Comida Kosher: o que é, como funciona e as principais regras da alimentação judaica
Conjunto de leis alimentares do judaísmo define o que pode ou não ser comido; restaurantes e grandes marcas se adaptam à demanda
Desde o pôr-do-sol de ontem, sexta-feira (15), judeus de todo o mundo estão celebrando a chegada do ano 5784. O Rosh Hashaná, o Ano-novo judaico, é comemorado com muita festa, reza e principalmente mesas fartas, com comidas bem típicas da ocasião. O que muita gente não sabe é que no judaísmo há um conjunto de leis alimentares que é seguido por muitos praticantes da religião.
Elas, que têm base na Torá, livro sagrado, são conhecidas como Kashrut e definem o que pode ser comido, as misturas de alimentos que podem ou não serem feitas, além das formas de consumo. Essas muitas regras deram origem há mais de 4 mil anos à chamada alimentação Kosher ou Casher.
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O termo, que vem do hebraico, significa “apropriado” e traz em sua definição a diretriz, com uma lista de alimentos e formas apropriadas de consumi-los.
“Os detalhes das leis são passados por gerações. O ensino místico nos ensina que aquilo que a gente come entra no nosso sangue e faz parte das nossas características. A gente acredita que os seres humanos precisam se alimentar para ter força e vitalidade para o seu serviço no mundo, mas o que se come precisa ser elevado espiritualmente“, explica o rabino Pessah Kauffman.
“Precisamos cuidar um dos outros, então, eu como rabino vou sempre me preocupar em passar os ensinamentos para que todos também cumpram as determinações de maneira natural. O papel do rabino, entretanto, não é julgar e excluir quem não segue este tipo de alimentação. É ensinar com amor e carinho a importância que ela tem”, completa.
Para o rabino Ruben Sternschein, da Congregação Israelita Paulista e reitor da Academia Judaica, o conjunto de regras trata principalmente de um cuidado e sensibilidade não só com animais, mas também com tudo o que tem vida, como humanos e plantas.
“Esse cuidado tem a ver principalmente com uma produção que busca evitar o sofrimento e também diminuir o máximo possível de consumo de animais. Tentamos divulgar as práticas de forma que as pessoas entendam o porquê de cada coisa para que elas não fiquem apenas no âmbito ritual, tradicional ou religioso, mas tenham uma consciência sustentável e saibam o que estão fazendo”, explica Ruben, que também é representante para o diálogo inter-religioso da Confederação Brasileira Israelita do Brasil.
Principais regras da alimentação Kosher
Alguns alimentos no judaísmo são proibidos, enquanto outros passam por um processo de certificação que garante que estejam dentro destas leis.
As carnes, por exemplo, devem vir de animais que são abatidos pela prática schechitah, uma forma específica de abate que busca fazer com que o animal morra de forma rápida e sem sofrimento. Além disso, nem todos são permitidos. No caso dos mamíferos, eles só são casher se tiverem cascos fendidos e forem ruminantes. Portanto, fica proibido qualquer tipo de consumo de porcos, coelhos, ursos, cães, gatos, camelos e cavalos.
Vale ressaltar que hoje em dia se fala muito mais em sustentabilidade, de algo que chama Eco-Kashrut, o conceito de que mesmo que se crie e mate um animal permitido em um campo, mas as pessoas são mal pagas ou moram em condições que não respeitam os direitos humanos, o que se produz lá não é Kosher.
Sternschein
“Do mesmo modo que se os animais sofrem pelas condições na quais vivem, são mal alimentados, forçados a comer gordura e chocar ovos quando não querem também não são kosher. Hoje entendendo esses conceitos vemos que não são, mesmo que as restrições básicas da lei judaica não tenham falado isso no começo“, completa.
Na Torá também constam 24 espécies de aves que não são Kosher, geralmente aves predadoras e carniceiras. Patos, gansos, perus, galinhas e pombos, por sua vez, são permitidos, mas também devem seguir formas rigorosas de abate e preparo.
