Entenda por que a Bolívia é o próximo destino gastronômico da América Latina

País tem se destacado com restaurantes luxuosos focados nas tradições e comidas locais

Corações de alcachofra grelhados com abobrinha, molho romesco boliviano e nozes amazônicas no Ancestral
Corações de alcachofra grelhados com abobrinha, molho romesco boliviano e nozes amazônicas no Ancestral Cortesia de Joe Yogerst

Joe Yogerstda CNN

A Bolívia não parece um destino gastronômico óbvio. Mas o grande país sul-americano, sem litoral, está agitando o mundo culinário através de restaurantes de primeira linha e transformando práticas alimentares pioneiras dos antigos povos Inca e Aymara em modernos pratos de fusão.

A capital, La Paz, possui três restaurantes – Gustu, Ancestral e Phayawi – atualmente classificados entre os 100 melhores da América Latina. E mais está esperando nos bastidores. E não é apenas La Paz. A revolução alimentar da Bolívia também se espalhou por grandes cidades como Sucre e também pelo Salar de Uyuni.

A nova culinária boliviana começou há cerca de uma década, segundo Marsia Taha, chefe de cozinha do Gustu. “Houve uma geração de novos chefs que pensavam que deveríamos ter orgulho da nossa identidade, da nossa cultura e da nossa comida”, disse Taha.

Taha e outros chefs de La Paz com ideias semelhantes uniram-se em torno do conceito de “cozinha zero quilômetro” – utilizando o maior número possível de ingredientes criados ou cultivados localmente e tendo contato direto com os pecuaristas ou agricultores que fornecem esses produtos.

“Ao mostrar que acreditamos nos produtos locais, conseguimos mostrar às pessoas que a culinária boliviana pode ser tão boa quanto a comida vinda de fora do país”, acrescenta Sebastián Giménez, chef e coproprietário da Ancestral.

Revolucionando a culinária boliviana

Não é de surpreender que Gustu tenha sido considerado um dos destinos gastronômicos de elite do continente desde que abriu suas portas em 2013.

O cofundador Claus Meyer é uma lenda da culinária dinamarquesa que ajudou a criar o movimento de comida nórdica no restaurante Noma, com três estrelas Michelin, em Copenhague, e Gustu é sempre mencionado entre os melhores restaurantes do continente.

Combinando os ingredientes tradicionais e a cultura alimentar da Bolívia com o modelo nórdico contemporâneo, Taha e Meyer criaram um caldeirão gastronômico que realmente faz jus ao seu nome (gustu significa “delicioso” na língua quíchua dos Andes).

Entre os pratos exclusivos estão a truta crua do lago Titicaca com manga; lhama com baunilha amazônica e raiz de ajipa; peixe amazônico com amoras douradas e mandioca fermentada; e um tamale de cordeiro de outro mundo.

Taha diz que, mesmo depois de uma década no mercado, ela e os outros chefs de Gustu conseguem manter o conceito atualizado viajando pela Bolívia para aprender sobre novos ingredientes e práticas alimentares. “Aprender como as pessoas cozinham, como cultivam seus alimentos e assim por diante. Também damos muita liberdade aos nossos chefs para trazerem novas ideias.”

Ingredientes estão prontos para preparo no mercado central d Sucre
Ingredientes estão prontos para preparo no mercado central de Sucre / Cortesia de Joe Yogerst

Variações sobre o tema

Localizado no badalado bairro de Achumani, no lado sul de La Paz, o Ancestral ocupa um porão aconchegante com janelas do chão ao teto com vista para um jardim submerso. A comida é nova boliviana com tons bascos e nórdicos, mas o conceito é fogo aberto ou cozinha estilo parrilla que gira em torno da grelha e do forno a lenha.

“Nos inspiramos na biodiversidade da Bolívia”, diz o chef Sebastián Giménez. “Temos selva, vales, altiplano e lugares muito altos. Também nos inspiramos em produtos e técnicas locais. Só usamos produtos bolivianos e só servimos vinhos bolivianos.”

Mas não espere pratos tradicionais andinos ou amazônicos. Ancestral oferece uma deliciosa fusão do antigo e do novo em ofertas como o chuletón ribeye steak, o ceviche de truta com milho grelhado e batata doce e a porchetta de porco assada com tubérculos bolivianos e molho de aji vermelho.

