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    Dentro da Matrix: filósofos discutem possibilidade de vivermos uma simulação

    Proposta abordada há 20 anos em Matrix é levada a sério: seria possível que tudo o que vivemos ser uma simulação computacional?

    Lidia Zuincolaboração para a CNN

    Mais de vinte anos após o lançamento do primeiro título da franquia, Matrix retorna com a sequência Resurrections, dirigida por Lana Wachowski, uma das duas irmãs responsáveis pela franquia.

    Já na virada dos anos 2000, o primeiro título da franquia suscitou diferentes debates sobre seu significado. Logo nos primeiros minutos, por exemplo, vemos Neo segurando uma cópia do livro “Simulacros e Simulações” de Jean Baudrillard, que ficou conhecido justamente por trazer a premissa da ilusão de outra realidade proporcionada pelas novas tecnologias e suas imagens.

    Em Matrix, o que acompanhamos é, justamente, a jornada de um hacker que é convidado a descobrir a verdade por trás do véu de uma simulação computacional.

    A discussão ressoou tão forte no imaginário popular que, em 2003, o filósofo sueco Nick Bostrom chegou a desenvolver um artigo chamado “O Argumento da Simulação”, no qual sugere que poderíamos estar vivendo em um universo simulado – como se estivéssemos dentro de um videogame… ou da Matrix.

    Mas para que isso seja verdade, apenas uma das três afirmações deve ser verdadeira:

    1. Há uma grande chance de o humano ser extinto antes de atingir seu status de “pós-humano” (isto é, a próxima etapa evolutiva da espécie, propulsionada pela tecnologia);
    2. É muito improvável que qualquer civilização pós-humana seja capaz de criar um número significativo de simulações de sua história;
    3. Quase certamente estamos vivendo em uma simulação.

    Apesar de as duas primeiras afirmações sugerirem, justamente, a impossibilidade de se criar uma simulação na qual nós ou outros indivíduos poderiam estar inseridos, foi a terceira opção que mais chamou a atenção de pessoas como o bilionário Elon Musk.

    Já à época, o fundador da Tesla dizia acreditar que o mundo em que vivemos é, na realidade, uma simulação.

    Mais recentemente, em uma resposta a um tweet sobre o jogo Pong, lançado em 1972, Musk argumenta que, 49 anos depois, os gráficos de videogame estão cada vez mais sofisticados ao ponto de serem capazes de criar novos mundos indistinguíveis da realidade. “O que essa tendência continua implicando sobre a nossa realidade?”, ele questiona.

    Curiosamente, ainda em dezembro de 2021, Matrix foi utilizado como pretexto para mostrar a capacidade do motor gráfico Unreal Engine 5 e fazer jogos que, cada vez mais, se confundem com a realidade. Veja a demonstração no vídeo abaixo:

     

    Da Matrix ao Metaverso

    Para Bruno Pato, apresentador de um programa de games e evangelista da realidade virtual (RV), é justamente esse raciocínio levantado por Musk que o faz acreditar que estamos, de fato, vivendo em uma simulação.

    Em seu podcast Papo VR, por exemplo, todo convidado é questionado sobre sua opinião acerca disso: estamos ou não vivendo na Matrix? As respostas, segundo Pato, variam muito.

    Já para Alfredo Suppia, professor de cinema e audiovisual na Unicamp, acreditar que estamos vivendo na Matrix tem uma outra camada política e econômica quando Bostrom afirma que, para que a terceira afirmação seja verdadeira, é necessário que “indivíduos relativamente prósperos desejem criar simulações, e sejam livres para fazê-lo.”

    Esse é o caso do próprio Elon Musk e também de Mark Zuckerberg, que recentemente anunciou a mudança da marca Facebook para Meta, advinda de um novo caminho tomado pela empresa rumo ao metaverso – isto é, universos simulados virtualmente e acessados através de dispositivos de tecnologia imersiva como realidade virtual, aumentada ou mista.

    Apesar de o termo “metaverso” estar na ponta da língua dos entusiastas e investidores (ainda mais em época de NFTs e de venda de “terrenos virtuais”), esse é um conceito que data do começo da década de 1990, quando o escritor Neal Stephenson lançou o livro de ficção científica Snowcrash.

    Enquanto algumas interpretações entendem que o romance é uma paródia dos principais tópicos da ficção científica cyberpunk, outras pessoas (inclusive o próprio Stephenson, que se tornou consultor futurista na empresa Magic Leap) viram no conceito uma oportunidade de negócio.

    Pioneiro no ramo das tecnologias imersivas, Boo Aguilar foi responsável pela criação do núcleo de tecnologias imersivas Snowcrash, da empresa brasileira Flag.

    Desde o início dos anos 2010, Aguilar trabalha em diferentes projetos que visam, por exemplo, a interação entre RV, inteligência artificial e medicina.

    Para ele, o que era um movimento “de garagem” acabou se transformando em algo muito maior e perigoso à medida que foi incorporado à agenda das grandes empresas de tecnologia. “Já existem dispositivos de mapeamento e imersão muito mais sofisticados que foram desenvolvidos há anos, mas ainda não foram implementados porque querem incorporar algoritmos de análise do comportamento humano primeiro”, explica.

