Mazan, uma vila tranquila no sul da França.
Entre os 51 homens acusados de estuprar Gisèle Pelicot, além de seu agora ex-marido, estão um motorista de caminhão, um jardineiro, um marceneiro, um gerente de loja, um guarda prisional, um enfermeiro, um especialista em tecnologia que trabalha em um banco, um jornalista local. Muitos têm filhos e são casados.
Os “estupros de Mazan”, como o caso ficou conhecido na França, desconstruíram a ideia de que o agressor é um psicopata, um criminoso alijado da sociedade. Ele pode ser o seu vizinho, seu chefe, seu marido ou até seu pai. E as armas podem ser os remédios escondidos no armário da sua própria casa.
Karim Rissouli, apresentador de um dos principais programas de entrevistas da França, defendeu a necessidade de reflexão “sobre a forma de ser homem”. Nas palavras dele: “De repente, você pode ter 500 caras se deparando com o anúncio: ‘Venha estuprar minha esposa adormecida’, e ninguém avisa a polícia”.
O caso evidencia a necessidade urgente de debates profundos sobre temas como consentimento, a submissão de produtos químicos e estupro intraconjugal.
A Lei francesa define que estupro é um “ato de penetração sexual” cometido “por violência, coerção, ameaça ou surpresa”. Com a repercussão do julgamento de Pelicot, ganha força a iniciativa de parlamentares feministas para alterar a redação para dizer explicitamente que sexo sem consentimento é estupro.
Elas propõem que o texto exprima que o consentimento pode ser retirado a qualquer momento e que o consentimento não pode existir se a agressão sexual for cometida “por abuso de um estado que prejudica o julgamento de outro”.
Caroline Darian, filha de Gisèle e Dominique Pelicot, que também teve fotos íntimas tiradas por seu pai enquanto estava inconsciente, criou a associação M’endors pas, em tradução livre “Não me adormeça”.
A entidade tem o objetivo de alertar sobre a existência e os perigos da submissão química, o ato de drogar alguém com intenção maliciosa.
Darian conta com o apoio da deputada Sandrine Josso, que lidera uma comissão parlamentar sobre submissão química. No ano passado, Josso acusou um senador de ter colocado ecstasy em seu champanhe para cometer agressões sexuais contra ela.
Especialistas acreditam que o julgamento também deve contribuir para aumentar a conscientização sobre o estupro intraconjugal. A coragem de Gisèle Pelicot, que permitiu que seu nome e os vídeos do processo fossem divulgados para que a “vergonha mudasse de lado”, permitiu que o tema fosse discutido com maior clareza por toda a sociedade.
Afinal, é ainda mais difícil para mulheres dizerem que são vítimas de estupro quando isso acontece dentro de casa.
As atrocidades julgadas na França atualmente expõem como os riscos corridos pelas mulheres precisam urgentemente deixar de ser subestimados em qualquer país do mundo.