Chefs renomados defendem uso do ouro na gastronomia e explicam sofisticação do elemento

Para Luiz Filipe, do Evvai, Renzo Garibaldi, do Osso e o especialista Mário Portella, jogadores da seleção não erraram ao escolherem o banquete polêmico

Carolina Fariasda CNN , São Paulo

Na arte da gastronomia vale (quase) tudo para transformar o ato de nos alimentarmos em uma experiência prazerosa. Mas além do sabor e dos aromas, o visual também impressiona e pode nos fazer “comer com os olhos” antes mesmo da primeira garfada.

E se tem um elemento que nos fascina é o ouro que, sim, pode ir para as receitas. Chefs e especialistas renomados que conversaram com a CNN Viagem & Gastronomia defendem o uso do ouro como forma de valorizar a beleza de um prato e até mesmo de celebração.

Mas a opção por destacar uma receita com o elemento pode soar como extravagante para leigos. No último domingo (4), jogadores da Seleção Brasileira comeram carne folheada a ouro em um restaurante em Doha para aproveitar a folga no meio da Copa do Mundo do Catar.

A ostentação do momento rendeu críticas, entre elas do padre Júlio Lancellotti, que classificou as imagens dos atletas no banquete como causadoras de “constrangimento”. Já o ex-atacante Ronaldo, que estava com os jogadores, disparou contra os críticos.

“Se comeu a carne folheada a ouro, problema do cara”, disse.

O local onde os jogadores saborearam a iguaria é a churrascaria de luxo Nusr-Et, do chef turco Salt Bae, famosa por servir assados folheados a ouro. O valor estimado do prato com o elemento, um corte prime-rib consumido pelos atletas, se aproxima de R$ 10 mil.

Mas o uso do ouro não é tão extravagante assim. A primeira evidência de seu uso alimentar remonta ao Egito no segundo milênio antes de Cristo.

Os antigos egípcios acreditavam que era uma forma de se aproximar de suas divindades. A pele dos deuses retratados em seus afrescos era dourada; os túmulos e sarcófagos dos faraós eram decorados com ouro; e o elemento era comido como alimento sagrado para agradar aos deuses.

Na Europa, o uso do ouro comestível chegou na Idade Média e o Japão usa há séculos o metal precioso em garrafas de saquê e pratos especiais.

O premiado chef Luiz Filipe Souza, que comanda um dos 100 melhores restaurantes do mundo, o paulistano Evvai, 67º lugar na lista do The World’s 50 Best Restaurants, lembra que, em 1981, Gualtiero Marchesi, um dos maiores chefs italianos da história, percursor da nouvelle cuisine no país, usou pela primeira vez uma folha de ouro em seu risotto Allo zaferano – até então não se usava o ouro dessa maneira na culinária.

“O prato é um dos mais conhecidos até hoje por seu papel disruptivo ao quebrar paradigmas e elevando ainda mais a gastronomia a um estado de arte. A partir dessa linha a folha de ouro representa muitas coisas. O ouro representa riqueza, luxo, nobreza como também conquistas, ascensão e prêmios. O fato de associá-lo a comida pode fazer parte de agregar esses atributos à comida”, afirma o chef, que usa o elemento em ocasiões especiais em seu restaurante.

“Não como ouro todo dia, mas para propor experiências disruptivas, provocar sensações além da refeição. É um artifício que faço uso no restaurante quando há contexto para tal. Sem hipocrisia, há certo luxo e superficialidade quando elevamos a gastronomia além do simples fato de se alimentar. Comida por si só, infelizmente, já é um luxo no país que vivemos, disso não há o que discordar. Mas, usar ouro ou não em uma experiência gastronômica é apenas mais um entres outros diversos luxos que agregamos a comida”, diz Luiz Filipe.

O chef Renzo Garibaldi, do premiado peruano Osso, com filial em São Paulo desde outubro, um dos principais nomes do Peru quando o assunto é carne, também ressalta que o ouro na comida não é um condimento, já que não tem sabor.

“É somente um apelo visual. Na grelha não muda o sabor da carne, nem a textura. Mas como muitas coisas na cozinha a estética é importante. A comida entra primeiro pelos olhos e depois pela boca”, explica o chef.

Ouro em pó não altera o sabor das receitas e dá toque especial / Reprodução/Instagram

O banquete que os jogadores se serviram em Doha foi defendido pelos chefs, que lembram que o ouro é um elemento de celebração de conquistas.

“Não consigo entender como pode ter incomodado tanto a ponto de gerar críticas. Como se não concordássemos que jogadores, em sua grande maioria de origem bem humilde, hoje, estando em outra realidade, se realizem com uma refeição banhada a ouro”, afirma Luiz Filipe.

“Soa como privar os direitos de uma pessoa gozar de suas conquistas. Se a carne era tudo aquilo ou não eu não sei, pois não provei. Mas de fato há uma demasia em criticar os jogadores que gastaram o que ganham apreciando a tal carne”, completa.

Para Garibaldi, os atletas estavam em um momento de celebração, em que o ouro traz um toque especial para essas ocasiões.

“O uso do ouro no caso em que a seleção comeu, que é um momento de celebração, achei justo e legal, nada de errado. É um momento que se quer complementar com algo especial”, diz o chef peruano. Ele ainda explica que o uso do elemento na culinária de uma forma de ostentação pode depender da quantidade.

“Depende do momento e da quantidade, um pouco de tudo. Usar uma corrente de ouro fininha é chique, já se usar uma que pesa um quilo é perdulária. O toque do ouro em uma comida não tem nada de errado. É legal – especialmente por ser a seleção, por estarem jogando a Copa do Mundo, a Copa do Mundo do ouro”, ressaltou Garibaldi.

Caro ou barato?

O chef mineiro Mário Portella, importante especialista em carnes do Brasil, diz que o uso do ouro nos pratos não é tão caro assim e que, antigamente, folhinhas de ouro faziam brilhar bebidas como o espumante.

“Na verdade, [o uso] existe há mil anos, não é caro assim. Espumantes e licores vinham com folhinhas de ouro dentro para quando virásemos as folhas se mexessem dentro da bebida. Lembro-me de ver isso na infância. Não é nada de outro mundo. É mais para enfeitar mesmo. Temperos mudam o sabor e textura da carne, o ouro não”, alega o chef, que diz que o preparo que o dono do restaurante onde a seleção comeu o assado com ouro é mais um recurso cênico.

 

Em relação ao preparo, não tem nada demais, é mais para gringo ver.

Mário Portella

 

Os preços de ouro em pó, folhinhas e até spray são variados. Um fornecedor do elemento que fica na Itália e abastece chefs brasileiros, por exemplo, vende caixas com cinco folhas de ouro de 50 cm por 50 cm por 15,90 euros, o equivalente a R$ 86.


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