Cartagena afasta clichês colombianos e se adapta para passar pela pandemia
Local mais turístico da Colômbia, cidade tem bairro contra a gentrificação, ilha caribeña anti-covid e vai além do clichê café e Pablo Escobar
Ao começar a digitar Colômbia no Google, a plataforma logo exibe que uma das buscas mais frequentes costuma ser a resposta para: “Como é o povo colombiano?”.
Dependendo do interlocutor, o retorno para essa pergunta pode ser o lugar comum de que o país se resume à produção de excelentes cafés, ou da violência que atingia a sociedade colombiana, personificada na vida de um de seus cidadãos mais famosos: Pablo Escobar.
Clichês que podem até ser verdadeiros, mas Colômbia não se resume a isso. Cartagena das Índias, por exemplo, cidade mais turística do país, mostra que é possível aliar o interesse econômico do turismo com a inclusão da população local, algo inovador pelo mundo inteiro.
O destino aposta há anos em seguir na contramão da gentrificação que afeta outras cidades que se tornam parcialmente ricas. E, ao invés de afastar os moradores locais mais pobres para bairros distantes, Cartagena leva os turistas que chegam de todo o mundo para se acomodarem ao lado deles, no chamado bairro de Getsemaní.
Além disso, o principal destino turístico do país se recupera da crise causada pelo coronavírus com do fomento dos locais mais isolados, como as Islas del Rosario – local paradisíaco do caribe colombiano -, por meio de boas medidas sanitárias, como a exigência do passaporte vacinal.
Mas há também, claro, as cafeterias com bebidas que agradam a um paladar aguçado; os locais por onde o autor Gabriel García Márquez frequentavam; até um passeio pelo avião abandonado de Escobar. Tudo faz parte da experiência colombiana.
Luta contra a gentrificação em bairro da “resistência”
Cartagena das Índias está localizada ao norte da Colômbia e é a capital da região de Bolívar, há cerca de seis horas de voo partindo de São Paulo, com apenas uma escala na capital, Bogotá – o preço da viagem pode sair por cerca de R$ 3,5 mil.
Com clima que varia entre 25ºC e 30ºC praticamente o ano todo, a cidade é o destino perfeito para turistas que buscam a mistura entre a latinidade de drinques, praias e calor, com uma pitada histórica de arquitetura colonial espanhola.
Europeus, norte-americanos, canadenses e, de cinco anos para cá, brasileiros, lotam as ruas do local, símbolo de um novo país que deixou para trás as disputas internas entre grupos revolucionários, como as FARCs, e o governo.
“Desde o começo de 2017, quando a Colômbia assina o tratado de paz e consegue fazer uma transformação social, abrindo o país que ficou tanto tempo fechado devido aos conflitos internos, Cartagena é um destino muito buscado”, conta Juliana Rotta, diretora da agência de turismo The Experience Travel.
Mas, apesar de contar com uma vida noturna agitada, restaurantes e bares conceituados, e hotéis de primeira linha, é mesmo a sua perspectiva histórica que chama a atenção.
Cartagena, fundada no século 16, foi importante para o escoamento do ouro de toda a América espanhola em direção a Europa. Por isso, foi palco de disputas entre as potências da época, o que fez com que os espanhóis cercassem de muros toda a cidade – construção que resiste até hoje e que protege casarões datados de 1600 e ruas estreitas.
A cidade, portanto, é rica em detalhes da época, seja na arquitetura, com belos e grandes casarões, ou no Castelo de San Felipe de Barajas, uma fortaleza construída para deter invasores e piratas ao longo dos séculos.
Cartagena era uma das mais importantes de toda a ocupação espanhola, que ia do México à Terra do Fogo, na Argentina. Por ali, estima-se que cerca de três milhões de pessoas escravizadas chegaram para servir de mão de obra barata às colônias da América. É raro, porém, encontrar qualquer menção a contribuição de negros africanos na construção histórica da cidade.
“Cartagena das Índias, desde o início da sua história, sempre foi dirigida por uma aristocracia e uma elite burguesa. Por um período no século 19, a história foi contada por uma elite que achava que o melhor jeito da construção do país era imitar a cultura europeia. Então, houve um período com estranhamento de todo o passado colonial ou mesmo um branqueamento da história colombiana”, diz Hernán Reales, historiador e guia do turismo.
Engana-se, porém, quem ache que a história da cidade está restrita ao apagamento sistemático da memória dos escravizados. Ela continua sendo escrita pelos moradores locais, que resistem ao global e relativamente novo fenômeno da gentrificação, que atinge bairros pelo mundo.
Colado ao centro histórico, o bairro de Getsemaní é a representação de como o povo colombiano descendente de escravos ajudam a contar a história local. São residências coladas a hotéis. É ali que turistas se misturam aos moradores, construindo uma atmosfera de um caos perfeitamente harmônico.
Um grupo de alemães bebe enquanto os filhos de um colombiano brincam de trocar socos nas ruas em frente ao pequeno comércio de cerveja da família. Tudo na mais planejada desordem.
Em meio às ruas coloridas, que agradavam o escritor Gabriel García Márquez, premiado com o Nobel de Literatura em 1982, moradores locais montam nas portas das casas pequenos carros para venderem drinques e comidas típicas aos turistas, que lotam as ruas a noite em meio ao clima abafado da cidade.
O objetivo de gerar renda é não deixar com que o processo de transformação através da mudança dos grupos sociais ali existentes – onde sai a comunidade de baixa renda e entram moradores das camadas mais ricas – atinja com mais força o local.