    O que já é realidade em plataformas como o Instagram e Facebook, então, está prestes a se estender também ao nível do metaverso. Como defesa, Aguilar menciona um projeto que usou capacetes de RV com análise de movimento dos olhos, que foi capaz de apontar a personalidade do usuário com alta precisão.

    Jogo da Vida

    Em seu artigo “O argumento da simulação e seu caldo de cultura”, Suppia indica que o fato de Musk estar trazendo de volta o argumento da simulação justamente agora teria a ver com um novo desdobramento do neoliberalismo.

    Segundo ele, “todo defensor da simulação, acadêmico ou não, é responsável, conscientemente ou não” por essa perpetuação do capital.

    Afinal, se o mundo for mesmo uma simulação, Suppia acredita que só nos resta, então, jogar:  “É como se o capital pudesse dizer: se quase tudo é uma simulação, nenhuma realidade é muito provável; é preciso jogar a simulação, assumir seu papel da melhor forma possível, obter seu melhor desempenho.”

    Quanto a isso, Suppia cita Jogador Número Um (2018), filme de Spielberg adaptado de livro homônimo, no qual os jogadores competem não apenas por uma vitória no jogo, mas também por prêmios em dinheiro – enquanto o mundo “real” vive em miséria –, perpetuando a ideia de meritocracia.

    Na opinião de Alexey Dodsworth, doutor em filosofia e escritor de ficção científica, porém, quando Bostrom sugere que estamos vivendo em uma simulação, isso não se dá de uma maneira parecida com a clássica alegoria da caverna de Platão, na qual se pressupõe um mundo verdadeiro (fora da caverna) e a simulação (as sombras projetadas).

    Em Matrix, é apontada a distinção entre o verdadeiro e o simulacro, enquanto que, na teoria de Bostrom, todos os universos são simulações. “Ele fala em simulação não como sinônimo de ilusão, tem mais a ver com algo gerado por um programa que cria incontáveis realidades”, argumenta Dodsworth, que acha Matrix muito mais próximo à alegoria da caverna do que à teoria de Bostrom.

    Como explica o pesquisador, Matrix incorre na mesma “ingenuidade” da alegoria de Platão, afinal, como já contestam diferentes filósofos, o que garante que, ao sair da caverna, você estará de fato vendo a realidade? E se for uma simulação ainda mais sofisticada? Nesse ponto, que está mais alinhado à proposta de Bostrom e talvez à premissa de Matrix Resurrections, nada garante que “sair da Matrix” levará Neo à realidade.

    Virtualmente real

    Um importante ponto a ser considerado, portanto, é este levantado pela historiadora e pesquisadora Vanessa Bortulucce: cada época lida de forma diferente com as suas virtualidades.

    Ela lembra de uma história da Grécia Antiga sobre Zêuxis (aprox. século V a.C.), que tinha pintado um cacho de uvas em uma parede de forma tão realista que até mesmo as aves chegavam a bicar a imagem. “Essa é uma tradição que segue ao longo da história, principalmente do ponto de vista ocidental, quando vemos nas domos as pinturas que imitam a natureza para dar a sensação de que se está ao ar livre, quando, na verdade, é parede”, ela complementa.

    Bortulucce comenta que, desse ponto de vista, hoje já é possível de se dizer que algumas pessoas abdicam do “mundo real” para viver nessas virtualidades cada vez mais realistas proporcionadas pela computação gráfica e pelos games.

    Esse também é um dado trazido por Pato, que afirma já haver pessoas que passam muito mais tempo em simulações como o VRChat do que “offline”.

    No entanto, para a historiadora, não existe realmente uma oposição entre o “real” e o “virtual”, uma vez que “tudo parte sempre do real” e que, muitas vezes, esse real ainda assim é uma versão idealizada.

    Nesse ponto, o fato de que Matrix possui tantas interpretações diferentes já pressupõe a ambiguidade do que seria o real ou o verdadeiro, do que seria idealizado ou daquilo que passa despercebido pela nossa percepção.

    Um dos motivos pelos quais Lilly Wachowski não irá dirigir a sequência Resurrections com sua irmã tem a ver com o fato de que, para ela, Matrix sempre foi uma metáfora sobre transição de gênero, porém, à época, os executivos não aceitavam trazer isso em pauta tão explicitamente. Agora que ambas as irmãs passaram por essa transição publicamente, Lilly não vê razão para retornar à franquia.

    Em outras palavras, Matrix não apenas traz em seu enredo um questionamento sobre o que é o real e o que é simulação do ponto de vista tecnológico. A própria obra, de forma metalinguística, consegue se multiplicar em diversos outros sentidos.

    Apesar de os primeiros títulos terem assumido uma clara diferenciação entre o que seria real e virtual, fica a torcida para que Resurrections reforce esse debate também trazendo em pauta a proposta de uma realidade ao estilo “boneca russa” de Bostrom. Se, de fato, vivemos em uma simulação – é possível um dia sair dela e não cair em outra simulação?

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