De centenas de peregrinos a raros solitários: a pandemia no Caminho de Santiago
Impacto das medidas restritivas em um dos circuitos mais desejados por viajantes vai de prejuízos no comércio a extensão de ano santo
Caminho de Santiago (Foto: Isabella Galante)
Isabella Galante, colaboração para a CNN Brasil
Seja por espiritualidade, desenvolvimento pessoal, aventura, paixão pela natureza ou turismo, o Caminho de Santiago ganhou nos últimos anos uma atenção cada vez maior, que se traduziu em um número crescente de peregrinos que percorriam as várias rotas direcionadas a Santiago de Compostela, na Espanha.
Entretanto, o cenário mudou completamente quando o novo coronavírus atingiu a Europa. Em 13 de março de 2020, um dia antes de ser decretado o estado de emergência na Espanha, a Catedral de Santiago fechou suas portas e, pouco tempo depois, qualquer trânsito entre as comunidades autônomas ficou proibido. O confinamento total paralisou qualquer possibilidade de peregrinação.
A igreja só voltou a reabrir 109 dias depois, em julho, um tempo de clausura inédito em sua história documentada. Em circunstâncias normais, a igreja estaria, naquela época de alta temporada, celebrando missas com 900 pessoas, sua capacidade máxima. Contudo, a queda na circulação foi de mais de 80%.
Da alta constante à queda livre
A tendência de crescimento no número de pessoas que realizavam anualmente a peregrinação rumo a Compostela pode ser observada nos dados da região. Foram 346.157 pessoas, entre espanhóis e estrangeiros, que se deslocaram à Galícia em 2019 — um recorde, quase 20 mil turistas a mais que no ano anterior. Isso gerou um movimento econômico que possibilitou novos negócios e uma maior taxa de ocupação em hotéis e albergues.
As estatísticas indicam que o movimento continuaria em 2020. O estudo “O impacto da crise sanitária da Covid-19 na capacidade de carga turística do Caminho de Santiago”, realizado pela Universidade de Santiago de Compostela (USC), constatou que apenas nos dois primeiros meses do ano passado houve um aumento significativo na taxa de peregrinos, sendo 20,4% para janeiro e 34,9% para fevereiro.
Mas a pandemia cessou esse movimento. Já no verão europeu, mesmo com a mobilidade permitida, o medo de uma segunda onda fez a temporada acabar com 84% menos turistas.
“Passamos de ver centenas de peregrinos por dia a vê-los raramente”, diz Miguel Frieiro, responsável pelo Hotel Roquiño, localizado na cidade de Caldas del Reis, que faz parte do itinerário do Caminho português.
A retomada neste ano prometia ser intensa. Em 2021, comemora-se o Ano Santo Jacobeu, já que o dia do apóstolo Santiago Maior (25 de julho) cai num domingo. No entanto, em janeiro deste ano, 60 viajantes haviam se registrado no Centro de Acolhimento ao Peregrino. Em fevereiro, foram apenas 14 – o esperado era mais de dois mil ao mês. Por isso, com anuência do Papa Francisco, decidiu-se prorrogar o Ano Santo deste ano para a possível normalidade de 2022.
Experiência diferente
A venezuelana Nathaly Varela, seguindo uma motivação religiosa, quis se aventurar pelo Caminho pela primeira vez em abril de 2021, enquanto estudava a alguns quilômetros de Santiago. Sua vivência foi totalmente permeada pela pandemia, que estava em suas orações, reflexões e ações.
Na direção inversa, de La Coruña a Santiago, e na mesma época, estava María Sohorca, que teve os planos afetados pela Covid-19. A romena, que mora há 20 anos em Madri, havia trilhado o Caminho Francês, o itinerário mais popular, durante a Semana Santa de 2018, e estava preparada para viajar novamente em 2020, mas precisou adiar tudo. Neste ano, ela conseguiu retomar a peregrinação e partiu em uma expedição com um amigo.
