Harmonização com drinques funciona? Bartenders e especialistas opinam

Os vinhos estão longe de deixarem de ser as estrelas das harmonizações, mas os drinques vêm conquistando cada vez mais espaço e, muitas vezes, convidam os comensais a saírem da “zona de conforto”

Especialistas compartilham o que levam em conta na hora de harmonizar drinques com pratos
Especialistas compartilham o que levam em conta na hora de harmonizar drinques com pratos Raul da Mota da Bottega 21

Tina Binido Viagem & Gastronomia

São Paulo, SP

Branco ou tinto? Chardonnay ou Sauvignon Blanc? Você, com certeza, já ouviu perguntas similares. Afinal, combinar pratos com vinhos é algo tão natural que, normalmente, essa é a primeira bebida que vem em nossa mente quando pensamos em harmonização.

Porém, o cenário mudou e nos últimos anos a paleta de opções vem ganhando novos tons, com uma seleção cada vez mais apurada de drinques em restaurantes que vão dos mais casuais aos super-refinados. E aí vem o questionamento: drinque com comida, combina?

Sim, combina! E um time de peso que estuda, vai atrás das melhores alquimias e faz a mágica acontecer compartilha suas opiniões e combinações prediletas.

Quem sabe fazer isso com perfeição e que desde 2018 oferece na sua premiada A Casa do Porco um menu-degustação harmonizado com drinques é Janaína Torres Rueda, que muito antes de ser cozinheira profissional já era sommelière de bebidas.

Durante anos a chef trabalhou na Pernod Ricard, uma das maiores empresas de fabricação e distribuição de bebidas alcoólicas do mundo, como especialista em harmonização de bebidas com comidas. O caminho natural, claro, foi incrementar tais conhecimentos em seus restaurantes.

“Esse tipo de harmonização sempre existiu, mas é um nicho que ainda tem longo caminho a percorrer fora do circuito de restaurantes estrelados e premiados. O público tem se interessado mais, os drinques, com ou sem álcool, estão ganhando espaço nos pedidos” afirma Jana.

Tanto que a chef tem investido em opções sem álcool em suas casas, com infusões e ácidos, e entrega que “um profissional na hora de elaborar o drinque tem que oferecer uma experiência com todas as nuances de paladar: salgado, doce, ácido, azedo e umami”. “Todo esse umami precisa ser desenvolvido em um coquetel alcoólico ou não alcoólico”, completa.

Para a chef, uma caipirinha com feijoada é a harmonização mais perfeita que existe, mas outras menos óbvias como uma pizza ou massa com bacon defumado, pancetta ou um curado fica incrível com Negroni, além dos vermutes que podem ser harmonizados perfeitamente com carnes.

Mas ela frisa que “o drinque precisa estar equilibrado, não pode estar aguado, a proporção de ingredientes tem que estar perfeita! A harmonização não se dá através da teoria, ela se dá através da prática, do ato de comer e beber. O profissional do ramo tem que provar várias vezes os mesmos pratos e drinques até chegar ao ‘match’ perfeito”.

Assado por oito horas, Porco San Zé pode ser harmonizado com Caipirinha de Três Limões / Mauro Holanda

Leque de opções

“Na coquetelaria temos um leque enorme de sabores, sensações e texturas que podem perfeitamente harmonizar com um prato”, crava Alê Bussab, bartender e sócio do Trinca Bar & Vermuteria. No bar, aberto há um ano em Pinheiros, ele trabalha ao lado da parceira Tábata Magarão para difundir o vermute na coquetelaria brasileira.

E alguns de seus drinques, inclusive, foram pensados para escoltar uma refeição – ou vice-versa. “O escabeche de minilula, por exemplo, foi pensado para o Jerez, Jerez, Jerez”, diz ele, em referência ao drinque que leva vermute de jerez, jerez Oloroso, jerez fino, vermute seco, cordial de cacau com cumaru e bitters aromáticos e é uma das criações da casa.

Trinca Bar & Vermuteria criou drinques pensados nos pratos, todos com vermute / Leo Martins

Titular das coqueteleiras do Bottega 21, bar e restaurante de pegada italiana, Michel Felício é outro entusiasta da parceria entre coquetéis e comida. “Embora a harmonização clássica seja frequentemente associada a vinhos, fazer essa combinação com drinques têm se tornado cada vez mais popular”, diz.

