Influenciadores robôs nutrem padrões inalcançáveis e prejudiciais nas redes
Esses influenciadores, nova tendência da publicidade, seguem as regras de forma invejável, não causam problemas, não emitem opinião própria e nem erram o tom
Miquela tem 3 milhões de seguidores, no Instagram ela faz caras e bocas, algumas comidas apetitosas e está sempre de bom humor. Tem parceria com diversas marcas grandes, como Prada e Nike e, hoje, já não esconde de ninguém que é, na verdade, um avatar ou “um robô em busca de mudança”, como diz sua bio. Miquela foi criada há 6 anos e, desde então, não deu nenhuma escorregada nas redes. Não falou bobagens, não expôs mais do que deveria, não se perdeu em divagações políticas polarizadas e ainda abriu um caminho fértil para colegas com o mesmo DNA digital. Ela é o que o mercado publicitário chama de “case de sucesso”.
De fato, do ponto de vista da tecnologia e do marketing, dá para vislumbrar um lado interessante. Mas no que tange ao posto de grande influenciadora digital, tenho sérias dúvidas.
As marcas e o mercado publicitário gostam de Miquela da mesma forma que o governo e os ultranacionalistas chineses gostam da cantora (também digital) Luo Tianyi. Elas seguem as regras de forma invejável, não causam problemas, não falam bobagens, não emitem opinião própria e nem erram o tom. Nunca.
Claro, há uma equipe por trás de cada postagem e os movimentos de ambas são milimetricamente calculados. Algo que nenhum humano, mesmo com uma equipe grande de apoio, jamais conseguirá. A cantora digital chinesa Luo Tianyi faz mega shows lotados, tem milhares de fãs e até se apresenta com músicos reais. Sua voz metalizada parece ser seu charme, e para o governo chines, ela é o melhor exemplo para os jovens, já que só fala o que o sistema permite e não cai na tentação das drogas e nem em escândalos sexuais. É investimento com retorno certeiro, assim como todas as suas colegas que não tem sangue correndo nas veias. E essa é a ponta do iceberg de problemas que eu, pessoalmente, vejo nesses ídolos feitos inteiramente de pixels, sintetizadores e algoritmos.
É de cortar o coração vermos o dinheiro público destinado à cultura, e também as grandes quantias do mercado publicitário, serem direcionados para robôs que não tem CPF e, no fim da linha, pertencem a grandes corporações. A gente sabe que muitas áreas profissionais de carne e osso estão sendo trocados por máquinas e isso é uma questão desde a revolução industrial. Mas nesse caso, tem um requinte de crueldade: essas influenciadoras tem formato humanoide, estão lá para fingir que somos nós, seu charme é justamente parecerem com a gente sem os nossos “problemas”. Têm ainda a “vantagem” de não envelhecerem e não ficarem de ressaca — para falar o básico.
Eu ia dizer: imagina se a moda pega? Mas a verdade é que já está pegando. Com seus corpos perfeitos, rostos que já vêm com filtro, roupas impecáveis e a vida de sonho, esses avatares têm feito sucesso entre os seguidores, principalmente no Instagram, onde vale a máxima de que quanto mais lúdico e alienado melhor.
Mas será que é isso mesmo? Vamos cada vez mais seguir e nos deixar influenciar por robôs que são praticamente máquinas de vender produto e estilo (idealizado) de vida? Seguir e celebrar algo que desvaloriza a humanidade me parece um tiro no pé. Verdade que Miquela jamais vai dar uma festinha durante a pandemia ou fazer um expose desnecessário do ex que a deixou de coração partido, mas isso não é necessariamente bom.
É a sensibilidade que nos define como seres humanos e errar faz parte da nossa vida. Se redimir, evoluir, ser criticado e ter que lidar com as consequências dos nossos atos é intrínseco ao ser humano, presente nas redes ou não. Desvalorizar a montanha russa que somos por dentro e o fato de que sim, ficamos deprimidos, erramos, nos arrependemos e amadurecemos, é desmerecer o ser humano em si. Não é tenebroso isso? Porque assim como meninas entram nos consultórios de cirurgiões plásticos mostrando como referência o rosto que os filtros do Instagram geram, não vai demorar para termos uma legião de influenciados tentando imitar os robôs que criamos para fugir das características humanas que nos resumem. No caso, referências que não têm problemas, não têm opinião própria ou boletos para pagar.
É por isso que, antes de celebrar o sucesso desses avatares e seguirmos essa tendência de mercado, precisamos pensar e discutir onde isso nos leva. Queremos mesmo desvalorizar características humanas? Queremos que as pessoas não opinem, não envelheçam e não errem? Ou queremos que elas estejam preparadas para dar opiniões embasadas, que envelheçam com responsabilidade e saúde e amadureçam com seus erros?