A situação sanitária não foi objeto de preocupação para nenhuma das duas peregrinas, porém Nathaly destacou seu incômodo com o uso da máscara. “Em algum momento, a gente precisa respirar sem máscara, sentir a brisa, os cheiros do lugar, que obviamente não são tão intensos com a máscara”, conta, admitindo que tirava a máscara quando não havia ninguém por perto.
A pandemia acabou proporcionando aos viajantes uma oportunidade de desfrutar da solidão, como uma espécie de retorno ao “espírito e valores originais do Caminho”. Entretanto, nem todos os caminhantes estão dispostos a vivenciar esse isolamento. O estudo “O impacto da Covid-19 no perfil do peregrino”, elaborado pela USC, mostra que realizar os trajetos em duplas ou grupos foi uma tendência durante a pandemia.
María comenta que não teve a experiência ideal em sua primeira viagem, porque havia muita gente. Encontrar os lugares e cenários desertos, no entanto, tampouco a agradou: “O melhor seria algo intermediário”, afirma.
Do mesmo modo, as circunstâncias afetaram Nathaly. “Se eu não estivesse com minha amiga, poderia ter passado horas sem ver um peregrino”, explica. Para a venezuelana, que estuda produção audiovisual, o significado da peregrinação mudou ao longo do trajeto. “Sempre diziam para a gente que, pela primeira vez, havia muito poucas pessoas percorrendo o Caminho. Isso, no início, talvez tenha parecido triste, porque acho que o Caminho também é interagir com os outros, conhecer pessoas de diferentes partes do mundo. Mas talvez, no nosso caso, ia ser um lugar muito mais interior, como uma busca interna e de conversas consigo mesmo.”
Nos encontros pontuais, a estudante percebeu que era necessário se expressar de outras maneiras para evitar a proximidade física. “Se você encontrar alguém no Caminho, vai conversar e provavelmente vai querer dar um abraço na pessoa, mas não vai poder. É como abraçar com os olhos, uma nova técnica que a pandemia nos ensinou, uma nova forma de nos comunicar”, relata Nathaly. Ela diz que ficou comovida durante uma missa e gostaria de ter abraçado ou dado a mão ao padre para agradecer pelo culto, porém acabou mantendo a distância.
As adaptações do setor
Visando driblar a crise sanitária, os 25% dos albergues privados e hotéis que optaram por abrir precisaram se adequar à nova realidade. Ao seguir as recomendações para reduzir os riscos, tiveram que investir em materiais específicos, como o álcool em gel. Alguns até proporcionaram roupas de cama descartáveis. A limpeza também foi reforçada. Alguns estabelecimentos proibiram a utilização das áreas comuns e da cozinha. A posição das camas teve que ser reformulada para respeitar o distanciamento social. Além disso, atualmente, os espaços só podem funcionar cumprindo a ocupação de 50% de sua capacidade.
Os recentes cuidados nesses locais, que costumam implicar em grandes concentrações de pessoas, inspiraram segurança na grande maioria dos viajantes. “Em cada quarto do albergue entravam apenas os grupos de peregrinos, então fiquei só eu e meu amigo. Achei os albergues bem preparados para a pandemia”, diz María Sohorca.
Responsável por um hotel em Caldas del Reis, o Roquiño, e por seu restaurante anexo, o A do Borlo, Miguel Frieiro comenta que a abertura serviu, se tanto, para pagar as contas. Os estabelecimentos haviam sido inaugurados pouco mais de um ano antes de o coronavírus se espalhar.
“Depois do primeiro ano em atividade, com todas as despesas envolvidas nesse investimento, que ultrapassa € 800 mil, com pagamentos como a hipoteca do hotel e da nossa casa própria, pensávamos que 2020 seria um grande ano”, desabafou.
Obrigado a fechar as portas entre 14 de março e final de maio, quando reabriu o hotel conseguiu registrar, até junho, apenas cinco estadias — em 2019, no mesmo período, foram acumuladas 231 reservas. Quando chegou a alta temporada, de julho a setembro, o faturamento caiu pela metade.
A solução foi pedir empréstimos em bancos e apoio financeiro ao poder público. Do governo da Galícia, os proprietários receberam € 13,4 mil, além de subsídios para a criação de um site com venda online e consultorias de marketing.
