Chile, o mais novo “moderninho” da América Latina

Bares e restaurantes descolados, ruas coloridas com street art e uma grande efervescência cultural: a capital Santiago ganhou novos ares após o “estallido social", movimento que surgiu em 2019

Juliana Fadduldo Viagem & Gastronomia

 

Durante décadas, o Chile sustentou a alcunha de “Europa da América Latina” no imaginário dos brasileiros. E o apelido não estava de todo errado, afinal, quem andava pelo centro de Santiago se deparava com uma cidade de ruas limpas, sem vandalismos ou pixos, uma organização típica de algumas cidades europeias.

Neste mesmo período, os turistas que visitavam a cidade encontravam também bares homogeneizados, restaurantes sem tanta variedade e pouca flexibilidade de horário. Mas agora quem viaja ao país vai se deparar com um novo Chile: completamente diferente, mais jovem e pulsante.

 

Muito mais forte que a pandemia, o “estallido social” – série de protestos de rua organizado por movimentos sociais – ainda pulsa entre os chilenos. Isso significa que, em todo lugar que você for, irá se deparar com alguém falando sobre o tema.

Caso você tenha planos para ir ao Chile, nós resumimos: tudo começou no dia 7 de outubro de 2019 depois de uma declaração do ministro da Economia, Juan Andrés Fontaine, que havia sugerido que as pessoas “acordassem mais cedo para aproveitar a tarifa mais barata” do metrô, após anunciar um aumento.

A estratégia do governista se baseava em cobrar a mais pelas passagens no horário de pico (algo em torno de R$ 5,50). Os chilenos, que já estavam insatisfeitos com algumas decisões do então presidente Sebastián Piñera, organizaram manifestações que cruzaram os limites municipais de Santiago e ganharam o país.

“Não é pelos trinta pesos, é pelos trinta anos”, foi a frase mais usada nas manifestações, em referência aos trinta anos do fim da ditadura de Augusto Pinochet (que durou de 1973 a 1988).

Uma semana depois, no dia 14 de outubro, estudantes invadiram as estações e pularam catracas como forma de protesto ao preço da passagem. Algumas estações foram depredadas e o governo travou uma guerra contra os manifestantes. Isso não só levou ainda mais pessoas às ruas como deu luz ao “estallido social” que, numa tradução livre, é uma “explosão social”.

No dia 19 de outubro, o presidente Piñera revogou o aumento da passagem de metrô, acatando os clamores da população, mas decretou estado de emergência em todo o país e toque de recolher em várias cidades.

A situação piorou quando, após um discurso inflamado do presidente em rede nacional, colocou ainda mais policiais militares nas ruas. A resposta da população foi organizar ainda mais manifestações. No dia 25 de outubro aconteceu “a maior marcha do Chile”, com 1,2 milhão de pessoas, em torno da Praça Baquedano, que foi rebatizada como Plaza de la Dignidad após o episódio.

Recalculando a rota

Claro que tanta efervescência política deixaria rastros na tão organizada e ordenada cidade. “Na minha opinião, as intervenções gráficas e performáticas urbanas são uma parte relevante das conquistas populares. Ali onde se destacava o ‘europeu’, hoje se destaca a ‘latinidade’. E novas expressões retornam às ruas, como o grafite, os cartazes, a poesia visual”, explica Carolina Olmedo Carrasco, historiadora especializada em arte e professora da Universidad Alberto Hurtado. “É uma oposição a ‘pax romana’.”

Para quem não quer se desprender do pensamento “Chile Europeu”, a saída é encarar Santiago como uma espécie de Londres ou Berlim. “Acho que o estallido multiplicou as intervenções artísticas nas ruas de todo o país, expandindo inclusive a nível internacional a fama do street art chileno, que antes estava limitada a Valparaíso [cidade litorânea perto de Santiago]. Hoje há mais arte nas ruas e mais artistas ativos como nunca houve em toda história do Chile”, diz Carrasco.

“Neste sentido, a ‘berlinização’ de Santiago não me parece algo grave, mas um reflexo da restituição de um diálogo público que nos ajuda a avançar a outro estado de administração dos [bens e lugares] comuns.”

Patrimônio público e a mudança no olhar dos turistas

Monumento com intervenção pelas ruas do Chile / Juliana Faddul

Mas nem todos veem essa mudança com bons olhos. “A violência se concentrou em ataques aos patrimônios públicos. Chile tinha um status de excelência, para América Latina, na manutenção e restauração de monumentos. Com a depredação perdemos o equivalente a dez anos de investimento”, explica Ivan Poduje, urbanista e conselheiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU).

Segundo Poduje, a deterioração ao patrimônio público não é culpa estrita dos manifestantes. “Há uma falta de controle e proteção do governo. Não digo somente nos dias de protesto, mas ao longo do tempo. Em Paris, por exemplo, há uma multa altíssima em caso de dano de patrimônio público. Aqui as autoridades fazem ‘vista grossa’ e encaram como uma manifestação de cunho político”, diz.

