Ícone da TV e da culinária, Julia Child tem trajetória revisitada em 2022
Série, documentário e ainda um reality show com brasileira na competição: legado da apresentadora e autora renasce neste ano com obras que jogam luz ao seu legado na culinária
“A comida em si é como um passaporte”.
Essa é apenas uma das frases de efeito que a atriz Sarah Lancashire diz em um dos “amanteigados” episódios de “Julia”, série que estreou em março na HBO Max.
A atriz inglesa vive nas telinhas ninguém menos do que a figura central que empresta seu nome ao seriado, a autora, apresentadora e cozinheira Julia Child.
Antes dos milhões de tutoriais no YouTube ensinarem absolutamente tudo da maneira mais rápida e prática, desde canjica até boeuf bourguignon, antes dos realities culinários focarem na competição de habilidades, e antes mesmo da popularização dos programas culinários com chefs-celebridades, lá estava ela.
Com uma estatura que chegou aos 1,90m, voz estridente e jeito desengonçado, a Julia Child da vida real foi a responsável por unir algo que era improvável nos anos 1960: comida e televisão.
Com um jeito peculiar de lidar com o público e com as câmeras, tirando o peso formal dos programas da época e se arriscando num meio de comunicação ainda em desenvolvimento, Julia fez a proeza de aproximar as pessoas da tela e, ao menos, instigá-las a ter vontade de comer bem.
Isso tudo regado à muita improvisação, humor próprio e sem o uso de ingredientes totalmente caros ou difíceis de serem encontrados. Como muito bem lembra a atriz inglesa na pele de Julia na série, “a questão toda é cozinhar com o que está mais disponível para as mulheres americanas”.
Volta aos holofotes
Apesar de ter falecido em 2004, dois dias antes de completar seu 92º aniversário, os anos seguintes catapultaram seu nome ainda mais em direção ao reconhecimento a nível mundial. Estrelado por Meryl Streep, o filme “Julie & Julia”, de 2009, foi uma das primeiras grandes produções que recapitularam um pouco de sua vida.
Tal fato continua mesmo 18 anos após sua morte, uma vez que ela está mais em pauta do que nunca. Somente em 2022, Julia Child ganhou uma série, que retoma sua vida no começo de seu programa televisivo, assim como um documentário minucioso sobre sua importância como força cultural, e um reality show formado por cozinheiros que, de alguma forma, possuem uma ligação com a famosa cozinheira e apresentadora.
Mas por que Julia, de certa forma, voltou as holofotes?
“Acho que tudo isso se deve ao fato de Julia acabar sendo uma daquelas figuras realmente resilientes que fala e parece diferente, mas é semelhante geração após geração”, diz Chris Keyser ao CNN Viagem & Gastronomia.
Showrunner de “Julia”, seriado da HBO Max, ele acredita que a autora e apresentadora de TV ainda transmite uma mensagem positiva sobre os sabores da vida, principalmente em 2022.
Por que Julia agora? Acho que ela tem essa tendência de falar um pouco com todos nós sobre o melhor caminho, e esse interesse vem em ciclos – e esse ciclo está voltando
Chris Keyser
Breve história
Californiana da cidade de Pasadena, próxima de Los Angeles, Julia Child fez história. Foram 19 livros publicados entre 1961 e 2020, incluindo dois póstumos, 11 programas de televisão e incontáveis prêmios ainda em vida – como a “Medalha Presidencial da Liberdade”, dada em 2003 pelas mãos do ex-presidente George W. Bush.
Mas sua trajetória começou bem antes da colheita dos frutos. Nascida em 15 de agosto de 1912 – ela faria 110 anos neste ano se estivesse viva – Julia Child era a mais velha de dois irmãos. Graduada em história na Smith College, a mesma de sua mãe, Child também explorou outras áreas, como detalha a Julia Child Foundation, fundação criada após sua morte: atuou no teatro, jogou basquete e fez curso de escrita criativa.
Como a própria escreveu na memória “Minha vida na França”, ela aspirava se tornar uma famosa novelista após a faculdade. Com isso em mente, foi para Manhattan em 1935 e trabalhou no departamento de propaganda de uma firma de mobília doméstica.
Seus rumos começaram a mudar em 1942, quando foi contratada como datilógrafa na US Information Agency em Washington, espécie de agência antecessora da CIA. Em meio à II Guerra Mundial, foi enviada a Ceylon (hoje Sri Lanka) e conheceu Paul Child, seu futuro marido. De volta aos Estados Unidos, os dois se casaram em 1946 – Julia chegou até a entrar em um “curso de culinária para o casamento”, o qual ela descreveu como “desastroso”.