Manq’a toma outro rumo. Em vez de refeições requintadas, o ambiente é decididamente casual, as mesas espalhadas por três andares de uma antiga casa de madeira no boêmio bairro de Sopocachi, no centro de La Paz.

É especialmente movimentado no almoço, uma mistura de compradores locais, políticos, estudantes e turistas ocasionais saboreando pratos como sopa de maní (sopa de amendoim), queijo gratinado e batatas nativas com molho humacha, carne keperí assada macia do leste da Bolívia e bagre surubi da Amazônia servido com quinoa, mandioca tucupi e flores comestíveis.

Comida do Diabo

Os chefs desses restaurantes de primeira linha não precisam procurar muito por ingredientes básicos. Muitos dos componentes de seus alimentos de fusão são nativos dos vales e contrafortes dos Andes, que se estendem ao longo do lado ocidental da Bolívia, do lago Titicaca à Argentina.

Mais de 4.000 tipos de batata são cultivados na Bolívia e nos seus vizinhos andinos, muitos deles encontrados em apenas um pequeno vale. Eles vêm em vários formatos, tamanhos, cores e sabores ligeiramente diferentes.

Ainda mais do que batatas, os bolivianos apreciam a sua quinoa. O país possui mais de 3.100 variedades de quinoa, que, ao contrário da opinião popular, é na verdade a semente de uma planta pseudocereal em flor, e não um grão verdadeiro.

Almoço no Salar de Uyuni servido pelo restaurante Tika
Almoço no Salar de Uyuni servido pelo restaurante Tika/ Cortesia de Joe Yogerst

Uma exposição no novo centro de visitantes da cidade mineira de prata de San Cristóbal salienta que os conquistadores e padres espanhóis consideravam a quinoa o “alimento do Diabo” e proibiram o seu consumo como forma de controlar os povos indígenas locais.

Cinco séculos mais tarde, a NASA declarou a quinoa “o alimento perfeito para crescer em estufas interiores” durante longas viagens no espaço exterior devido a sua resistência a condições adversas (como o cultivo nos Andes), versatilidade e elevado teor de proteínas.

Não mais difamado como o banquete de Satanás, é também um ingrediente ideal para a nova onda da culinária boliviana.

A chef Tania López também usa o termo “cozinha zero quilômetro” para descrever o cardápio do Tika. Entre seus pratos exclusivos estão carne seca de lhama desfiada e seca ao sol com queijo branco local e molho picante de pimenta amarela, sopa de milho k’alaphurka borbulhante e filés de truta do lago em uma “lagoa” de pesto de manjericão com risoto de quinoa.

López diz que um dos pratos mais próximos do que os incas podem ter comido é a lhama potojchi. “O preparo leva mais tempo do que a carne bovina”, explica ela sobre um prato suculento que lembra goulash. “Ainda fazemos isso da maneira tradicional de muitos séculos atrás – aquecidos em rochas de lava.”

Pratos que os incas nunca provaram — mas que provavelmente adorariam — são as sobremesas caseiras de Tika, em especial os sorvetes de quinoa e de milho roxo.

Tika também oferece comida para viagem sofisticada, refeições para um piquenique remoto que os clientes podem preparar por conta própria ou em uma aventura 4×4 com a Hidalgo Tours, que monta mesa, cadeiras e bar em um local remoto no meio do salar.

Mas isso não quer dizer que a revolução alimentar da Bolívia tenha alcançado todos os cantos e recantos.

A uma hora de barco do continente, no meio do lago Titicaca, a Isla del Sol (Ilha do Sol) é o lendário berço da civilização Inca e um lugar ainda profundamente enraizado no passado andino.

No seu terraço ao ar livre com vista para a água, o restaurante Tacana da ilha serve um almoço tradicional de pachamanca que inclui lhama, peixe do lago, batatas, milho e outros pratos de origem local – não muito diferente do que os governantes incas teriam comido durante as suas peregrinações para a ilha há mais de 500 anos.

Almoço do restaurante Tika inclui batata e quinoa
Almoço do restaurante Tika inclui batata e quinoa / Cortesia de Joe Yogerst

 

Este conteúdo foi criado originalmente em inglês.

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