Serra do Caraça: santuário ecológico e religioso em meio às montanhas mineiras
Área de proteção ambiental, o parque guarda o Santuário do Caraça, um complexo turístico que mistura fé, fauna e flora em meio às maravilhas naturais da serra
Trilhas, cachoeiras, espiritualidade, culinária saborosa, história e arquitetura: são muitos os atributos que formam a Serra do Caraça. Porém, confesso que não entendi muito bem o destino na primeira vez que ouvi um amigo mineiro falar sobre o local.
A descrição mencionava uma mistura de santuário com hospedagem em meio às montanhas mineiras onde há uma tradição do lobo-guará de subir as escadas da igreja e petiscar numa bandeja deixada pelo padre no chão. Era curioso, para dizer o mínimo.
Mas uma coisa é certa: apenas estando no Caraça para entender por que o local é especial. No meio das montanhas e do horizonte verde, entre as cidades de Catas Altas e Santa Bárbara, a cerca de 120 km da capital Belo Horizonte, avista-se uma construção que nos deixa fascinados. É o Santuário do Caraça, local com quase 300 anos de história e de uma riqueza cultural imensurável.
Em linhas gerais, o Santuário foi um colégio imperial, uma escola apostólica, que recebeu Dom Pedro I e já hospedou Dom Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina em abril de 1881. Hoje, além de acumular história e tradição, fica situado dentro de uma reserva particular que oferece hospedagem, gastronomia tradicional mineira – sinônimo de fartura e sabor – e uma imersão espiritual e ecológica.
Enquanto gravávamos o episódio Belo Horizonte, Inhotim e Caraça: Experiências Mineiras do programa CNN Viagem & Gastronomia, escolhemos viajar para Caraça justamente pela aura quase que misteriosa do local – e por se enquadrar em um interessante refúgio.
Aviso que não é um destino tão fácil de se chegar, pois fica numa zona montanhosa e os possíveis contratempos da estrada podem atrasar o roteiro. Contudo, somos recompensados por vistas deslumbrantes e uma tão necessária paz de espírito.
Serra do Caraça
Parte da Serra do Espinhaço, a Serra do Caraça encontra-se numa zona de transição da Mata Atlântica para o Cerrado, dois biomas brasileiros riquíssimos que tornam a região um destino ideal para ecoturismo e também para a preservação dos animais.
Com mais de 11 mil hectares de área, a Serra recebe este nome por um motivo curioso: de longe, possui o formato do perfil de um rosto – mas também porque significa “desfiladeiro” em tupi-guarani. Além da formação rochosa, os picos também chamam atenção dos visitantes do parque natural, que variam entre 1.200 e 2.080 metros de altitude.
Interessante é que a maior parte da serra, que pertence à Província Brasileira da Congregação da Missão, foi transformada em Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), ou seja, uma área eternamente protegida, com a missão de preservar sua natureza abundante.
Diversas nascentes de água abastecem cachoeiras e rios que cruzam a região e nos proporcionam passeios com paisagens estonteantes da Serra. Dou alguns exemplos: a cachoeira do Cascatinha, com quatro quedas d’água e poços cristalinos ideais para banho; o Banho do Imperador, onde, segundo relato no próprio diário, D.Pedro II tomou banho; e a Pedra da Paciência, ideal para se ter uma noção da imensidão ao redor.
O Santuário
Estar no Caraça, como chamam os mais íntimos, é começar a entender que o local é um complexo turístico múltiplo, uma mescla de fé, fauna e flora.
Tudo começou em 1774 com a construção de uma pequena capela de madeira e espaço de hospedagem por iniciativa do Irmão Lourenço. Antes de sua morte, acredita-se que o Irmão recebeu uma aparição da Nossa Senhora Mãe dos Homens, a qual ordenou que o ambiente seria propício para a edificação dos homens.
Na mesma época, chegam ao Brasil os padres portugueses Leandro e Viçoso, que recebem o testemunho para que fosse edificado ali um colégio – fundado em 1820 com quatro alunos vindos do Rio de Janeiro.
