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    Games x política: ideologias e crises começam a ser levadas para as telas

    Jogo Far Cry 6, lançado mundialmente nesta quinta, leva o jogador a uma versão fictícia de Cuba. Será que o público está pronto para games mais realistas?

    Pablo Miyazawacolaboração para a CNN

    A questão “videogames e política devem se misturar?” costuma causar discussões inflamadas nas redes sociais. De um lado, há quem defenda que jogos eletrônicos devem ser uma forma de entretenimento escapista, e não mais do que isso. Do outro, jogadores com inclinações progressistas clamam por mais títulos com temáticas realistas e posicionamentos ideológicos.

    Lançado mundialmente nesta quinta-feira (7), o jogo Far Cry 6 parece se estabelecer exatamente no centro desse debate. Desenvolvido por múltiplos estúdios da empresa francesa Ubisoft, o jogo de tiro em primeira pessoa se utiliza de inspirações reais para seu enredo, que apresenta um embate entre um ditador fascista e guerrilhas civis na fictícia Yara, uma ilha caribenha inspirada em Cuba.

    A franquia Far Cry vendeu mais de 50 milhões de unidades desde seu primeiro game, de 2004. O game mais vendido foi Far Cry 5, com 25 milhões de unidades. De acordo com a NewZoo, a indústria global de games deve movimentar US$ 175,8 bilhões em 2021. Far Cry 6 está sendo lançado para PS4, PS5, Xbox One e Series X e PC.

    Além das semelhanças visuais óbvias, Far Cry 6 parece ecoar a situação recente de Cuba, que de 1959 até 2018 foi governado por membros da família Castro – Fidel e, posteriormente, seu irmão, Raul. No game, Antón Castillo é “El Presidente” que governa Yara com mão de ferro, seguindo os passos do pai, um ex-chefe de Estado executado por revolucionários na década de 1950. As coincidências com os fatos reais, porém, param por aí.

    “Somos honestos de que uma de nossas inspirações foi a Cuba dos anos 1950, e também a ideia do embargo que ocorre por lá há mais de cinco décadas. Mas, ao avançarmos na pesquisa, percebemos que o game deveria apresentar uma revolução guerrilheira moderna”, afirma Navid Khavari, diretor de narrativa de Far Cry 6.

    Ele cita como referências os protestos populares na Venezuela e Colômbia e os movimentos da chamada “Primavera Árabe”. “Muitas das raízes do jogo são baseadas em Cuba, mas também incorporamos elementos diferentes e novas ideias. Por isso, não pareceria certo fazer a história se passar em Cuba.”

    Antón Castillo é interpretado por Giancarlo Esposito, que dublou o personagem e teve suas expressões faciais e movimentos capturados digitalmente. A presença do ator, conhecido por papéis vilanescos em séries como Better Call Saul, The Mandalorian e The Boys, ajuda a elevar a narrativa de Far Cry 6 a um nível cinematográfico.

    Franquia de Far Cry já vendeu mais de 50 milhões de unidades; o jogo 6 (imagem) trata de uma ilha fictícia inspirada em Cuba / Divulgação

    “Antón é muito eloquente, carismático e charmoso, na intimidade e em público. Mas ele possui essa habilidade – que o Giancarlo também tem – de acionar um ‘modo assustador’ e encarar dentro da sua alma”, diz Khavari.

    A franquia Far Cry não é estranha a temas políticos baseados vagamente na realidade. O enredo do quarto jogo da série, de 2014, foi inspirado na guerra civil do Nepal. Já o quinto, de 2018, foi criticado pela maneira rasa com que abordou seu assunto principal – o poder dos cultos de extremismo religioso no interior dos Estados Unidos.

    É uma abordagem semelhante a de Far Cry 6, que apesar de assumir suas fontes de ideias, não se aprofunda ao ponto de fazer o jogador comparar o enredo fictício com fatos históricos, ou a tirar novas conclusões. E essa parece ser a norma entre os games “sérios”: evocar a realidade, mas sem se posicionar a respeito.

    “Nos conteúdos dos games criados por grandes empresas, os chamados ‘AAA’, existe um discurso hegemônico apolítico. Só que nada é apolítico, o que pode significar uma defesa do status quo”, diz Ivan Mussa, professor da Universidade do Rio de Janeiro, que pesquisa sobre a influência do discurso de direita nos videogames.

    Citando como exemplo os games de guerra da série Call of Duty, da produtora Activision, ele crê haver “uma herança da indústria de games de pegar as tradições dos filmes de Hollywood, que endeusam o papel dos Estados Unidos, seja na Guerra Fria ou na Segunda Guerra, e condenam os demais atores políticos, do Oriente Médio à União Soviética.”

