Especial Dia Internacional da Mulher: o mundo do vinho também é delas

Neste 8 de março, apresentamos as profissionais que fazem a diferença no “enouniverso” e joga luz nas batalhas e nas vitórias vividas em um mercado que antes era predominantemente masculino

Tina Binido Viagem & Gastronomia

Você é mulher, aprecia bons vinhos e conhece o universo como poucos. Vai a algum restaurante acompanhada e senta à mesa ansiosa para escolher sua garrafa e dar o primeiro gole da taça. O sommelier do local dá boa-noite e logo entrega a carta com os rótulos disponíveis a seu acompanhante… homem!

Se você é do “time do vinho” – trabalha ou apenas gosta do tema – certamente já passou por situação semelhante. Mas a boa notícia é: o conceito de que homens sabem mais sobre o assunto do que as mulheres está caindo por terra a cada ano.

De acordo com uma pesquisa feita pela Wine Intelligence aqui no Brasil, em 2018, o índice de confiança deles ao serem questionados se conhecem o tema é maior até do que o delas. Entretanto, o resultado prático do estudo – com perguntas específicas sobre o tema – mostrou que o entendimento absoluto sobre vinhos é considerado igual entre os dois.

Juliana Carani é a sommelière responsável pelo Ristorantino e Lassu Ristorante (Foto: reprodução Instagram)

Juliana Carani, de 31 anos, é a sommelière do Ristorantino e Lassu Ristorante, em São Paulo, e já sentiu na pele essa diferença de tratamento, seja trabalhando, seja indo jantar com seu marido, Manoel Beato, sommelier do Grupo Fasano e um dos mais renomados do país.

Por muitas vezes foi ela quem escolheu e levou um vinho de sua adega que gostaria de tomar, entregou a garrafa aos responsáveis do restaurante e viu a taça ser oferecida a ele primeiro. Ela, entretanto, usa essas situações para mudar esse comportamento com novas ações dentro de sua profissão.

Além de trabalharem nos salões, Juliana e Manoel têm juntos uma empresa de consultoria e exercem a mesma função para seus clientes. Estudam, conversam muito sobre o tema e dividem experiências do dia a dia.

“No começo, percebia essa desconfiança por ser mais nova e ainda ser mulher. Sentia que alguns clientes de perfis específicos não confiavam em meu trabalho. Aos poucos, isso foi mudando, e hoje é cada vez menos recorrente”, conta.

“Eu tento quebrar tradições sutilmente. Dou tratamento igualitário a todos os que chegam nos restaurantes. Pergunto quem vai provar o vinho, quem vai escolher. Precisamos quebrar esses costumes e entender que o mundo do vinho não tem diferença de sexo. É prazeroso para os dois. Recebo cada vez mais mesas com mulheres que querem saber todas as características daquele rótulo e estão abertas a experimentar. É preciso tirar preconceitos enraizados de que o paladar feminino é mais doce, é mais isso ou aquilo. É necessário incentivo para que todos possam descobrir ainda mais esse mundo”, completa.

Se Juliana e Manoel são ainda mais unidos hoje pelo vinho, outro casal querido no mundo da gastronomia também tem histórias entre tantas taças… Quer dizer, começou a ter depois que ela, a enóloga e sommelière argentina Cecília Aldaz sugeriu e convenceu o chef Felipe Bronze – que depois se tornou seu marido – a harmonizar um prato com uma taça de um rótulo espanhol. Ele, que não bebia, deu um voto de confiança e se encantou.

Cecília Aldaz é a enóloga e sommelière do Oro (RJ) e Pipo (SP) (Foto: divulgação/Tomás Rangel)

“Ele brinca, falando que pensou: ‘Se essa sommelière conseguiu me fazer beber vinho, preciso levá-la para trabalhar no Oro, pois convencerá facilmente qualquer pessoa’”, lembra ele, rindo. O convite veio e ela aceitou. Lá se foram dez anos, quase 11, que Cecília mora no Brasil e trabalha com o chef, com quem se casou. Elabora uma rica e eclética carta de vinhos que inclui de clássicos do velho mundo a rótulos inusitados.

Natural de Mendoza, cidade conhecidíssima por suas vinícolas e referência no mundo da bebida, cresceu entre tantos rótulos, estudou e batalhou muito duro para conseguir o reconhecimento que tem hoje. “Sempre trabalhei dentro de vinícolas, em diferentes países. Comecei com um serviço um pouco mais braçal. Às vezes você precisa fazer um esforço mais duro para provar que tem força para fazer outras coisas. Precisa mostrar para as pessoas que você é capaz, assim como um homem”, ressalta.