O urbanista percorreu a cidade por quatro meses com o intuito de mapear lugares críticos onde foram deixadas cicatrizes na cidade. O recorrido a pé pelas ruas migrou para o papel e rendeu o livro “Siete Kabezas” (ainda sem edição aqui no Brasil).

Um dos pontos mais emblemáticos é uma saída do metrô Baquedano, uma das principais estações da malha ferroviária. Na época, postagens em redes sociais citavam o local como ponto de tortura, o que motivou os manifestantes a depredarem o local.

Metrô Baquedano: local de manifestações importantes em Santiago / Juliana Faddul

“O local foi fechado permanentemente e agora todo o tipo de coletivo se apropria de lá. O problema, na prática, é real e prejudica a vida de milhares de usuários já que perdemos uma saída de metrô. Isso faz com que usuários se desgastem, danificando a qualidade de vida. Mas aparentemente o ‘político’ justifica tudo.”

Retomada do turismo

Outra mudança significativa na cidade em relação ao turismo é em relação ao som. O português, principalmente presente em pontos turísticos como Valle Nevado e Costanera Center, tem sido cada vez mais raro. Segundo dados do órgão chileno Sernatur, o Serviço Nacional de Turismo, em 2021 foram aproximadamente 160 mil desembarques no país, sendo 6% de brasileiros.

Engana-se quem acredita que a porcentagem baixa se deva totalmente a pandemia. Em 2014, por exemplo, ingressaram no país 415.200 turistas brasileiros. Desde então o número só vem minguando.

“Tem um pessoal com medo, receoso de viajar por conta da pandemia. Mas tem também a desvalorização do real. Pelo que percebo, a classe media não tá mais vindo tanto. Quem vem é uma galera que tem mais de poder aquisitivo”, diz Suelen Cavalcante, empresária de turismo.

Segundo Cavalcante, o estallido social não influenciou em quase nada o volume de brasileiros no Chile. “Alguns pontos turísticos estavam fechados, mas os brasileiros que vieram para cá ficavam hospedados em Providência [bairro de classe média-alta de Santiago] para cima, longe do centro”, contou.

Já com a pandemia a história foi outra. “Sempre trabalhei em agências, mas na pandemia tive que me virar de outras formas. Ficou economicamente inviável. Fui garçonete e motorista de aplicativo, mas não em Santiago. Quis aproveitar esse tempo de baixa para conhecer outros lugares do Chile. Não como trabalhadora do setor de turismo, mas como turista mesmo”, explica.

O período como “estagiária-turista” fez com que ela abrisse os olhos para problemas comuns que brasileiros passavam – principalmente no quesito de cobrança abusivas. O quesito meio ambiente também pesou a favor para que ela abrisse a sua própria agência de turismo, a Destino Latino, especializada em receber brasileiros.

“Além de fazer o que eu gostaria que fizessem por mim, procuramos não gerar lixo nem cobrar taxar abusivas, como administrativas e de cancelamento” explica. “E também só vendo pacote para lugares que conheço muito bem, para não ter problema com realidade x expectativa.”

“O Chile tem paisagens lindas, o norte é muito diferente do sul. Há lugares lindos que ainda não foram desbravados, inclusive pelos chilenos. O Chile é muito maior e interessante do que os brasileiros imaginam”, finaliza.

CNN Viagem & Gastronomia fez três listas de lugares interessantes na capital chilena para quem quiser aproveitar o destino. Confira:

 

Santiago como um Museu a Céu Aberto

A primeira dica é sobre street art: a especialista em arte Carolina Olmedo Carrasco sugere alguns pontos turísticos interessantes que mostram essa “nova face” da capital.

Bairro Yungay-Brasil

“Um dos lugares que se transformaram numa verdadeira galeria a céu aberto. Os murais mostram diversas memórias e mensagens políticas”.

Museu a Céu Aberto de San Miguel

Street art no tradicional bairro de San Miguel, Santiago / Wikimedia Commons

“Desde 2010, se desenvolvem obras que dignificam e distinguem os conjuntos habitacionais.”

Centro Cultural Gabriela mistral (GAM)

“Para ver mensagens políticas, basta passar pela Alameda e recorrer pelas ruas do bairro Lastarria, principalmente no Centro GAM.”

Persa Bio-Bio

“Outro lugar onde é possível ver novas tendências, ainda que em outras plataformas criativas, é o mercado Persa Bio Bio, um flea market histórico na cidade onde há diversas galerias independentes e artistas autônomos”.