Hoje, 247 anos depois, somos testemunhas do vivo legado cravado no meio da natureza mineira deixado em forma de construções e de ensinamentos. Museu, missas diárias na igreja neogótica, hotel e restaurante juntam-se e dão as boas-vindas aos muitos peregrinos e turistas que chegam por aqui todos os anos
Hospedagem
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Como antigamente, os visitantes podem pernoitar ou passar períodos mais longos nas dependências do santuário, já que possuem à sua disposição mais de 50 quartos.
As acomodações são divididas em duas instalações principais, com quartos simples. Uma delas é a Pousada do Santuário, que conta com várias alas, suítes imperiais (que abrigaram importantes nomes da história brasileira, como o aposento onde fiquei em que D. Pedro II passou a noite), chalé e casas anexas.
Também há a Fazenda do Engenho, mais próxima à portaria, que, além de quartos, possui produção de leite e queijo, de hortifrutigranjeiros e animais de pequeno porte.
Mas a hospedagem não é regra: os visitantes que desejam apenas visitar o Santuário são bem-vindos mediante pagamento de uma taxa de entrada e sem necessidade de reserva.
Igreja Neogótica
Por experiência própria, a sensação de se hospedar em uma paróquia começa logo ao acordar e passar pela igreja, centro do local, com a música religiosa de fundo e portas abertas. Impossível ouvir este chamado e não querer adentrar seu interior.
Construída no lugar da antiga capela em 1876 e finalizada sete anos depois, a Igreja Nossa Senhora Mãe dos Homens já impressiona de fora com os 48 metros de altura da torre. Pedra sabão, mármore, e quartzito compõem a imponente construção, todos materiais extraídos regionalmente. Por dentro, ainda mais interessante: muito rica e bonita, os vitrais coloridos foram feitos na França e doados por D. Pedro II em sua visita.
E uma pintura não passa despercebida pelo olhar: é a Santa Ceia, de assinatura de 1828 de Ataíde, artista contemporâneo de Aleijadinho. De grandes proporções, o quadro é mais uma das maravilhas encontradas dentro e fora da construção.
Atrações
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Fora a igreja e a hospedagem, outras atrações fazem parte do complexo – estas voltadas à uma imersão cultural ligada à história do colégio. O antigo centro de educação foi desativado em 1968 por conta de um trágico incêndio que destruiu boa parte das instalações e dos livros da biblioteca. O incidente foi causado por um fogareiro, que está exposto no museu como parte da história do local.
Hoje, podemos ver as ruínas do Colégio, que formou mais de 11 mil jovens, entre eles dois ex-presidentes da República: Afonso Pena e Artur Bernardes. Diversas construções anexas e dependências de serviços também constam como edificações do núcleo histórico.
Para quem não teme, as catacumbas são um ponto de visitação relevante, nos relembrando algumas figuras célebres que já passaram pelo Caraça. Aqui estão enterrados alguns padres e professores, sendo o jazigo mais antigo do Padre Leandro Rebello Peixoto e Castro, primeiro superior de Caraça e fundador do colégio – a data de sua morte data de 1841.
O museu é um dos pontos mais chamativos do Caraça. Dividido em três – museu do colégio, museu sacro e pinacoteca -, cada seção traz em si diferentes artefatos que ajudam a narrar a tradição e o passado do local.
O museu foi montado a partir das peças de mobiliário e objetos de uso diário pertencentes ao próprio Caraça, alguns remanescentes até mesmo de séculos anteriores. As camas em que D. Pedro II e Teresa Cristina dormiram são bons exemplos dos artefatos expostos, as quais foram montadas especialmente para receber a comitiva na época.
Ele está localizado no segundo andar do prédio onde funcionava o Colégio, pavimento que é também lar da biblioteca. Assim como todo o complexo, é um ambiente de valor histórico muito precioso, mas com contornos ainda mais especiais por ter em sua coleção cerca de 2.500 obras raras.
A mais antiga delas é a enciclopédia “Historia Naturale”, de autoria de Plínio, O Velho, que data de 1489 – é um exemplo de incunábulo, ou seja, uma obra editada por conta da invenção da imprensa por Gutenberg. Um mergulho pela história bem à nossa frente!
