Restaurante Notiê leva a Mata Atlântica ao centro de São Paulo em nova temporada
Após minuciosa expedição por matas e mares, chef Onildo Rocha serve na capital paulista novo menu-degustação com ingredientes nativos do bioma, presentes nos pratos e na decoração
O relógio marca 6h36 e a modesta Brusque, capital das malhas em Santa Catarina, amanhece totalmente enevoada. A caminho de uma queijaria artesanal em Major Gercino (SC), o chef Onildo Rocha fala sobre seu amor por semente de jaca cozida (“comi muito quando criança, com sal”) enquanto se prepara para mais um dia pelos sabores e saberes da Mata Atlântica.
A expedição de 10 dias que cruzou ao menos 15 cidades em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Bahia ocorreu no fim de junho e, de lá para cá, um novo menu nasceu: a partir de 16 de agosto, os comensais do Restaurante Notiê podem experimentar menus de quatro, sete e dez tempos (entre R$ 235 e R$ 450 sem harmonização) na terceira temporada do Espaço Priceless, batizada de “Mata Atlântica – Matas e Mares”.
Há poucos dias, rodavam ainda no restaurante capitaneado pelo chef paraibano pratos inspirados pela Amazônia. Palavras como pirarucu, jambu, tucupi e bacuri dão lugar agora a um novo glossário: namorado, cambuci, uvaia, botarga e jabuticaba.
Se a temporada Sertões, que inaugurou o restaurante no fim de 2021, foi “alucinante” e revelou uma dimensão nordestina antes não conhecida pelo chef e a Amazônia abriu olhos para uma cultura ancestral, então a Mata Atlântica lhe revela uma abrangência maior.
“Cada temporada é um aprendizado. Vamos inclusive amadurecendo na forma que fazemos a curadoria. Agora estamos aprendendo com a diversidade da Mata Atlântica, já que é muito extensa”, diz o chef.
Os dados corroboram: presente em 17 estados brasileiros, o bioma tem mais de duas mil espécies de animais e 20 mil de plantas. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), ocupa 13% do país e é morada para mais de metade da população, mas acende um alerta: apenas 27% de sua cobertura florestal original está preservada.
Matas e mares à mesa
Dois meses após o fim da expedição e de volta a São Paulo, quem entra no restaurante no centro da cidade, com terraço que dá para o majestoso Theatro Municipal e para o Vale do Anhangabaú, logo nota referências ao bioma: nas mesas, bromélias; no teto, painel com mata verde, um caleidoscópio com borboletas, ostras, pinhão e mico-leão e uma tímida praia em um dos cantos.
Na extremidade do salão, a cozinha envidraçada do chão ao teto funciona como uma televisão aos curiosos e é dela que saem menus rotativos de cada época do ano das diferentes regiões da Mata Atlântica pelos próximos meses.
Na fase de inauguração da temporada “Matas e Mares”, a primeira criação que chega à mesa é um brioche quentinho e arredondado de mate que se despedaça em camadas. Chega à mesa em caixa com vegetação decorativa acompanhado de chutney de uvaia, que garante um azedinho na boca.
O menu-degustação mais extenso tem como segundo prato uma ostra nativa, desta vez de Ilhabela, litoral de São Paulo, com cambuci. Refrescante, chega geladinha em uma cama de gelo triturado e, na boca, vem primeiro o cítrico do fruto nativo da Mata Atlântica, depois aparece o fundinho adocicado típico de ostras nativas brasileiras.
Em sequência, em um prato fundo, são acomodados pequenos cubinhos de melão com botarga, em que leite de amendoim com óleo de rúcula são despejados por cima da combinação – o gosto do amendoim permanece por um bom tempo na boca.
Os pratos chegam comedidos à mesa e o jogo entre terra e mar fica mais claro com a chegada dos pratos principais: primeiro vem um filé de namorado com espuma de mexilhão por cima e redução de água de coco por baixo, que imprime um gosto docinho.
Segue um tradicional polvo com miniarroz de Pindamonhagaba, de grãos pequenos e arredondados. Mais durinho que o tradicional, o arroz é feito no caldo de polvo, como um risoto, em que a cremosidade é atingida com a ajuda do colágeno do molusco. Para arrematar os pratos quentes, uma massa recheada com porco cozido por 12h e finalizada com gel de mel de cacau é embebida por um consomê suíno aromático.