Agora, se clima não é arte de rua, veja outras opções perto da capital:

Templo Bahá’í

O templo Bahá’í fica a apenas 14 quilômetros de Santigo/ Wikimedia Commons

Comparada com outras cidades cosmopolitas, como São Paulo, Cidade do México ou Nova York, Santiago pode ser considerada bastante tranquila. Mas se você andar 14km em direção à Cordilheira dos Andes pode se deparar com o belíssimo Templo Bahá’í.

O local, que foi aberto ao público em 2016, não conta com rituais, ícones ou imagens. A fé Bahá’í é uma religião monoteísta, fundada na Pérsia, mas que ficou conhecida no ocidente por causa do escritor russo Liev Tolstói, que se tornou um fiel após romper com a igreja.

A religião é conhecida por pregas a universalidade (homens, mulheres e crianças são iguais, assim como todas as religiões têm os mesmo fundamentos) e este princípio ficou cimentado em sua arquitetura. “O objetivo era uma interação com as contradições, como quietude e movimento, simplicidade e complexidade, intimidade e monumento”, explicou o arquiteto responsável Siamak Hariri.

“Muitas agências de turismo realizam passeios para esse templo, mas pode sair muito mais barato ir de táxi ou com motorista de aplicativo”, explica Suelen. Por causa da pandemia, é necessário se inscrever um dia antes no site.

Piscina de Algarrobo

Sabia que o Chile possui a maior piscina do mundo? Fica dentro do San Alfonso del Mar, em Algarrobo / Divulgação

A maior piscina artificial do mundo está a 1h30 de carro da capital chilena: são 250 milhões de litros distribuídos em um quilômetro de extensão. Porém, nesse piscinão, de fato, cada mergulho é um flash já que venta muito na região e a água é bem gelada.

Outro fator importante: o complexo fica dentro de um condomínio privado, o San Alfonso del Mar, portanto não há day use para a piscina. A alternativa, para quem quiser mergulhar, é alugar algum apartamento pelo Airbnb do condomínio ou outro sistema de hospedagem. Algumas agências também fazem passeios, mas é apenas para ver a exuberância da piscina de cima.

Punta de Lobos

Punta de Lobos é uma das praias mais bonitas do Chile – mas a água é muito gelada/ Wikimedia Commons

Ok, o Chile não é um dos destinos mais interessantes para aproveitar a praia, mas para quem sonha em se banhar nas águas do Pacífico, uma alternativa é a praia de Punta de Lobos, em Pichilemu. Está a 2h30 de carro de Santiago e é uma das praias mais bonitas do país.

Um bom lugar para tirar fotos é o “acantilado”, um penhasco de cerca de cem metros que dá na água – mas não vai ficar muito próximo da beirada. Na parte de baixo é possível ver surfistas e amantes da natureza, o que dá uma áurea bacana ao local  -muito diferente da capital ou de outras cidades litorâneas, como a já batida Viña del Mar e Algarrobo. A água é gelada, mas nos dias de verão dá para encarar um mergulho.

 

Onde comer na capital

Boulevard Lavaud

Atrás da barbearia mais antiga de Santiago está o restaurante Boulevard Lavaud / Juliana Faddul

Atrás da Peluquería Francesa, a barbearia mais antiga de Santiago (está aberta há 154 anos), está o restaurante Boulevard Lavaud, que mistura ingredientes típicos da comida chilena, mas com tempero e técnica francesa – com uma pitada da influência peruana. Uma boa pedida para os amantes da gastronomia, já que, embora o local seja centenário, o restaurante está constantemente atento aos fusions modernos.

El Bajo

Bons drinques e petiscos no descolado El Bajo/ Divulgação

Como nem tudo é tradição, vamos aproveitar o presente. O El Bajo que, como o nome indica, é um bar moderninho que fica embaixo do GAM, o Centro Cultural Gabriela Mistral, e conta com uma carta muito interessante de vinhos e cocktails. Sem contar o ambiente, que brinca com o clássico e o moderno de forma bem cool.

Perfeito para aquele dia que você só quer tomar um bom drinques e comer petisquinhos depois de bater perna por aí.

Plaza Ñuñoa

Plaza Ñuñoa é o novo ponto hipster de Santiago/ Juliana Faddul

Aqui é para entrar no modo shuffle e se jogar no restaurante ou bar que você achar mais legal. Sim, a Plaza Ñuñoa é o novo ponto hipster de Santiago. Quem prefere não se arriscar, pode apostar nos bares mais tradicionais: El Dante, La Fuente Suiza, La Tecla e a cervejaria HBH, que estavam lá “muito antes de ser cool”. Mas a ideia mesmo é sair andando e se sentar onde achar mais legal.

Se após alguns drinks o pessoal se animar, uma boa pedida é a La Batuta, que lembra bastante as baladas hipsters de São Paulo, que faz aquela mistura boa de rock indie com ritmos latinos e o que mais tiver na playlist do DJ.


Tópicos