O casal mudou-se para Paris no final dos anos 1940 por conta do trabalho de Paul nos serviços de diplomacia -pontapé para os seis anos seguintes, quando ambos viveram em variados locais, como Marselha, Alemanha e Noruega.
Curiosidade: em Paris, de acordo com a Julia Child Foundation, a primeira refeição de Julia foi no La Couronne. Sua estadia na França foi o começo de uma eterna paixão pela gastronomia francesa e a semente para o aprimoramento de seus dotes culinários.
Entre seus gostos, o casal amava Chablis, ostras e sole meunière – refeição que Julia descreveu como “a mais excitante de minha vida”.
Em 1949, ela passou a frequentar a prestigiada Le Cordon Bleu, onde obteve o diploma apenas em 1951 após falhar no exame no ano anterior. Após conhecer as francesas Simca Beck e Louisette Bertholle, que procuravam uma colaboradora americana para um livro sobre culinária francesa, as três passam a dar aulas de culinária juntas.
Após nove anos de testes de receitas e escrita, além de negativas de uma grande editora e reduções sistemáticas nos manuscritos, o primeiro livro com seu nome foi lançado em outubro de 1961. “Mastering the Art of French Cooking” é até hoje um marco de sua carreira e ganhou outros volumes ao longo do tempo.
No mesmo ano, em uma rádio norte-americana, a locutora Martha Deane apresentou a obra como sendo um livro de receitas francesas para mulheres americanas. Já demonstrando seu lado destemido, Julia corrigiu a apresentadora durante uma entrevista: “[O livro] é para homens também. É para qualquer um que ama cozinhar e ama comer”.
Ainda em 1961, o casal Julia e Paul voltou aos Estados Unidos e fixou residência no número 103 da Irving Street, na cidade de Cambridge, área metropolitana de Boston. A casa existe até hoje, mas foi bastante mudada ao longo das décadas. É a partir de sua mudança para os EUA, do lançamento do livro e do lançamento do programa “The French Chef”, que o seriado “Julia” começa.
Retomada no streaming
Planejada desde 2020, a série “Julia” é baseada na vida de Julia Child e seus percursos como autora e apresentadora de televisão. Como a vasta maioria das produções televisivas, o desenvolvimento do seriado foi adiado por conta da Covid-19. Além da pandemia, achar o elenco certo e reuni-lo também foi uma das maiores dificuldades relatadas pelo showrunner Chris Keyser.
Apesar da turbulência inicial, a série estreou no fim de março no serviço de streaming HBO Max e veio em um ano em que a história de Julia está renascendo.
Elogiada por sua docilidade em mostrar alguns dos momentos mais importantes da vida de Julia Child – a atuação de Sarah Lancashire como protagonista também tem recebido atenção da crítica -, a série já ganhou uma segunda temporada e os fãs podem comemorar.
Os oito episódios da primeira parte ambientam o telespectador na vida de Julia em um momento em que a televisão pública engatinhava e os produtos industrializados ganhavam as prateleiras das casas norte-americanas.
Na série, há ainda o amoroso e efeminado Paul (David Hyde Pierce) com quem, segundo os relatos, ela compartilhou uma boa química ao longo do casamento. Há os anos de escrita do primeiro livro, assim como seu amor pela manteiga e pelo sole meunière que mudou sua vida.
A série prende o público ao mostrar os bastidores truculentos de se criar um programa culinário do zero, o “The French Chef”, que foi ao ar pela televisão pública local WGBH. Trabalhando ao lado da amiga Avis DeVoto (Bebe Neuwirth), da editora Judith Jones (Fiona Glascott) e da produtora Alice Naman (Brittany Bradford), é encorajador ver o grupo de mulheres se unir em prol de um projeto que estabeleceria novos paradigmas na televisão e na culinária.
“Sempre quisemos que os espectadores estivessem em boa companhia. Essa era a ideia básica”, revela Chris Keyser sobre a experiência de assistir ao seriado.
“Você deve sempre sentir que está caloroso e perto de pessoas maravilhosas. É isso: aquela sensação de se estar um pouco seguro e desafiado, mas principalmente seguro e feliz. Deve ser o mesmo na culinária, certo?”, indaga.
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A ideia de se fazer um seriado sobre Julia não veio dele nem mesmo do roteirista Daniel Goldfarb, mas sim da produtora Kimberly Carver, cuja mãe saiu do Vietnã rumo aos Estados Unidos e aprendeu a cozinhar vendo Julia Child na televisão.
“Cresci nos anos 1960 e lembro de vê-la naqueles programas preto e branco com meus pais. Não éramos uma família que se preocupava tanto em cozinhar, nossa cozinha era muito parecida com a daquela época – fast food e enlatados”, relembra Keyser, que foi receptivo à ideia de Kimberly.