    “A indústria mainstream produz títulos que trazem características, escolhas estéticas e de design que comunicam valores que nunca vão afastar os games de uma política ideológica de centro”, concorda Anderson do Patrocínio, pesquisador da Universidade Federal do ABC, que estuda o discurso sobre política institucional contido nos jogos. “Questões conservadoras, militares e patrióticas, que são tão caras para a direita, sempre estiveram presentes nos videogames.”

    Para o jornalista Henrique Sampaio, cocriador do site especializado em games Overloadr, as escolhas temáticas dos games “blockbuster” já definem por si só um direcionamento político subliminar. “Há uma mensagem muito clara nesse tipo de jogo. Fala-se sobre soberania, invasão de território, conflitos geopolíticos: isso é um produto político – tão ou mais do que games que apresentam uma perspectiva progressista”, diz. “A impressão é a de que os críticos só consideram ‘político’ o que vai contra o que acreditam, ou algo que questiona o que é estabelecido.”

    Mesmo sem tomar grandes partidos, a Ubisoft insiste na validade da conotação política contida em Far Cry 6. “Revolução como história é algo político, não há como disfarçar isso”, diz Navid Khavari, que escreveu o roteiro de Far Cry 6 com a intenção de “abordar os diferentes tons de cinza” e retratar as “complexidades de diferentes perspectivas em vários pontos de vista”.

    “É um equívoco dizer que não se pode falar sobre política em um game”, ele decreta. “Nós só queríamos contar a história que achamos que precisava ser contada.”

    Liberdade para os indies

    A lógica de oferecer múltiplos pontos de vista ao consumidor também é aplicada nos games ditos “independentes”, produzidos por empresas de pequeno porte que se valem de certa liberdade criativa para compensar seus orçamentos reduzidos.

    No caso do jogo de estratégia Suzerain, do estúdio alemão Torpor Games, o jogador faz o papel de um presidente que pode tomar decisões que percorrem campos ideológicos diversos, resultando em desfechos bastante opostos. A responsabilidade de decidir o que é certo ou errado fica a cargo de quem joga.

    Imagem do game Suzerain, em que o jogador é o presidente de um país fictício / Divulgação

    “Ao criar um game político, nossa abordagem foi adicionar escolha e consequência. Não fazer um julgamento ser melhor do que outro, mas torná-los diferentes, como na vida real, onde os políticos não tomam decisões surgidas do nada”, explica o produtor Ata Sergey Nowak.

    Da mesma forma que Far Cry 6, Suzerain também se passa em uma nação fictícia, Sordland, por sua vez inspirada em regiões do leste europeu no início da Guerra Fria, na década de 50. Nowak alega que as escolhas criativas do estúdio visavam estimular o engajamento político e a imersão do jogador.

    “Criamos um território neutro e verossímil para separar as pessoas da realidade. Se o ambiente for realista e o jogador estiver imerso, ele está mais vulnerável e aberto a receber informações, e é mais provável que esteja pronto para enfrentar questões complexas”, ele diz. “Quando se encontra um cenário já conhecido, você tem noções pré-definidas dessa informações e as encara com um certo ponto de vista.”

    Mesmo a aclamação pela imprensa especializada como um dos melhores games de 2020 não impediu que Suzerain fosse criticado por oferecer opções de posicionamento aos jogadores. “Muita gente disse que nosso jogo apoia uma agenda de direita. E muitos disseram exatamente o oposto, que seguimos uma agenda de esquerda”, conta Nowak.

    “O que fazemos é entretenimento primeiro, e depois aprendizado e impacto social. Não queremos ensinar algo ao jogador, e sim levá-lo a um universo e oferecer uma experiência. E o que essa experiência faz para cada um é definido por quem joga.”

    É tudo sobre dinheiro

    Existe uma razão mais óbvia para os (poucos) posicionamentos políticos dos jogos, que é a própria razão de existir da indústria de games: comercializar seus produtos para o maior público possível.

    O professor Ivan Mussa crê que as altas metas de vendas estejam por trás do descomprometimento político das produtoras de grande porte. “A cultura gamer é uma cultura de consumo. O público que os jogos AAA miram é muito maior e sempre será recortado pela demografia tradicional, da figura clássica do homem de 25 a 35 anos, norte-americano e europeu. Se você quer espalhar o seu discurso para esse público imenso, tem que focar no público médio.”

