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    Herança digital: entenda os limites do uso da imagem de pessoas mortas pela IA

    Depois do caso recente da reconstrução da imagem de Elis Regina, especialistas levantam questionamentos éticos e práticos sobre direitos

    Rafael Farias Teixeiracolaboração para a CNN , São Paulo

    Quais são os direitos das pessoas quando o assunto é o uso das suas imagens após sua morte? O novo comercial da Volkswagen, que usou inteligência artificial para unir Elis Regina e Maria Rita ao som de “Como Nossos Pais’”, gerou novas dúvidas sobre como lidar com o uso de IA de forma ética e dentro da lei.

    Elis Regina, uma das maiores cantoras que o Brasil já teve, morreu há 41 anos. Maria Rita, sua filha, também é cantora.

    Apesar da criação digital de pessoas mortas para fins comerciais parecer algo novo, o ordenamento jurídico brasileiro já tem alguns instrumentos que auxiliam na questão. Primeiro de tudo, a Constituição Federal garante o direito à imagem (artigo 5º, inciso X) e o Código Civil prevê direitos da personalidade (capítulo II), onde o direito à imagem é também previsto.

    Ainda existem legislações específicas que tratam de outros direitos que a pessoa morta pode ter e que passariam aos seus herdeiros, como a legislação autoral (Lei nº 9.610 de 1998) que informa que os Direitos Autorais do falecido são transmitidos aos seus sucessores.

    “No Código Civil encontramos a previsão de que os herdeiros poderão atuar para evitar ameaça ou lesão ao Direito da Personalidade do falecido, sem, contudo, explorar quais seriam esses direitos”, explica Fernanda Galera Soler, professora da FGV (Fundação Getúlio Vargas).

    Segundo Fernanda, porém, é importante lembrar que é discutível esse ponto de gestão de tais direitos pelos herdeiros, pois o Direito de Imagem, como um Direito da Personalidade, é intransmissível e irrenunciável.

    “Assim, é questionável se seria somente permitida a atuação dos herdeiros para evitar usos indevidos da imagem do falecido, ou se eles poderiam realizar a exploração dos Direitos da Personalidade do ente familiar que partiu, como aconteceu no caso da publicidade.”

    Paula Guedes Fernandes da Silva, pesquisadora do Núcleo Legalite de Direito e Tecnologia da PUC-RJ e pesquisadora de regulação de IA na Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, afirma que o Código Civil permite que os herdeiros explorem o aspecto patrimonial dos direitos da pessoa morta.

    “Pelo Código Civil, tendo autorização do herdeiro, como foi no caso, não teria problema jurídico algum em explorar a imagem da pessoa já falecida, pois o uso da imagem é legalmente permitido pelos herdeiros. Caso a imagem tivesse sido utilizada sem autorização dos herdeiros, o que se poderia fazer é o herdeiro [cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau] entrar com ação para pedir a proteção da imagem do falecido, inclusive pleiteando indenização”, explicou a pesquisadora.

    Segundo Paula, no caso do comercial, ocorreram discussões de que não houve consentimento de uso de imagem pela própria pessoa, mas, pela análise dela do Código Civil, isso está coberto pela autorização dada por Maria Rita.

    Atualmente, está em discussão o projeto de lei nº 2338/2023 sobre o uso da IA no Brasil. Profissionais do mercado e da própria ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) estão sendo consultados sobre a regulação do tema no país.

    Questionamentos éticos

    Apesar da autorização de uma herdeira, o comercial levantou discussões em redes sociais se Elis aprovaria sua imagem associada à Volkswagen, com o uso da música “Como Nossos Pais”, levando em consideração a época da ditadura.

    “Podemos defender, então, uma violação da ‘imagem atributo’, ou seja, o aspecto do direito à imagem relacionado ao conjunto de atributos cultivados pela pessoa que faz com que ele se reconheça e com que a sociedade o reconheça como tal”, diz Paula.

    “É necessário apurar além do nome, reputação e memória da artista, o quanto ações como essa podem impactar e alterar a percepção do passado e a construção da história, para aqueles que viveram nesta época e, também, para as gerações futuras”, complementa Fernanda.

    O que faz com que as pessoas comecem a refletir sobre suas heranças digitais, formalizando suas vontades para o caso de falecimento, explica a especialista.

    “No caso da Elis, claro, isso era impossível de ser realizado porque ela não tinha como imaginar que um dia chegaríamos nesses avanços tecnológicos”, completa Paula.

    Isso pode ser feito por meio de um testamento, algo que está ficando comum e que teve sua primeira ocorrência entre os famosos com o ator Robin Williams, falecido em 2014, que deixou essa proibição por escrito em testamento, proibindo explicitamente o uso de sua imagem em qualquer mídia por 25 anos após sua morte.

    Mais recentemente a atriz Whoopi Goldberg admitiu que determinou em seu testamento que ninguém faça um holograma digital com sua imagem após sua morte.

    Consumidor e o uso de IA em publicidade

    Logo depois do lançamento do comercial, o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu uma representação ética contra a campanha devido a reclamações de consumidores que questionam se é ético ou não utilizar IA com o objetivo da propaganda, apontando questões sobre o “respeito à personalidade e existência da artista, e veracidade”.

    “O argumento da denúncia é que a autorização dos herdeiros de uso da imagem nesse caso não seria suficiente. Acho que com a denúncia ao Conar eles vão avaliar o uso de IA com objetivo de recriação de imagem de pessoa falecida para propaganda e talvez entrar no debate ético sobre isso”, disse Paula.

    Segundo Fernanda, além desse debate sobre a herança digital das pessoas falecidas, há a questão da transparência sobre o uso de IA.

    “Existem diversos outros usos de IA que não são divulgados, por exemplo, como geradores de imagens. Similar ao que aconteceu com o DALL-E e a criação de imagens baseada nas fotos dos usuários. Atualmente, algumas agências de publicidade já estão usando IA para a criação de imagens abstratas que estarão presentes em conteúdos publicitários”, explicou.

    Segundo Paula, é importante que o consumidor entenda que o uso de imagens por IA por si só não necessariamente é um problema.

    “O problema surge quando esse uso fere outros direitos, como o uso de direitos de terceiros, ou cria um conteúdo com uma mensagem ilícita, por exemplo.”

    Procurada pela CNN quando o comercial foi lançado, no início do mês,, a Volkswagem afirma que “objetivo da campanha era criar um momento único, por meio da inteligência artificial, reunindo Elis Regina, uma das maiores cantoras da história da música brasileira, e sua filha Maria Rita, ícone atual da MPB. A utilização da imagem de Elis Regina na campanha foi acordada com a família da cantora”.

    “A música escolhida, ‘Como Nossos Pais’, de Belchior, interpretada por Elis Regina, serviu como trilha sonora para esse encontro pela sua representatividade na história brasileira ao simbolizar a necessidade de novos tempos. A intenção da Volkswagen com a campanha foi destacar a transição das gerações e a renovação da marca, utilizando a Kombi como um símbolo do passado e o modelo ID.Buzz, sua versão 100% elétrica, como uma representação do futuro”, prossegue.

    “A Volkswagen se orgulha de ser uma marca presente na vida dos brasileiros, com mais de 25 milhões de veículos produzidos no País, e reforça seu compromisso, seguindo sua estratégia mundial, de ser uma empresa cada vez mais humana e próxima das pessoas, promovendo inclusive ações como esta, que possibilitou o encontro de mãe e filha, duas estrelas da música que estão presentes nos corações dos brasileiros”, finaliza a montadora.

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