“Julia não mudou a maneira como minha família cozinhava, mas ainda me lembro do sentimento de ver aquela mulher na televisão, que possui algo inegavelmente atraente”, retoma o showrunner.
De fato, a ousadia de querer estrelar o próprio programa culinário numa televisão pública de audiência diminuta, e ainda ouvir comentários e sofrer atitudes sexistas, já transformava Julia Child em uma pessoa que tinha algo a mostrar.
Assim, segundo Chris Keyser, os episódios também falam sobre muitos outros temas. “Realmente nos importava falar sobre o que significa ser uma celebridade, falar sobre o advento da televisão pública e também sobre o significado da comida em nossas vidas”.
Talvez o mais importante de tudo era falar sobre a ideia de segundas chances na vida, falar com pessoas que encontraram um propósito que antes não encontravam. Todas essas coisas nos pareciam significativas, agora e sempre. E Julia, quando começou a fazer ‘The French Chef’ em 1962, foi um veículo perfeito para isso
Chris Keyser
Toque brasileiro
Mesmo que o Brasil não nutra uma influência direta de Julia Child no cotidiano (por aqui ícones semelhantes são Ana Maria Braga e Palmirinha Onofre), há um toque brasileiro neste revival de sua carreira.
Com previsão de estreia para 28 de junho em território nacional, o reality culinário “Desafios Culinários Julia Child“, do streaming Discovery+, já tem todos os episódios disponíveis nos EUA.
Surge então um spoiler digno de ser revelado: após seis episódios, em que enfrentou oito competidores e desafios fora de sua zona de conforto, a grande vencedora do reality foi a brasileira Jaíne Mackievicz.
A premissa é que os oito participantes, todos fãs de Julia Child, elevem as refeições do dia a dia a um alto nível técnico. Para tanto, eles passam por duas provas por episódio: a primeira é um convite a releituras de receitas de Julia e a segunda é autoral e eliminatória.
Natural de Costa Marques, em Rondônia, cidade “muito, muito longe de qualquer lugar”, segundo a ganhadora, Jaíne foi construindo sua relação com Julia aos poucos. Quando criança, sentava-se ao lado da mãe para assistir programas culinários na televisão aberta.
“Sempre gostei de cozinhar mas não imaginava isso para o futuro. O que mudou foi que minha mãe começou a fazer um bolo em casa para vender. Comecei a me envolver com aquilo de alguma maneira, estava ali lambendo uma tigela de um ganache, de merengue”, conta a profissional, que hoje atua como food writer e desenvolvedora de receitas nos EUA.
Até que, numa das tardes em frente à televisão, viu o clipe de um dos programas da norte-americana.
“Lembro de vê-la na TV, uma mulher muito alta cozinhando, o que não era tão comum nesse estilo mais profissional. A Julia era grande e desajeitada, ela não era o ‘fit’ perfeito para a TV. De alguma maneira aquilo falou comigo, ‘talvez possa ser como ela’, pensei. Essa história sempre foi ficando na minha cabeça”.
A estreia do filme “Julie & Julia”, com Meryl Streep e Amy Adams no elenco principal, aconteceu quando Jaíne ainda era adolescente e despertou uma memória na brasileira. Nos anos seguintes, foi atrás dos livros e dos programas a fim de entender como aquela mulher se tornou a irreverente Julia Child.
Após abandonar a carreira de advogada, Jaíne deu o pontapé no sonho de seguir os passos da apresentadora norte-americana: sem falar inglês e com pouco dinheiro, chegou a Boston, onde Julia viveu a maior parte da vida.
Após muitos perrengues e arrependimentos, ficou na cidade e se apaixonou de fato pela gastronomia. Depois de cursos livres, a brasileira decidiu não ser mais chef: queria escrever sobre comida ao invés de cozinhar de fato.
“Cozinho muito com a minha intuição, seguindo meus sentidos, e esse é um jeito muito brasileiro. Mas aqui [nos EUA] ainda existe uma brecha entre o cozinheiro muito bom e o cozinheiro emocional. Queria ensinar as pessoas a seguirem a intuição delas com a comida e talvez poderia fazer isso escrevendo”, relata Jaíne.
Como ela então entrou para um reality culinário e saiu vencedora? Após escrever um artigo para uma revista especializada em culinária contando sobre seu vínculo afetivo com Julia Child, a produção do programa entrou em contato.
“A primeira coisa que pensei foi dizer não, pois não gosto de competição. Nunca me imaginei participando de nada, mas acabei indo. Fui para as audições com zero expectativa”, revela.
Após meses no processo seletivo, a rondoniense foi escolhida para o elenco do reality. Todo medo e dúvida desapareceram quando colocou os pés no estúdio.