O Hotel Roquiño está conseguindo evitar o fechamento permanente ao funcionar a 20% de sua capacidade graças àqueles que vão trabalhar na região. No caso do restaurante, o espaço pequeno impôs o fechamento total e serviço apenas por delivery; para se reinventar, estão tentando obter um registro que permita fornecer comida a colégios e empresas.
Efeito estendido
A relação econômica mais direta entre os turistas e o comércio local é com restaurantes e hotéis. Porém, vários outros serviços se beneficiam dos visitantes, como é o caso dos táxis, das lavanderias, das farmácias, do transporte de mochilas entre as cidades e das lojas de souvenirs. Estima-se que os negócios que cercam o Caminho perderam por volta de 80% de sua receita – isso sem contar os gastos nos transportes no início e fim das viagens.
Os pequenos estabelecimentos das regiões rurais, consideradas parte da “Espanha vazia”, chegaram a receber anualmente, em média, € 182,5 milhões dos peregrinos, como apontam os dados da Federação Espanhola de Associações de Amigos do Caminho de Santiago.
Os caminhantes, apesar de gastarem menos que turistas comuns – calcula-se que, em média, são € 30 diários ou € 1 mil pelo trajeto completo -, contribuem significativamente para o desenvolvimento de Santiago de Compostela e cidades mais próximas, onde as despesas são mais altas e concentram 22,5% de tudo que é pago. A Federação também mostra que a falta dos 133 mil peregrinos esperados em 2020 provocou uma perda de € 133 milhões em receita.
Mais dificuldades para estrangeiros
No momento, permanecem as restrições aos viajantes, que encontram obstáculos, por exemplo, ao cruzar as fronteiras com Portugal e França. Embora se opte por trechos reduzidos, como foi o caso de María Sohorca, a oferta de albergues é pequena. Para conseguir um lugar para dormir, ela precisou bater de porta em porta. “Em cada cidade, havia só um, no máximo dois, albergues abertos. Foi um pouco difícil, porque normalmente existem muitas opções”, conta.
As condições são ainda mais complicadas para os visitantes estrangeiros, pois é necessário apresentar um exame PCR negativo para entrar na Espanha, cujo valor na Europa é de no mínimo € 50.
Em 2019, quase 58% dos peregrinos que chegaram a Compostela eram estrangeiros, provenientes principalmente da Itália, segundo as cifras do Centro de Acolhimento ao Peregrino. Com os impasses atuais, poucos mais dos 70% que se aventuraram eram locais, inclusive da própria Galícia.
Retomada deve ficar para 2022
O presidente da Espanha, Pedro Sánchez, estabeleceu como objetivo ter 70% da população espanhola vacinada antes de julho. Isso poderia significar uma ampla recuperação econômica. Contudo, os números atuais do Ministério da Saúde são, até meados de maio, de 16,2% da população imunizada contra a Covid.
Empreendedores como Miguel Frieiro já não têm tanta esperança em retomar a ocupação em 2021. “Sou otimista por natureza, mas não para este ano. Embora seja o ano jacobino, enquanto não atingirmos a imunidade de rebanho com as vacinas percebemos que as pessoas têm medo de viajar. Estão doidos para viajar, mas o medo é mais forte. Notamos que muitos viajantes adiaram a viagem para 2022”, explicou, queixando-se de que a administração pública poderia ter feito mais pelos setores afetados pela crise, por exemplo cobrindo parte do faturamento habitual.
Considerando outro efeito do coronavírus no Caminho de Santiago, a análise sobre o impacto no perfil dos caminhantes apontou que 13,6% dos entrevistados não teriam feito a peregrinação no local se não fosse pela pandemia. Ou seja, o ocorrido levou um público diferente a descobrir a experiência. Além disso, os responsáveis pela manutenção do Caminho têm aproveitado a situação para trabalhar em melhorias na infraestrutura e sinalização. Dessa maneira, espera-se que os próximos peregrinos alcancem um nível de satisfação ainda maior.