“Aqui vem gente do mundo todo e consigo manter a minha vida como fazia há muitos anos. Vendo comidinhas, cerveja, converso, troco experiências, mas não aceito mudar a mim e a minha família para qualquer bairro distante em troca de dinheiro”, reafirma Angelo Ribeiro, dono de uma pequena venda em uma das ruas de Getsemaní.
Para Hernán Reales, são esses moradores que fazem o bairro ser conhecido por sua resistência histórica perante o avanço da exploração do turismo caracterizada pela gentrificação. “Getsemaní é um bairro de resistência das poucas famílias sobreviventes, que resistem, e buscam valorizar suas histórias que, por muito tempo, foram apagadas e cheias de preconceito”, disse.
“Claro que existe uma gentrificação, dado que é algo vinculado com as dinâmicas do turismo, mas não tão forte igual a outras partes do mundo. O que ocorre aqui é que a população local luta para que a chegada do turismo não estraguem os poucos componentes sociais que o bairro possui”, conta o historiador.
Islas Del Rosário: destino anti-Covid
Para além da tradicional Cartagena, com sua história em eterna construção, a cidade também conta com mais de cinco complexos de ilhas ao seu redor, que por sua vez oferecem mais de 20 praias para visitar e desfrutar, segundo dados do Visit Colômbia.
Há uma hora de barco da cidade estão as Islas Del Rosário, um conjunto de ilhas com mar límpido e azul, natureza proeminente (mas com menos mosquitos do que Ilhabela, por exemplo), calor abundante e hotéis isolados. O caminho de barco até elas pode ser árduo para quem possui algum tipo de enjoo e o turista mais cinéfilo irá se sentir nos barcos de “O Resgate do Soldado Ryan” chegando às praias da Normandia no caminho.
A vista, porém, faz com que o cérebro logo se dê conta de que você não está indo a alguma batalha da 2ª Guerra Mundial, mas, sim, chegando a um pedaço do paraíso no qual a tranquilidade impera. A dica é desfrutar de um bom mojito e admirar o pôr do sol ouvindo apenas os sons da natureza, que parecem ainda mais intensos nessa parte do mundo.
Esse isolamento parcial das ilhas fez com que elas se tornassem um destino preferencial em meio a pandemia do Covid-19. Para além da obrigatoriedade do passaporte vacinal e do uso da máscara, segundo Juliana Rotta, da The Experience Travel, a necessidade de não estar em meio a grandes aglomerações fez com que as Islas Del Rosario ganhassem atratividade nesse período.
“O turismo ao ar livre, de sol e praia, tem uma vantagem em tempos de pandemia. Então, as pessoas descobriram que Cartagena é também um destino de praia, menos popular que San Andrés”, disse.
“As pessoas estão procurando mais os passeios às ilhas, principalmente quem busca mais o Caribe mesmo, com mar de diferentes tons de azul, a apenas uma hora de barco de Cartagena, então você não sente que está em uma aglomeração”, completou. De acordo com Juliana, a retomada dos voos com maior frequência desde o Brasil deve fazer com que o número de turistas brasileiros volte a crescer no país.
Pablo e café fazem parte da tradição
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Ok. Cartagena tem praias paradisíacas, história colonial, arquitetura espanhola do século 16 e todo o componente latino, que conhecemos bem, temperando esse mix.
O clichê colombiano, porém, não fica de fora da visita. No país, algumas fazendas mostram aos visitantes como fazer o café, premiado e exportado mundo afora. A Colômbia é a segunda maior exportadora de café arábica do mundo, de acordo com dados da Federação Nacional dos Cafeicultores (FNC).
Já ao caminhar pelas ruas de Cartagena, o turista é facilmente seduzido pelo cheiro de café e, para quem gosta, de um charuto (mesmo que de procedência duvidosa). Passados na hora e de diversos tipos, um expresso da marca San Alberto, uma das mais premiadas do país, vale fácil os cerca de R$ 15 a xícara como parte de uma experiência gastronômica, que também inclui as arepas (uma espécie de panqueca de milho) e peixes sempre frescos.
Se já citamos o café, só falta um ponto: as drogas também estão presentes, naturalmente. Mais do que a oferta pelas ruas da cidade turística, a personificação desse mundo no famoso traficante Pablo Escobar é naturalmente explorada a fim da obtenção de lucro.
Camisetas, bonecos, bonés e todo tipo de souvenir de Escobar podem ser vistos nas lojas e conveniências para turistas. Nas Ilhas, por exemplo, há um mito de que um avião do traficante afundado décadas atrás ainda está lá. O avião certamente está. Mas a procedência da história (e a logística para chegar até ele) é que não despertam grandes certezas.
“Falam que era do homem. Mas ninguém nunca provou que o avião era mesmo de Escobar. De qualquer jeito, é bom porque os locais levam os turistas de barco até lá e conseguem arrumar um dinheiro”, afirma Manoel Santos, funcionário de um dos hotéis localizados em Isla Del Rosário.
Para Juliana Rotta, o uso de Escobar como ícone pop ainda é assunto controverso no país dado a mística em torno da figura.
“Claro que depois da retomada pop do Pablo Escobar, vimos um aumento do interesse por esse tema. Mas, vejo que não há muito espaço para essa apropriação da imagem do Escobar, já que é uma figura muito controversa no país, ainda que você encontre camisetas e souvenirs. Em Medellín, por exemplo, há o tour do “we don’t say this name”, dado que citar esse nome causa uma polarização forte entre os locais e também muita polêmica”, disse.