Os répteis, anfíbios, vermes e insetos, com exceção de quatro tipos de gafanhotos, não têm o consumo permitido. No caso dos peixes e frutos do mar, só são considerados Kosher aqueles que tiverem barbatanas e escamas, como salmão, carpa, atum e linguado. Lagosta, siris, bagre e todos os mamíferos aquáticos estão fora desta lista.
Quando se fala em verduras, grãos e frutas é necessário um cuidado minucioso para o consumo, garantindo que nenhum destes alimentos tenha algum tipo de bicho. Os ovos também são permitidos, mas não deve constar nenhum resquício de sangue em sua casca.
Já no caso do leite, para ser 100% Kosher, sua produção deve ter uma supervisão desde a ordenha – que só pode ser feita em animais permitidos – até as prateleiras do mercado. Ele deve ter o certificado que garante que seguiu todas as normas dentro das leis judaicas, assim como alimentos industrializados que desejam ter este reconhecimento. Já os vinhos e sucos de uva recebem uma atenção ainda maior. Bebida sagrada que representa a santidade e a individualidade do povo judeu, ele tem restrições especiais aplicadas em sua produção e manipulação.
Carne e leite não podem ser consumidos juntos
Além do processo de certificação, outra regra básica deste tipo de alimentação é que não se deve misturar carne com leite e seus derivados em uma mesma refeição. Eles, entretanto, podem ser consumidos de maneiras separadas. Os religiosos mais rigorosos seguem um intervalo mínimo entre suas ingestões – cerca de seis horas que seria o horário da digestão no organismo.
Os judeus que também seguem à risca todas as leis e fazem o consumo em casa de ambos os alimentos utilizam utensílios separados para o preparo de cada um, como louças, microondas, fogões e fornos – a geladeira, por ser fria, pode ser a mesma, mas a recomendação é que os alimentos fiquem em recipientes fechados e separados.
Caso aconteça algum acidente ou seja cometido algum engano em que eles se misturem de alguma forma, aquele objeto passa por um processo de casherização, que consiste em uma limpeza específica e profunda feita por pessoas autorizadas e com conhecimento para isso.
Supervisão da alimentação Kosher
Com tantas regras, a dúvida que fica é: como tudo isso é supervisionado? É importante ressaltar que há rabinos e especialistas que estudam a fundo as leis Kosher e são responsáveis por este controle. Em caso de fábricas, por exemplo, um rabino precisa fazer uma visita técnica para garantir que todo o processo de produção daquele determinado alimento esteja dentro das normas.
“Aqui no Brasil há duas empresas que fazem este tipo de certificação, além de certificadoras internacionais que também atuam no país. Os alimentos também são separados nas chamadas listas verde [BDK] e amarela [LKB]. A lista verde é uma mais extrema, que não aceita nenhuma leniência, então, é considerada 100% casher. A lista amarela, por sua vez, é menos rigorosa e tem algumas leniências que são permitidas”, explica o rabino Moshe Eisencraft.
“Como exemplo temos o próprio leite. Para ser 100% casher e estar na lista verde, o processo de ordenha deve ser supervisionado por um rabino. Outros leites considerados casher passam por supervisão dos responsáveis só quando já estão nas fábricas. Neste caso, então, ele entra na lista amarela. Isso é permitido e ele está apto para ser tomado”, completa.
Hoje há mercados especializados e grandes marcas que se adaptaram à demanda. A tecnologia também virou grande aliada para quem segue este tipo de alimentação e por uma simples consulta em um site chamado Buskasher é possível verificar se um produto é ou não Kosher. Nesta plataforma, as pessoas também conseguem buscar boas opções disponíveis com os selos garantidos nas prateleiras.
Restaurantes
Não há como falar sobre alimentação Kosher sem mencionar a figura do Mashguiach, nome dado ao supervisor responsável por assegurar que a comida servida em locais comerciais como restaurantes, eventos e fábricas seja Kosher. Ele funciona como os olhos dos rabinos.
No caso dos restaurantes, a presença deles na cozinha é obrigatória. São eles que abrem e fecham os recintos, fazem a análise dos alimentos, e também são responsáveis por acender os fogos que dão início às atividades. Isso serve também para buffets de festas e casamentos judaicos.