Outra obra interessante diz respeito a um dos assuntos que mais gosto, a gastronomia. É no livro “O Confeiteiro Popular”, edição de 1914, que se encontra a receita do pudim de gabinete que aprendi no Santuário, doce feito em datas comemorativas e apreciado por D. Pedro II.
Típica culinária mineira
A comida é um ponto alto de Caraça. Como de se esperar, o cheirinho da gastronomia mineira invade o local e dá as caras em refeições tipicamente apetitosas. Pela manhã, após uma passada na igreja, chega a hora do café, servido num grande refeitório onde as crianças do internato faziam suas refeições.
Um fogão a lenha abriga delícias da cozinha de Minas, feitas com um primor de surpreender. Da cozinha e da padaria, saem biscoitos de sequilhos, pães variados e muitas receitas seculares dos livros centenários da coleção gastronômica da biblioteca.
As hortaliças e legumes saem de uma horta que valoriza as PANCs (plantas alimentícias não convencionais) e honra a tradição da culinária mineira, com impecáveis tutus de feijão, feijões tropeiros e fartas porções de torresmos crocantes. De sobremesa? Queijos, compotas e doce de leite, todos fabricados ali mesmo.
Além da cozinha, outro ponto de interesse é a adega, situada ao lado das escadarias que levam às portas da igreja. Reformada em 2015, junto dela recuperou-se um passado delicioso do Santuário: a da produção de vinhos e fermentados.
Existente desde o século XVIII, a reforma da adega trouxe à tona novas descobertas, como garrafas de até 100 anos de hidromel, cuja produção foi retomada após as pesquisas.
O achado histórico é visto pela equipe como uma revitalização de uma produção que já acontecia no Caraça. Vinhos de uva, de jabuticaba e de laranja também estão entre as bebidas feitas no Santuário e amadurecidas na adega.
A hora do lobo
Antas, cachorros-do-mato e aves dos mais diferentes tipos dividem a atenção devido à abundância da fauna e da flora que cerca o local. Porém, é o lobo-guará, astro da nova nota de R$200, um dos mais ilustres visitantes do Santuário.
Aqui há a possibilidade de termos uma interação direta com o animal. É uma experiência fascinante: todos os dias, a partir das 19h, nos reunimos em frente às escadas da igreja para aguardar a visita do lobo. O silêncio toma conta e a ansiedade começa a bater mais forte dentro do peito.
Como é um animal silvestre, ele acaba mantendo seus hábitos naturais, por isso, na verdade, não tem hora exata para aparecer – há até o risco de não o vermos. Porém, quando ele aparece por conta da comida colocada na bandeja no chão, é impossível não esboçar um sorriso silencioso e ficar impressionada com suas cores e tamanho.
A tradição de aguardar a visita do lobo remonta há mais de 40 anos, quando algumas lixeiras apareciam reviradas. Pensou-se que eram cachorros, mas logo a equipe do Santuário certificou-se que se tratava do lobo.
Desde então, bandejas com carne e pedaços de frutas são colocadas no chão em frente à igreja como num ritual de aproximação do animal – uma forma de sua preservação com base no respeito. Vale ressaltar que as visitas do lobo-guará são acompanhadas de perto por um biólogo, que dá mais explicações sobre o animal e seus hábitos.
Entre a experiência com o lobo, as cachoeiras, serra, mata, gastronomia, história e fé, a sensação que resume o Caraça é uma só: a de querer voltar.
Como chegar
A Serra do Caraça fica entre dois municípios mineiros, Catas Altas e Santa Bárbara. Ambos distam, em média, 120 km de Belo Horizonte.
Partindo da capital de carro, chega-se ao Santuário do Caraça através da rodovia BR 381 no sentido Vitória-ES até o trevo Barão de Cocais/Santa Bárbara/Caraça. Siga pela rodovia MG 436 via Barão de Cocais e, antes da cidade de Santa Bárbara, vire à direita para o Caraça.
A portaria principal do Santuário fica na Rodovia Caraça, no km 7, em que é necessário percorrer mais 12 km até a sede em uma estrada asfaltada. A distância do Santuário a partir do Rio de Janeiro é de cerca de 500 km; de São Paulo são cerca de 700 km.