Felício, no entanto, pondera que existem algumas combinações que podem não ser tão harmoniosas. “Um drinque muito forte e alcoólico, por exemplo, ofusca os sabores sutis de um prato delicado.”

Ainda mais incisiva quanto a essa questão, Cris Negreiros afirma que “destilados, quando chegam perto de 20% de ABV, anestesiam as papilas gustativas”. A bartender do Carrasco Bar, speakeasy aninhado dentro do Guilhotina, se refere ao teor alcoólico da bebida, cuja sigla vem do inglês Alcohol By Volume (ou “álcool por volume”, em tradução livre).

“Harmonizar gastronomia e alta coquetelaria é algo fora da curva, inusitado”, garante. E complementa: “Quando pensamos nesse pareamento, baseamo-nos em combinações, principalmente de vinhos, mas também de cervejas, com pratos clássicos”.

E o que é diferente quando falamos sobre coquetéis? “Pensar no teor alcoólico e na nossa percepção do gosto. Ou seja, como nossas papilas gustativas interpretam e mandam essa informação pro nosso cérebro.”

Ragu de Cogumelos com Vermuth Cocktail do Carrasco / Rodolfo Regini

Gunter Sarfert, chef de bar do Cora, no centro de São Paulo, concorda com a colega de profissão e diz “é maravilhoso a coquetelaria ganhar protagonismo na gastronomia, mas acho importante tomar cuidado, principalmente com a potência. Por isso, trabalhamos com alguns drinques que têm o teor alcoólico mais baixo, como aqueles que trazem mais jerez no corpo”.

Jerez, no caso, é um vinho fortificado mais seco que, muitas vezes, harmoniza muito bem com diversos pratos. “Um casamento perfeito é um peixe com Bamboo, um aperitivo seco e complexo. Outro exemplo seria uma carne com Adonis, coquetel à base de jerez e vermute. No Cora, temos o Terra, que é uma variação do Negroni e Boulevardier, leva Bourbon, jerez Oloroso e Campari infusionado com baunilha e coco seco. Ele é uma ótima pedida para o coração de pato e a língua que costumamos servir” completa Gunter.  

Casamento de sabores

O estrelado Evvai, que trabalha apenas no formato de menu-degustação, também criou uma opção de harmonização com drinques. Sob o comando do bartender Matheus Gusman, uma das preocupações na hora de elaborar esse menu era justamente evitar o consumo excessivo de álcool durante a experiência. Sendo assim, clássicos e autorais são servidos em copos pequenos, entre 50 e 60 mililitros cada. No total, são 10 drinques que acompanham os 13 tempos do menu do chef Luiz Filipe Souza e as sobremesas da chef de confeitaria Bianca Mirabili.

Laércio Zulu, nome à frente da coquetelaria do Grupo Saints / Rubens Kato

Segundo Laércio Zulu, mixologista do Grupo Saints (Yū Restaurante, Tuy Cocina, Tartuferia San Paolo, Boteco São Bento e São Conrado Bar), o amadurecimento do consumo de coquetéis está em crescimento constante na última década.

“A cada ano tomar um drinque foi deixando de ser esporádico ou apenas para ocasiões especiais até se tornar um requisito importante na hora de escolher em qual lugar ir. Os comensais buscam casas que entreguem ótima comida e, também, ótimos drinques – não apenas os clássicos, mas opções autorais que casem com o conceito do restaurante”.

Zulu diz que “gostar de uma harmonização” é algo muito particular, pois cada indivíduo tem um gosto e paladar distinto. Porém, há algumas estruturas que, por questões básicas de química, não se alinham muito bem.

“Uma bebida com estrutura densa, muitas especiarias e expressividade alcoólica irá anular sabores leves de uma massa fresca ou peixe branco, por exemplo. Perfis de drinques que são basicamente álcool sobre álcool como as variações de Martinis funcionam bem com pratos mais leves”.

Ele ainda completa que se considerarmos o “flavor pairings”, termo usado para organizar características sensoriais de ingredientes gastronômicos, podemos propor um casamento de contraste – por isso o clássico feijoada com caipirinha faz tanto sentido. Um prato rico em gordura, com sabor intenso, e, no outro lado, a caipirinha vem com muita acidez, potência alcoólica e pouca doçura (quando bem feita) como contra ponto.

Outra mistura que também funciona é a massa Carbonara & Spritz, um prato untuoso, com variação de textura e cremoso, já o Spritz é levemente doce, com notas de laranja que traz frescor e o espumante conclui com acidez.