“Felipe nunca teve uma atitude machista, e isso sempre me encantou. Muitas vezes acontecia de clientes pedirem sugestões a ele, por ser o chef, e ele imediatamente me chamava e falava: ‘Ela é quem vai ajudar, sabe melhor do que qualquer pessoa’. Isso foi me dando respaldo e confiança. Ele sempre me apoiou e me viu primeiro como profissional. Sempre me escutou e ouviu minhas sugestões, como oferecer um cardápio todo harmonizado. No ambiente de trabalho não somos marido e mulher, somos chef e sommelière”, enfatiza.

Se passar pelo Rio de Janeiro ou por São Paulo, não deixe de ter essa experiência nos restaurantes comandados pelo casal. A simpatia, o bom atendimento, a comida de qualidade e a harmonização impecáveis são as garantias do Pipo e do Oro.

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O machismo no mundo do vinho

Toda a cadeia desse universo, antes composta predominantemente de homens, vem ganhando outro perfil ao longo dos últimos anos. São enólogas, professoras, donas de importadoras e de vinícolas, vendedoras, jornalistas, organizadoras de grandes eventos, entre outros cargos que vêm sendo ocupados cada vez mais por mulheres.

Se você for a restaurantes renomados pelo Brasil e pelo mundo não será incomum ver a equipe de atendimento sendo comandada por uma delas – assim como as histórias contadas anteriormente. Segundo a Associação Brasileira de Sommeliers (ABS), houve um crescimento de 46% de profissionais formadas nos últimos cinco anos.

Apesar disso, o machismo, que tanto assombra a sociedade, continua muito presente no mundo das taças. Uma pesquisa realizada por um dos maiores formadores de opinião da área de vinhos, Marcelo Copello, apontou que 80% das mulheres atuantes desse universo consideram o mercado machista – 50% delas responderam que já sofreram algum tipo de assédio ou discriminação e 68% relataram pelo menos conhecer alguém que já passou por situação semelhante. O estudo foi feito com 500 mulheres de 18 estados brasileiros em janeiro de 2021.

A vinícola em Dom Pedrito é comandada por mulheres (Foto: Rodrigo Vieira/divulgação)

A nova geração
A pesquisa de Marcelo Copello também apontou que a participação do público feminino é recente e crescente, já que, entre as entrevistadas, a maior presença é de mulheres que trabalham com vinho há menos de cinco anos.
É o caso de Andrea Machado, sommelière e representante de vendas da importadora Wines4u, que fornece vinhos para os maiores restaurantes de São Paulo. Formada pela ABS em 2018, ela trabalha na área há quatro anos e virou grande referência, juntamente com Camila Crawford e seu marido, Andrew Crawford, sócios da empresa. Mas no início nem tudo foram flores.

“Sentia que precisava me afirmar constantemente por ser mulher. Já passei por situações com um cliente que sempre colocava a mão em cima do copo e chamava o maître para servi-lo. Mas tive sorte de no caminho poder contar com a ajuda de outras mulheres, profissionais consolidadas, que me deram as mãos, me ensinaram muito e abriram as portas”, ressalta Camila.

Outra profissional recente no mercado de vinhos, mas que já conquistou muita credibilidade, é Gabrielli Fleming. Ela, que hoje tem 29 anos, entrou no salão pela primeira vez aos 23 e não saiu mais. Virou sommelière formada pela Wset e deixou o posto de consultora de investimentos em uma seguradora. Abriu com seu marido o restaurante Cepa (leia a matéria completa aqui) e ainda colocou em prática um antigo sonho, fundando a própria importadora de vinhos naturais, a Cepa Vinhos.

“Acredito que tenho de me posicionar muito o tempo todo para que seja acreditada. Muitos clientes acham que sou funcionária do Cepa, e não sócia. Também sou colocada muitas vezes como ‘esposa do chef’”, diz.

“Uma vez fui conversar com o dono de um restaurante bem tradicional de São Paulo sobre uma consultoria. Ele me olhou e falou: ‘Como você é novinha… ’. Tudo o que eu falava ele desacreditava. Até o momento que olhei para sua carta de vinhos e fiz uma análise sobre o vinho mais vendido. Ele só foi acreditar quando o relatório saiu e eu estava certa”, lembra Gabi, que completa: “Provo com meu trabalho meu profissionalismo e conhecimento”.

Elas estão desde sempre

Apesar de o crescimento exponencial feminino ser recente no universo do vinho, a presença de mulheres sempre existiu e é secular. Aqui no Brasil há profissionais que atuam na área há 15, 20, 30 anos e acompanharam toda essa evolução de perto.

