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    Lourival Sant'Anna
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    Lourival Sant'Anna

    Analista de Internacional. Fez reportagens em 80 países, incluindo 15 coberturas de conflitos armados, ao longo de mais de 30 anos de carreira. É mestre em jornalismo pela USP e autor de 4 livros

    Lula decepciona líderes autoritários latino-americanos

    Depois de décadas de apoio do presidente brasileiro, Ortega e Maduro não entendem por que ele os abandonou e reagem agressivamente

    A decepção dos líderes autoritários latino-americanos com o presidente Lula está assumindo um tom agressivo. Dessa vez foi o homem forte nicaraguense, Daniel Ortega, que acusou Lula de agir a serviço dos Estados Unidos – ofensa máxima para um personagem de esquerda. O autocrata venezuelano, Nicolás Maduro, havia lançado a mesma acusação contra o presidente brasileiro.

    Ortega e Maduro atacaram as credenciais de Lula em seus pontos mais sensíveis: o nicaraguense lembrou a corrupção de seus governos anteriores, revelada pela Operação Lava-Jato. Maduro disse que o sistema brasileiro de votação — que deu a Lula uma vitória contestada por seu adversário, o ex-presidente Jair Bolsonaro — não é confiável.

    A julgar pelo histórico, as acusações de Ortega podem ficar impunes: Lula não respondeu a Maduro, quando o líder bolivariano realizou os seus ataques.

    A indignação de ambos é compreensível. Lula passou as duas últimas décadas apoiando seus regimes, que sempre atuaram com o objetivo claro de se perpetuar no poder, mudando a Constituição para eliminar limites de reeleições, aparelhando as Forças Armadas, a Justiça, o Ministério Público e os órgãos eleitorais para apoiá-los, perseguindo a oposição e tolhendo a liberdade de expressão.

    Então, foi Lula quem mudou de posição, não Maduro e Ortega. A pergunta a se fazer é: por que o presidente brasileiro está menos disposto a apoiar essas autocracias do que antes?

    Tudo começou na Nicarágua, ou, mais precisamente, no Vaticano. O papa Francisco pediu em junho do ano passado a Lula que intercedesse em favor da Igreja Católica, perseguida na Nicarágua, e especificamente do bispo Rolando Álvarez.

    O governo nicaraguense havia desterrado 222 presos políticos em um avião para os Estados Unidos, destituindo-os de sua cidadania. Antes disso, mais de 80 religiosos, incluindo freiras brasileiras, já haviam fugido do país por causa da perseguição.

    Álvarez, embora estivesse em uma cela solitária sem luz e circulação de ar apelidada “Inferninho”, em um presídio de segurança máxima, recusou-se a deixar o país nesses termos. O Vaticano acabou impondo – ao regime e aparentemente ao próprio Álvarez — a deportação do bispo para Roma.

    No episódio recente da retirada recíproca dos embaixadores de Manágua e Brasília, a iniciativa foi da Nicarágua, depois que o representante brasileiro não compareceu à comemoração do aniversário da Revolução Sandinista. O embaixador Breno de Souza da Costa havia sido avisado mais de duas semanas antes que seria expulso e mesmo assim o governo brasileiro não o retirou de Manágua, numa amostra da relutância de Lula em se distanciar do regime de Ortega.

    Com a Venezuela, a situação é semelhante. Lula enviou a Caracas o seu assessor especial para relações internacionais, Celso Amorim, acompanhar as eleições. O experiente diplomata ignorou os sinais explícitos de fraude, como a expulsão dos fiscais da oposição dos centros de apuração, a interrupção da transmissão dos dados da contagem dos votos e a não-publicação pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE) das atas.

    Um site criado pela oposição dá acesso a 73,2% das atas, que dão vitória ao candidato oposicionista Edmundo González, com 6,27 milhões de votos, contra 2,75 milhões para Maduro. Mesmo assim, Amorim disse em entrevista à CNN que a oposição baseava sua alegação de vitória em pesquisas de boca-de-urna.

    Os quatro especialistas em eleições enviados pela ONU concluíram, em relatório ao secretário-geral António Guterres, que as atas são muito difíceis de fraudar, porque dispõem de assinaturas únicas e códigos QR. O Supremo Tribunal de Justiça, composto exclusivamente por juízes leais ao regime, determinou que as atas não podem ser apresentadas, e que Maduro é o vencedor.

    Lula não reconhece a vitória nem de um nem de outro e insiste que o CNE, controlado pelo regime, apresente as atas. Como isso não acontecerá, o Brasil deverá ficar nesse limbo indefinidamente, a menos que o presidente consiga superar o seu aparente dilema interno: a fidelidade ao próprio histórico de luta pela democracia ou de apoio aos líderes autoritários de esquerda da América Latina.

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