Daniel Estevan, head bartender dos badalados NOSSO e Katz-Su, no Rio de Janeiro, costuma dizer que a forma mais fácil de harmonizar os coquetéis é não pensar só na comida que você quer naquele momento, mas também com o seu estado de espírito atual. Por isso, é tão importante para o bartender entender de onde o cliente veio, o que já comeu e bebeu até aquele momento, seu paladar e expectativa. “É importante entender esses tópicos para uma boa hospitalidade e harmonização, a experiência daquele cliente nem sempre começa no seu balcão”.

Quando questionado sobre as suas harmonizações prediletas, Estevan diz “eu gosto de começar com ostras e Daiquiri, passar para um Negroni ou Boulevardier com uma massa cacio e pepe e finalizar com uma sobremesa de chocolate e um Espresso Martini”.

Bar Nosso, em Ipanema, tem boas opções gastronômicas que casam perfeitamente com os inúmeros drinques da casa / Tina Bini

Cuidados nas combinações

Para criar combinações que funcionam, portanto, é necessário tomar alguns cuidados. “Escolha um drinque que complemente os sabores do prato. Por exemplo, se o prato é picante, um drinque doce ou frutado ajuda a equilibrar o calor”, diz Felício, do Bottega. “Ou experimente criar um contraste, como um coquetel ácido ou amargo que pode contrastar com um prato rico e gorduroso.”

Segundo ele, coquetéis clássicos à base de gin, como gin tônica, são considerados bastante versáteis. “Eles podem ser apreciados com uma variedade de pratos, desde frutos do mar até carne grelhada, dependendo da seleção de ingredientes e proporções.” Já Bussab recomenda pedidas como mimosas e spritz. “Borbulhas são incríveis e fáceis”, afirma.

Felício acrescenta que é possível ainda recorrer a uma “harmonização regional”. “Sempre vale considerar a origem do prato e explorar drinques que sejam tradicionais da mesma região. Muitas culinárias possuem combinações clássicas que se complementam perfeitamente.” São exemplos, segundo ele, a margarita com tacos e guacamole e o mojito com receitas cubanas, entre elas ropa vieja (espécie de guisado de carne) e tostones (bananas-pão fritas) – além da nossa tradicionalíssima e já citada acima feijoada com caipirinha.

No Modern Mamma Osteria– Moma, o chef de bar Ricardo Barrero explica que elaborou uma carta de coquetéis pensados não para pratos específicos, mas para cada etapa da refeição.

“Começamos o menu com uma sessão de coquetéis mais leves, como spritz e highballs, para preparar o paladar. E, para os pratos principais, sugestões mais complexas.” Ele conta que “existe uma tendência de aperitivos, algo para iniciar a refeição”. “Porém, percebemos que, principalmente no verão, a procura por drinques mais refrescantes para acompanhar a refeição é comum.”

Coffee Negroni do Modern Mamma Osteria. Drinques com café são boas opções para harmonizar com sobremesas que levam chocolate  / Divulgação

Para a sobremesa também há opções. “Misturas amargas são ótimas, principalmente para ativar a digestão”, complementa Barrero. Nesse ponto, Felício dá outra dica: “Coquetéis à base de café, como espresso martini, podem ser uma opção deliciosa para acompanhar doces à base de chocolate, como brownies, tortas de chocolate ou mousses.”

E destilados puros para acompanhar o prato? “Eles são fantásticos para essa função”, garante o profissional do Moma. “Um vermute para começar a refeição, um uísque defumado com ostras, um amaro para a sobremesa ou apenas para o final da refeição… São harmonizações onde um complementa o outro.”

Felício dá outra sugestão. “A riqueza e a complexidade do uísque vão bem com carnes grelhadas, e o gin, com suas notas herbais e cítricas, pode complementar pratos de frutos do mar, como camarões grelhados, ceviche ou vieiras.”

Robert Stanley Adair, master distiller da São Paulo Urban Distillery, que produz o gin Jardim Botânico no centro de São Paulo, completa: “Gin também combina muito bem com receitas apimentadas, como um curry, e pode ser apreciado com queijos, sobremesas e frutas vermelhas.”

No fim, todos são unânimes: o que vale é experimentar! Não existem regras fixas na harmonização, mas apenas algumas diretrizes gerais. “Trata-se de uma experiência subjetiva, e o gosto pessoal desempenha um papel importante”, diz Felício.