É impossível, por exemplo, gostar desse tema sem conhecer ou ouvir falar de Suzana Barelli, a jornalista que foi a primeira a escrever sobre o tema, em 1995. Cobria a editoria de economia na Folha de S.Paulo quando a importação de vinhos começou a movimentar o mercado financeiro. Passou, então, a escrever sobre esse universo. Não sabia nada sobre o assunto à época, mas fez inúmeros cursos e se tornou grande referência na área. Suzana sempre se impôs. Ao fazer uma entrevista, começa com perguntas que já mostram vasto conhecimento na área.

A jornalista Suzana Barelli escreve sobre vinho desde 1995 (Foto: reprodução Instagram)

“Era muito comum eu ser a única mulher à mesa em eventos. Os homens me encontravam nas degustações e sempre falavam que me chamariam para suas confrarias, mas esses convites nunca chegavam. Já estava acostumada. Até que eu e umas dez amigas decidimos fundar a própria confraria, chamada Caos. Esses mesmos que nunca me convidaram ficaram sabendo e começaram a querer participar, dando palestras para a gente. Eu só dava risada com a situação. Com dez mulheres, agora está todo mundo interessado, né?”, recorda com humor.

Já Cristina Neves é responsável pela organização de importantes eventos do mundo do vinho no Brasil há mais de 25 anos. Sua empresa atua em diversas áreas da comunicação desse segmento e trabalha com a imagem e a divulgação de grandes marcas.

“Em um universo predominantemente masculino, você precisa se impor. Posso dizer que sempre fui respeitada por meu trabalho. Talvez um pouco de sorte, mas também muita dedicação e estudo. Eu entrego resultado a meus clientes, que têm confiança em meu conhecimento. Comecei em uma época em que havia pouquíssimas mulheres nesse universo e fui conquistando meu espaço.”

Um dos cases que Cristina destaca é a pulverização de rótulos argentinos no país, antes não vistos com bons olhos pelos consumidores. Sua empresa foi contratada pela Wine of Argentina por 12 anos e fez um trabalho de expansão no mercado brasileiro com sucesso.

Gabriela Bigarelli está à frente da equipe de sommeliers do Grupo Mani há 15 anos (Foto: arquivo pessoal)

Gabriela Bigarelli, por sua vez, é sommelière e está à frente do Grupo Mani há 15 anos. Trabalha também em outros 25 restaurantes em São Paulo e no interior e em grandes hotéis pelo Brasil. Durante anos morou na Europa, mais especificamente em Firenze, na Itália, onde sua paixão pelo universo foi despertada. Estudou e ganhou experiência na área por lá. Tem a própria consultoria e, entre suas funções, treina todas as equipes de atendimento dos restaurantes e faz trabalhos personalizados de planejamento de adegas e harmonizações. Ainda acha tempo para dar cursos gratuitos a garçons, alimentando outra área que ama: desenvolvimento de líderes e pessoas.

Quando voltou ao Brasil, apesar de toda a experiência no exterior, teve de dar passos para trás em sua carreira. “Ainda era um nicho muito masculino, pouquíssimas mulheres trabalhando. Tive de começar como recepcionista e fui subindo. Acho que, além disso, minha idade também contou para essa desconfiança”, comenta.

“Como sofri nesse começo, criei certas barreiras, que fazem com que eu me imponha antes que alguém já demonstre algum tipo de preconceito. O que acontece muito é aquela cantada barata, mas que homens também acabam sofrendo. Outra coisa com que precisamos lidar é com aqueles clientes que viajam o mundo, gostam do assunto e buscam nos desafiar, fazendo perguntas para testar nosso conhecimento profissional sobre vinhos. Confesso que não me importo mais com isso. Estudo muito, viajo, sigo minha intuição e busco ser a melhor profissional dentro de minha área”, completa.

Mulheres no comando de vinícola

Na vinícola Guatambu, em Dom Pedrito, no Rio Grande do Sul, 80% dos funcionários são mulheres. A começar por Gabriela Potter, grande idealizadora do negócio. Sua família, tradicional na região, sempre teve um grande trabalho voltado à criação de gado e ovelhas e à plantação de arroz.

Vinícola no Rio Grande do Sul tem 80% de mulheres entre seus funcionários (Foto: divulgação)

Formada em agronomia, Gabriela, ainda na faculdade, identificou em seus estudos que a localização das propriedades da família, na fronteira com o Uruguai, proporcionava uma perfeita maturação fenólica das uvas.