A cidade de São Paulo reúne boas opções de restaurantes Kosher. Um dos mais famosos e emblemáticos é o Sushi Papaia, na Vila Boim, no bairro do Higienópolis. Além da unidade tradicional, a marca tem uma cozinha que segue todas as normas e atende todos os judeus que amam a culinária japonesa. Hoje, os salões são unificados em uma mesa propriedade, separados apenas por um andar.
A alta gastronomia paulistana também está atenta às necessidades de diferentes grupos. O Le Jardin, restaurante do hotel Rosewood comandado pelo chef Felipe Rodrigues, é um deles.
Aberto em 2022, ele tem uma cozinha totalmente equipada e preparada para a produção de um menu Kosher, que está à disposição de qualquer comensal – basta informar na hora da reserva. Ela funciona das 8h às 23h e também engloba os serviços de quarto.
As louças e toalhas ganham especificações, além de uma equipe treinada para atender esta demanda . A sous-Chef executiva Rachel Codreanschi, que está à frente desta operação, explica que a ideia do restaurante é desmistificar a comida Kosher e garantir uma experiência igual a todos os hóspedes e clientes.
“Temos hoje duas mulheres como Mashguiachs que são responsáveis por supervisionar nossa cozinha 100% do tempo. Elas verificam todas a ervas, os legumes, os nuts, as sementes e grãos. Produzimos tudo dentro do nosso espaço e contamos com fornecedores de confiança no que se diz respeito a carnes. Hoje em dia a demanda tem aumentado, as pessoas estão mais críticas e buscando entender melhor o que elas estão comendo. O acesso à informação de modo geral fomenta ainda mais essa busca”, aponta a chef.
“O começo foi uma grande surpresa. Temos um grande movimento da comunidade judaica, mas também de pessoas curiosas. Fomos conquistando a confiança aos poucos e somos muito transparentes, abrindo a nossa cozinha para quem quiser conhecer, além das supervisoras sempre estarem à disposição para tirar qualquer tipo de dúvida”, completa.
Empresa busca adaptar experiências de judeus em restaurantes e hotéis
Apesar de São Paulo reunir ótimas opções, o fato é que ainda há muito terreno e oportunidades para serem exploradas. Sentindo falta de mais serviços voltados a este público, o rabino Moshe Eisencraft criou a empresa Wedo Kosher em 2017.
Entre os serviços disponíveis, ele e sua equipe ajudam a transformar restaurantes tradicionais em Kosher por um dia. Para isso, fazem o intermédio entre o restaurante, as certificadoras e rabinos para que todos sigam os passos necessários. Brasserie Victoria, a churrascaria Rodeio, Rubayat, Pobre Juan, Forneria San Paolo, Sal Gastronomia, Ráscal, e Badauê são alguns dos estabelecimentos que já tiveram esta experiência.
“Deixo tudo pronto para aquela ocasião. Organizo a casherização do ambiente, faço o intermédio dos estabelecimentos com os profissionais necessários e conseguimos transformar qualquer experiência em uma Kosher. Meu grande objetivo é adaptar o carro-chefe de cada local para este tipo de alimentação. O molho secreto do L’Entrecôte de Paris, por exemplo, ganha sua nova versão – e quem já experimentou ambas as opções garantem que não sentem a diferença”, conta.
Para a casherização de uma cozinha, por exemplo, Moshe explica que é necessário fechá-la por 24 horas. Entre os muitos processos está a limpeza profunda dentro e fora de cada fogão, além de utensílios. Isso é feito geralmente por Mashguiachs estudados e treinados.
“Presto consultoria também a muitos hotéis, como o Rosewood, Palácio Tangará e Fasano, além de clientes que me procuram com uma demanda específica de eventos ou viagens. Conseguimos criar essas experiências com treinamentos para os próprios funcionários dos hotéis. É um investimento que tem dado retorno a quem procura. O hotel ganha, o cliente muito mais. Muitos ainda não aceitam, mas quem faz acaba agradecendo pelo serviço”, enfatiza.