Serra da Bocaina: caminhos e experiências que desembocam na vida caipira
Com fronteiras extensas, visitar a Bocaina é viajar por vários lugares e conhecer moradores locais por meio de suas tradições culturais e gastronômicas
Daniela Filomeno em piquenique com iguarias locais entre a Bocaina, Vale do Paraíba e a Mantiqueira (Foto: CNN Viagem & Gastronomia)
Comidas típicas, paisagens rodeadas pelo verde da Mata Atlântica, uma cultura bem preservada e personagens locais que te acolhem como se você fosse da família. Este é um resumo da Serra da Bocaina, região de fronteiras não muito claras, um emaranhado de caminhos entre São Paulo e Rio de Janeiro que revela ser extraordinário tanto no sentido histórico quanto na imersão na natureza. E consegui ver isso de perto enquanto gravava o CNN Viagem & Gastronomia*
Potencializado pela pandemia, o brasileiro tem descoberto cada vez mais o nosso país. De norte a sul, o Brasil guarda destinos não muito explorados. E um desses lugares é a Serra da Bocaina, região entre os dois estados do sudeste – que influencia também cidadezinhas na fronteira de Minas – que não é homogênea: para conhecê-la de fato é necessário atravessar vários lugares, dada sua extensão. A saber: Bocaina designa um acidente geográfico, título que nomeia uma depressão numa serra.
Localizada entre montanhas e relevos acidentados, a Bocaina é uma parte da Serra do Mar que estende-se desde o litoral fluminense, como em Paraty, até o interior de São Paulo. É como um misto entre a cultura caiçara e caipira, uma região de riquezas naturais e culturais imensuráveis. Em minha viagem de descoberta pela Bocaina, além de Paraty, passei também por Queluz (SP) e Passa Quatro (MG), entre outras, em que todas guardam traços em comum com a Serra: personagens incríveis e descobertas gastronômicas surpreendentes.
Unidade de conservação da região, o Parque Nacional da Serra da Bocaina foi criado em 1971 e compreende uma área de cerca de 104 mil hectares com uma grande biodiversidade. Controlado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a sede fica na cidade paulista de São José do Barreiro. São trilhas, mirantes, picos, muitas cachoeiras de águas geladas e uma diversidade surpreendente em torno da Mata Atlântica.
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Assim, como presenciei em minhas andanças pela região, a Bocaina também liga-se à Serra da Mantiqueira e ao Vale do Paraíba, fundindo culturas e histórias locais junto do modo de viver caipira. Tendo esse estilo de vida no horizonte, é a 2h30 de carro de São Paulo e do Rio que fica a pequena cidade de Queluz, morada da Fazenda Santa Vitória. Entre a Bocaina e a Mantiqueira, a hospedagem na propriedade de 1923 recebe casais e famílias com o propósito de resgatar a calma e o isolamento, mantendo um vínculo com o natural.
É por lá também que fica a sede do Instituto Arado: numa casa pequenina de pau a pique há elementos da memória da cultura rural e caipira, a exemplo de sacos de café, livros e galinhas. São objetos e outros aspectos, como a gastronomia e o turismo, que remetem à infância do interior, ativando uma memória coletiva e afetiva. O objetivo do Instituto é preservar e desmistificar o modo de vida caipira, funcionando como um centro de pesquisas voltado também para a conscientização desta tão rica cultura.
Na trijunção do Vale do Paraíba, da Serra da Bocaina e da Mantiqueira, que o caipira surgiu, sendo uma manifestação que envolve São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Além das belezas naturais preservadas, entre seus maiores tesouros estão também a culinária e seus moradores, personagens locais que te recebem de braços abertos para uma imersão em seu mundo. Pude notar que ali o respeito é denominador comum: pela terra, pela comida, pela cultura e pelo passado.
Sabores da Serra
Uma das maneiras de se entender e mergulhar de cabeça na Bocaina é a partir de sua culinária. É um mergulho delicioso, diga-se de passagem! Como disse acima, quando se está pela Bocaina, é natural que se desemboque no Vale do Paraíba, abundante em gastronomia, cultura e história. Foi nestas terras que a cultura caipira foi gerida.
Uma das vertentes deste modo de vida, a gastronomia caipira surgiu da necessidade de se aguentar longas viagens por quem andava por esses enormes pedaços de terra, mexendo também com outros aspectos de nossas vidas. Saborear a comida caipira, para mim, é voltar à infância, é relembrar o passado no interior.
Chamada também de comida de farnel: aquela que nasceu por conta do trânsito de pessoas e boa para ser armazenada. Entre os alimentos da comida caipira, que pude experimentar na Fazenda Santa Vitória e ao longo da viagem, o porco se faz muito presente.
Há uma mistura incrível ainda com farinha, frango, pamonha, leitão a pururuca, feijão tropeiro, bolinho de mandioca, angu – todos gordurosos para dar sustento aos tropeiros. Para isso, o fogão a lenha faz toda a diferença e é como um altar ao redor do culto da comida, esta que é fonte de memória e de força.