    A construção histórica do que é o “gamer” típico foi estabelecida pelas grandes produtoras ocidentais, que ao longo das décadas optam por focar seus esforços de vendas no que parece ser um público-alvo seguro. “Até o começo da última década, houve a aposta em temas, formatos e gêneros que já eram testados antes, focados em um público masculino típico que já é compreendido”, teoriza o jornalista Henrique Sampaio.

    “Mas isso cria um loop eterno, em que a criação do game é pensada no homem, que futuramente  vai assumir o papel de designer e continuará fazendo games para esse mesmo público. É uma mentalidade que se replica e se retroalimenta.”

    Imagem conceito do Call of Duty: Vanguard, game da empresa Activision inspirado nos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial / Divulgação

    Criador do podcast Primeiro Contato, que relata a história da indústria brasileira de games, Sampaio crê que o consumidor tradicional de games se acostumou aos produtos que lhe são oferecidos, o que colabora para manter expectativas baixas. “Quando se pergunta ao gamer o que ele quer jogar, ele dirá que é aquilo que ele já conhece e entende como game. Vender algo novo é muito arriscado. Por isso temos uma indústria que é tão avessa a riscos, que tenta sempre fazer as mesmas coisas.”

    Para Ata Sergey Nowak, que comandou a criação de Suzerain com uma equipe de sete pessoas, a relutância de grandes empresas em assumir posições está ligada ao receio de os games repercutirem por motivos desfavoráveis. “São muitas responsabilidades com acionistas e capital para proteger. Eles evitam crises ou controvérsias públicas, o que faz com que sejam menos criativos e independentes”, diz. “Eles vislumbram a política nos jogos, mas não se aprofundam no conteúdo e são tímidos em fazer declarações. E isso eu posso entender.”

    Games evoluem. E o público?

    Por fim, outro aspecto que contribui para a postura mais “em cima do muro” dos grandes jogos é a percepção de que certas parcelas do público não estão dispostas a experimentar temáticas e abordagens consideradas “mais progressistas”.

    O fato de o videogame ser uma mídia relativamente jovem contribui para que certas discussões defasadas em outros meios continuem ecoando entre seus consumidores, principalmente no ambiente anônimo e sem filtro das redes sociais.

    “O que mais irrita a militância de extrema direita são os jogos que trazem pautas de identidade, homossexualidade, personagens femininos como protagonistas… Isso existe com filmes, livros ou séries de TV, mas é muito mais forte nos games”, diz Ivan Mussa.

    “Quer dizer que todos os gamers pensam assim? Não, é uma parcela pequena dessa comunidade, mas é aquela que age mais politicamente, com um poder de mobilização online grande, criando uma cultura cada vez mais radicalizada.”

    “Há quem entenda o videogame como algo puramente mecânico, que tem o papel de retirá-las da realidade”, acrescenta Anderson do Patrocínio. “Essas pessoas muitas vezes não percebem com senso crítico todo o discurso político que existe embutido dentro do que entendemos como guerra cultural.”

    Apesar de seguir a passos lentos e das repercussões nem sempre positivas, a indústria mainstream vai tentando evoluir. Talvez inspirada pela liberdade e as novas perspectivas abertas por games independentes, as grandes produtoras começam a amplificar seus discursos, incluindo pautas que forcem o jogador médio a sair da zona de conforto.

    “Há um movimento no sentido de criar jogos menos violentos e explorar outras temáticas, então existe esse sentimento de ameaça por parte do público mais reacionário”, diz Henrique Sampaio. “É importante usar o videogame para falar sobre a realidade. As grandes empresas começaram a entender que existe demanda e que é possível fazer transformações em narrativa e representatividade sem que isso necessariamente seja uma grande revolução.”

    “Claro que existe uma motivação econômica, mas isso está ligado ao desejo de fatias do público, de querer ver outras realidades, não só de sexualidade mas de cor de pele, origem…”, concorda Mussa. “As pessoas querem outros tipos de narrativas, não só para se sentirem representados, mas porque há outras histórias que podem ser contadas.”

    Mesmo em um mundo tão polarizado e distante de qualquer consenso, os videogames ainda possuem um poder especial em relação a outras mídias de entretenimento: a de colocar o consumidor como um protagonista diante de escolhas às quais não está necessariamente acostumado a lidar. O potencial transformador dessas obras interativas ainda mal começou a ser explorado.

    “Nesse momento, a sociedade carece de mais compreensão. É muito importante entender o que realmente está acontecendo no mundo”, teoriza Ata Sergey Nowak. “Nos games, podemos simular qualquer coisa e colocar as pessoas em qualquer posição. Nesse sentido, são as melhores ferramentas de perspectiva e empatia.”

    Pablo Miyazawa é jornalista e foi editor-chefe do site IGN Brasil.

     

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