Ditado por leveza e delicadeza, o menu termina com as sobremesas inventivas do jovem confeiteiro Pedro Nóbrega, que apresenta uma panacota de iogurte de ovelha com um balsâmico de jabuticaba e alho negro.
A criação leva ainda um véu de jenipapo de coloração azul, já que o fruto produz corante natural desta cor. O próprio Pedro explica que povos indígenas da Mata Atlântica usam esse tingimento na pele e o prato lembra essa estética. O véu é feito com uma película de ágar com leite e jenipapo.
Ainda coroam a experiência o delicado tartelete de macadâmia com doce de leite e botarga, que enche a boca primeiro com doce e depois com o salgadinho; e, por fim, um sorvete de baunilha da Mata Atlântica com azeite Borrielo, que provê uma certa picância no paladar, e pó de sálvia, que traz herbal e frescor. Nada é totalmente doce e as nuances são perceptíveis.
Na ocasião do jantar, a harmonização foi feita com vinhos nacionais que foram de pét-nat aos de vinificação natural – apenas um dos rótulos foi não brasileiro, o francês Domaine du Chardonnay Chablis, servido entre o melão com botarga e o namorado.
Além dos menus-degustação, clientes poderão experimentar pratos à la carte da temporada a partir de 23 de agosto.
A jornada
As temporadas no Espaço Priceless se alongam por cerca de nove meses, em que são precedidas por pesquisas teóricas e em campo de matérias-primas, produtores, lugares e, acima de tudo, gente.
Junto de uma equipe de gravação, o chef visitou ao menos 10 produtores na recente expedição. A reportagem do CNN Viagem & Gastronomia acompanhou alguns dias da viagem, marcada por cochilos na van, longos quilômetros por rodovias e em estradas de terra, e itinerário corrido, mas recompensador, por cidadezinhas pacatas.
Acima de tudo, a expedição serviu de inspiração tanto nos ingredientes quanto na decoração que agora ronda a mesa do restaurante na maior cidade do Brasil.
Entre uma visita e outra aos produtores, o chef colhia cascas de árvores, plantas e o que mais achasse pertinente para compor ideias de louça e apresentação. Entre ingredientes e pedaços de paus, tudo era mandado em tempo real por WhatsApp para a equipe em São Paulo.
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O contratempo era o relógio, amenizado pelas descobertas e ensinamentos do caminho. Junto das conversas com os produtores, responsáveis desde ostras nativas em Guaratuba (PR), orgânicos em Petrópolis (RJ), queijo diamante na zona rural de Major Gercino (SC), cacau em Uruçuca (BA) e a maturação de peixes do chef Gerônimo Athuel, do Ocyá, no Rio de Janeiro (RJ) tudo serviu como diálogo para o novo menu.
Nos últimos dias de expedição, o “lado chef” falou mais alto: deixou as formalidades de lado e adentrou a cozinha do Quintal di Catarina, empório na beira da BR-282 em Bom Retiro (SC).
Conheceu a charcutaria, o doce de leite de ovelha e os iogurtes do dono Renato Herardt. Mas também arregaçou as mangas e preparou cogumelos porcini colhidos no dia anterior. À mesa, vinho local foi brindado com os saberes do entorno ao lado da equipe e dos familiares do dono.
Assim, o nascimento do novo menu foi pautado pelos conhecimentos daqueles que chamam a Mata Atlântica de casa, indo de encontro a “produtores que aprenderam que é preciso, antes de tudo, respeitar a terra, o mar, o rio, e que buscaram no passado modelos para um futuro melhor”, como afirma o chef.
Para o futuro, fica o spoiler: durante a expedição na Mata Atlântica, Chapadas e Pantanal já estavam no radar de Onildo.
Notiê Restaurante
Entrada principal pela Rua Formosa, 157 – Centro Histórico, São Paulo – SP / Tel.: (11) 2853-0373 / Horário de funcionamento: quarta a sábado, das 19h às 23h / Menu-degustação “Matas e Mares” de 4, 7 e 10 tempos entre R$ 235 e R$ 450 (sem harmonização) e à la carte / Reserva via site.