Além da comida, uma bebida também faz as vezes de esquentar e animar quem passa pela região: estou falando da cachaça. Encontrei-me com Marcelo Nordskog, empresário que abandonou o mercado financeiro para se dedicar à produção da “marvada” na Fazenda Valparaíso, em Resende (RJ). Ali ele mantém o alambique da Reserva do Nosco, marca que criou em 2007. Ele mesmo planta a cana usada na bebida, a fermentação é natural, há extração das leveduras da cana da fazenda e a destilação é lenta. Tudo isso resulta em duas cachaças de sabor primoroso: a branquinha e a envelhecida, que refletem o terroir da fazenda e da região.
Neste balaio gastronômico, uma coisa fica clara: a Bocaina também é um ótimo reduto de pequenos produtores. Há uma união de diferentes produtores e produtos que é lindo de se ver, os quais sobrevivem basicamente de vender o que produzem e usam, na maioria dos casos, feitos com mão de obra familiar.
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Gente desta terra
A Serra da Bocaina também é feita de personagens. E algumas figuras são notáveis. São produtores rurais, de queijo, charcuteiros, donos de sítios, de alambiques ou ainda violeiros que fazem a diferença por ali e te levam para descobertas em meio aos cenários da região.
Uma dessas figuras é o produtor rural e chef Rafael Cardoso, o Rafa da Bocaina. Ele já viajou o mundo inteiro, trabalhou no Mugaritz – restaurante na Espanha considerado um dos melhores do mundo – e, hoje, dedica sua vida à criação de porcos carunchos. Charcuteiro no Vale do Paraíba, na cidade de Silveiras (SP), ele se mudou para lá em fevereiro de 2013 e desde então vem cuidando dos porcos em sua propriedade, que são criados livremente. Mais do que um apaixonado, ele é um defensor e filho do modo de vida caipira. E só há uma explicação simples para a explosão saborosa que o salame produzido por ele causa na boca: “porco, sal e tempo”, como bem define.
Entrando no filão dos queijos, tive a oportunidade de conhecer o João Laura, o Joãozinho do Queijo. Sua família mantém a fazenda mais antiga ainda em pé de Passa Quatro (MG), construída em 1810, e é ali que ele produz seus queijos para lá de especiais. Numa das salas de maturação os queijos convivem no mesmo espaço: há os duros e cremosos, de leite e de mofo selvagem, os quais conseguem coexistir numa simbiose fantástica. É um verdadeiro sonho de consumo!
O bisavô dele já produzia queijos na Mantiqueira desde 1954 e, desde então, João preserva os mesmos processos – só adicionou o controle de temperatura. Ele define seus produtos como “queijos brasileiros artesanais contemporâneos”. Não é à toa que é chamado Joãozinho do Queijo: ele explica que o que muda em seu produto é onde e como ele é feito, as características da região, que leite é usado e quais matérias-primas. E tudo na Bocaina deixa seus queijos com um gostinho delicioso de quero mais.
Mais uma vez no Rio de Janeiro, agora em Paraty, pude conhecer o Zé Ferreira, um homem simples e muito requisitado, mestre em agrofloresta e que vive em conjunto com a natureza no Sítio Ecológico São José. Para chegar até a propriedade, no Bairro de Sertão do Taquari, é preciso seguir uma trilha dentro do Parque Nacional da Serra da Bocaina, em que passei por corpos d’água, quedas e maravilhas naturais de encher os olhos. Fiz a rota acompanhada de um guia e, diga-se de passagem, o caminho foi árduo: a chuva junto das pedras não é uma combinação tão agradável. Porém, ao chegar na propriedade, entendi seu propósito. O portão de madeira que dá as boas-vindas tem escrito: “Ao entrar, serve as normas da casa”. E quais são as normas? Logo de cara, o respeito à natureza é regra básica.
Quando nem se falava em sustentabilidade, o Seu Zé já aplicava preceitos de agrofloresta na propriedade. É um resgate a uma cultura que se perdeu ao longo dos anos mas que nossos ancestrais já faziam com as plantações em consórcio. Seu sítio possui hoje mais de 70 árvores frutíferas, em que 85% das espécies de plantas dali são nativas, todas da Mata Atlântica. Tudo é produzido sem aditivos químicos. Caqui, acerola, cacau, banana e outros frutos convivem de maneira harmônica, assim como árvores madeireiras e adubeiras. Babosa, dinheiro em penca e erva de São João são plantas medicinais em abundância também, em que tudo que ele consome é vindo exclusivamente da propriedade.
Zé Ferreira é um exemplo claro que o homem consegue, sim, viver harmoniosamente com a natureza ao seu redor, desde que boas práticas agrícolas e os ciclos da terra sejam sempre respeitados. Tudo em seu refúgio foi construído por ele e a família: desde a casa de madeira quase que minimalista onde mora e recebe hóspedes até a engenhoca que capta água e faz funcionar o gerador de energia. Na morada de Ferreira, luxo é a simplicidade da qual a cidade grande parece ter se esquecido: o silêncio sem igual, os banhos de rio, o alimento bem cultivado e recém-colhido e a conversa que flui com este homem sábio e admirável.
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*O programa CNN Viagem & Gastronomia vai ao ar todo sábado, às 21h, na CNN Brasil. A CNN está no canal 577 nas operadoras Claro/Net, Sky e Vivo. Para outras operadoras, veja aqui como assistir. Horários alternativos: domingo, às 03h50, 13h10 e 20h40; Segunda-feira, às 01h10. Ou veja a íntegra no nosso canal no Youtube