“Abri aquela porta e era como se eu tivesse realmente entrado na cozinha da Julia. Fomos recepcionados pela imagem dela, e aquele foi o momento que pensei que não estava mais sozinha, tinha alguém que conhecia ali. Foi meio que como uma mãe me falando que ia ficar tudo bem”.
Comida do coração
A primeira prova não foi das melhores – nem pra ela nem para os outros candidatos -, mas logo Jaíne deu a volta por cima. “Entendi que era para eu fazer a comida que faço em casa, com meu coração, que fala sobre a cozinheira que sou. E é exatamente o que a Julia pregava também”.
Arroz, feijão, brigadeiro, o que aparecesse e ressoasse suas memórias, a brasileira fazia, que adaptou os desafios repletos de toques franceses para um jeitinho brasileiro. “Sinto que o brasileiro se adapta na cozinha de uma maneira incrível – a gente cozinha sem receita, por exemplo, o que é uma coisa raríssima aqui nos EUA”, argumenta.
A gente sabe fazer um arroz como ninguém, e isso é tão pouco falado. Então quando eu tivesse a oportunidade eu iria fazer um arroz branco tão gostoso de ser digno de ser da cozinha e da mesa da Julia, pois não tem comida que vale mais ou vale menos
Jaíne Mackievicz
Logo, com o passar das gravações, Jaíne foi se sobressaindo perante os outros competidores, já que colocou um sotaque em seus pratos.
“Enfiei 100% da brasileira que sou na competição. Uma das coisas que sempre me fez ser apaixonada pela Julia é sua autenticidade, de ela se impor em um mundo machista em que ela não tinha lugar. Queria mostrar essa força justamente por eu ser imigrante também”.
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O prato da final? Uma reinterpretação do clássico boeuf bourguignon: Jaíne fez uma vaca atolada brasileira. O resultado saiu mais parecido com o prato cubano Ropa Vieja, que consiste em carne desfiada cozida com azeitona e pimentões, em que tem um sabor mais cítrico.
“Aí coloquei o vinho, que no frigir dos ovos ficou algo parecido com uma carne de panela. Fiz arroz com cenoura e feijão com pancetta para lembrar o defumado do bacon. Ou seja, na final, servi arroz e feijão!”, brinca a ganhadora.
Como parte do prêmio, ela viaja em outubro para Paris para estudar por três meses na Le Cordon Bleu, a mesma que formou Julia Child. Para o futuro, a meta “é continuar dizendo que o arroz e o feijão é comida dos reis”. Uma newsletter em inglês e português e um livro também estão no forno.
Diante disso tudo, qual foi o maior legado culinário que Julia deixou para Jaíne? A resposta pode parecer simples: manteiga.
“Quando aprendi a usar a manteiga do jeito que a Julia ensinou, as coisas mudaram. No Brasil, sabemos salgar as coisas. Quando combinei isso com o uso da manteiga foi o combo perfeito”, ressalta a cozinheira.
Por que celebrar Julia agora?
Anos após sua morte e em meio a tantas produções audiovisuais lançadas no mesmo período, por que revisitar a carreira de Julia Child neste momento? As respostas estão, na verdade, fora da cozinha.
Para Chris Keyser, showrunner da série “Julia”, ela ainda possui muitas mensagens poderosas para compartilhar.
“Acho que há ideias que ela representa que são muito adoráveis e atraentes. Ela era como nós em certo sentido, já não parecia uma celebridade, tinha uma voz engraçada, e era cheia de coisas que uma pessoa comum tem. Ainda assim, ela se tornou importante na televisão e em nossas salas e cozinhas por causa de seu senso de humor, por seu amor pela vida, por sua capacidade de rir de si mesma, por sua capacidade de errar e ser humana”.
Além das receitas, ele cita que as pessoas podem aprender novas coisas com Julia de um jeito leve mesmo em 2022.
“Acho que a mensagem principal é que nunca é tarde demais para encontrar algo que você ama. Não há nada de errado em ser exagerado na maneira como você abraça o sabor e a beleza. Adicione manteiga, adicione vinho, vá em uma aventura, experimente algo que você nunca experimentou antes e não se preocupe em às vezes ser demais”, motiva o produtor.
Para a brasileira Jaíne Mackievicz, o legado da cozinheira, autora e apresentadora norte-americana é baseado em não ter medo – incluindo não ter receio de cozinhar. “A gente começa fazendo isso na cozinha e quando vê está fazendo isso na vida. Você começa por aquilo que coloca na boca, mas vai muito além disso”, diz.
Em “Minha vida na França”, um dos últimos livros assinados por Julia Child, a autora finaliza a obra de uma maneira que sintetiza o recado. “Pensar nisso agora me lembra que os prazeres da mesa e da vida são infinitos – bon appétit!”.