Convenceu, então, em 2003 seu pai a diversificar a área de atuação da família, plantando as primeiras mudas de cabernet sauvignon. Valter Potter ainda estava receoso, mas o voto de confiança nas mulheres da família deu certo, e a primeira produção, anos depois, fez muito sucesso. A vinícola se tornou referência na região após muito estudo, dedicação, embasamento científico e sonho de Gabriela.

Aberto para visitação, o local é ponto de parada obrigatória para os fãs do enoturismo. Lá, deliciosos almoços com alimentos diretamente da fazenda contam com a harmonização dos vinhos da casa.

A maioria dos cargos da empresa é ocupada por mulheres, desde a responsável pelo controle de qualidade de vinhos, que faz a análise química, passando pela enóloga e chegando à área de atendimento. Gabriela e duas irmãs sempre comandaram toda a operação, sendo diretoras da empresa, abaixo apenas do pai. Isadora, mais nova, era sommelière e diretora de marketing da vinícola. Faleceu em 2017, mas deixou sua marca, que ficará para sempre na história do local.

Gabriela Potter realizou seu sonho e hoje comanda a vinícola da família em Dom Pedrito (Foto: divulgação)

“Claro que estamos sempre abertos para receber currículos de todos, mas foi um caminho natural o de escolhermos mais mulheres. Os perfis que chegaram até nós tinham tudo a ver com a vinícola e o que esperávamos de um profissional. Não foi algo programado, mas percebemos no dia a dia que mulheres são mais detalhistas. Acho que estamos no caminho certo”, destaca Gabriela.

Crescimento no interesse e consumo

Além da presença feminina em todas essas áreas de atuação, o interesse das mulheres também vem crescendo a cada ano. A Sociedade da Mesa, principal clube de vinhos do país, viu um aumento de associadas de 39% de fevereiro de 2020 a 2021. Hoje, elas já representam 22,15% do total de assinantes.

O tíquete médio delas também subiu para 108,33 reais (aumento de 38% em comparação com o ano anterior), e é maior do que a média do tíquete geral, que é de 89,29 reais.

Neste mês, por exemplo, os destaques dos rótulos da Seleção Obras-Primas, uma das categorias do clube, são um rosé e um tinto Château de Saint-Martin, uma propriedade regida há 11 gerações só por mulheres.

Confraria para mulheres

Esse crescimento de interesse e engajamento no mundo do vinho também se reflete no aumento de confrarias femininas. Os encontros terminam em muito aprendizado e diferentes experiências – além, é claro, de novas amizades. Atualmente formado por 500 “confreiras”, a confraria Luluvinhas, de Belo Horizonte, foi criada em 2012 e é coordenada por Vanessa Ferreira e Eveline Porto, com formações em escolas renomadas no mundo do vinho.

As comandantes dos encontros – que, antes da pandemia, reuniam 120 mulheres por mês, separadas em grupos – nunca tiveram interesses financeiros com a criação do projeto. Elas possuem originalmente outros negócios e profissões e apenas querem fomentar o mercado e proporcionar aprendizado para esse público. O dinheiro que sobra volta diretamente em estoque de vinhos e compra de materiais.

“A confraria é feminina por uma demanda adormecida. As mulheres sempre encontraram dificuldade em se reunir para usufruir esse tipo de companhia e aprendizado. Começamos com poucas e, em 2015, abrimos para que qualquer mulher acima de 18 anos participasse, desde que viesse indicada por alguma amiga “, ressalta Vanessa.

Na Luluvinhas não há pagamento de mensalidade. Os eventos são pagos à parte, justamente para ir quem quiser, como quiser, de acordo com as possibilidades. Esses encontros costumam acontecer em restaurantes em Belo Horizonte, com cinco vinhos e cinco pratos harmonizados. Além disso, o enoturismo no grupo é muito forte. Elas se reúnem para viajar pelo Brasil e pelo mundo para vivenciar ainda mais o tema.

“Eu comando a parte didática. Falamos sobre tudo: gastronomia, química, história, geografia, política e até laços familiares. Estudamos muito para trazer sempre um conteúdo interessante para que a bebida em si se torne apenas mais um elemento. Nossa ideia é ir além, ainda mais falando sobre vinho, que tem uma rede infinita de conteúdo em um campo muito vasto”, completa.

O mundo do vinho também é delas

No Dia Internacional da Mulher, com tantas lutas e batalhas ao longo da história, é com orgulho que percebemos que mais um mundo também é conquistado por elas a cada dia. Então, para comemorar, que tal reunir as amigas (virtualmente) e abrir uma garrafa de vinho? Um brinde a todas!

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