Saiba mais sobre a endometriose: uma das principais causas da infertilidade feminina
Doença acomete cerca de 190 milhões de mulheres em todo o mundo, segundo a OMS
Dores, incômodos durante o período menstrual e desconforto durante as relações sexuais. Esses são alguns dos sintomas da endometriose, doença caracterizada pela presença de tecido semelhante ao endométrio (o revestimento do útero) fora do órgão. Por outro lado, cerca de 25% das mulheres não apresentam sintomas.
A doença acomete cerca de 190 milhões de mulheres em todo mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) e causa uma reação inflamatória crônica que pode resultar na formação de tecido cicatricial (aderências e fibrose, por exemplo) na pelve e em outras partes do corpo, além de ser uma das principais causas da infertilidade.
Segundo o presidente da comissão especializada em endometriose da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Julio Cesar Rosa e Silva, na maioria dos casos a doença afeta a mulher em idade reprodutiva.
A origem da endometriose continua controversa e várias são as teorias atuais para explicá-la, explica Rosa e Silva. “A mais aceita é a teoria que aponta a presença de células endometriais viáveis (grupo de células que recobrem o útero por dentro) no fluxo menstrual retrógrado, para dentro do abdome, como causador das lesões. No entanto, praticamente 90% das mulheres têm trompas pérvias e apresentam fluxo menstrual retrógrado e a maioria não apresentará endometriose”, diz o médico.
O representante da Febrasgo aponta que há também a teoria da metaplasia celômica, que é a transformação das células que recobrem a cavidade pélvica em endometriose.
Outra teoria é a imunológica. “Haveria realmente um fluxo menstrual retrógrado associado a uma predisposição genética e imunológica que facilitaria o implante de células endometriais viáveis e com potencial para implantação.”
Descoberta da doença
Muitas mulheres só descobrem a endometriose quando querem ter filhos e estão tendo dificuldade para engravidar.
Esse foi o caso da jornalista Caroline Salazar, 42 anos, que descobriu a endometriose aos 30 anos. “Eu já sofria com cólicas fortíssimas desde a minha primeira menstruação, aos 13 anos. Naquela época, comecei a ter todos os sintomas, como cólica muito forte, dor nas pernas, dor na lombar e fadiga”, disse à CNN.
A dor não é comum
Caroline conta que desde criança já sentia dores nas laterais do abdome, entendidas hoje como na região dos ovários. Ela relembra um episódio em que foi necessário interromper suas atividades físicas por conta dos desmaios e as constantes dores.
O coordenador da Ginecologia do hospital BP (Beneficência Portuguesa de São Paulo), Mauricio Abrão, a dor pode ser causada por uma resposta inflamatória que o órgão acaba fazendo por um tecido fora do lugar.
“Essa inflamação pode não só formar dor, mas pode gerar aderência e alterações no funcionamento dos órgãos pélvicos, gerando a infertilidade”, disse.
Como explica Rosa e Silva, não existe uma idade para o aparecimento da dor.
“Sabemos que na sua grande maioria a doença aparece em mulheres na idade reprodutiva, enquanto menstruam, desde a adolescência até a menopausa. Porém, existem casos de aparecimento desta doença mesmo após a menopausa”, disse.
Geralmente, as dores iniciam-se na adolescência com quadro de dismenorréia (cólica menstrual) leve com progressiva piora ao longo do tempo.
Abrão avalia que há seis “Ds” para identificar os principais sintomas da endometriose. “Dor da menstruação, dor na relação sexual, dor entre as menstruações, dor para evacuar e para urinar na menstruação e dificuldade para engravidar”, afirma o médico.
Uma revisão feita por pesquisadores dos Estados Unidos descobriu que mais de 60% das mulheres diagnosticadas com endometriose relatam dor pélvica crônica (DPC), com pacientes com endometriose 13 vezes mais propensas a sentir dor abdominal.
Rogerio Tadeu Felizi, ginecologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz explica que “a dor está relacionada ao processo inflamatório causado pela presença daquele tecido que não era para estar ali, que está fora do seu local de origem, e aí ele acaba gerando uma inflamação em torno dele — que leva à dor — e a longo prazo, essa inflamação acaba gerando aderências e isso piora a situação”.
“A gente começa a pensar na correlação da dor com a doença geralmente quando a dor é severa ou incapacitante. Na projeção de zero a dez, quando a dor é maior que sete, ela pode significar endometriose”, explica Abrão.
Ele destaca ainda que nem sempre as manifestações clínicas serão os únicos parâmetros para identificar a doença, já que algumas mulheres podem não apresentar sintomas.
Além disso, a dor pode estar relacionada ao órgão que ele acomete, como aponta Felizi.
Infertilidade e endometriose
A própria menstruação da mulher já é um ciclo preparatório para a gravidez. E quando há a endometriose, esse período é interrompido ou atrapalhado.
Importante ressaltar que, embora a endometriose prejudique a fertilidade, geralmente não impede completamente a concepção –como a esterilidade.
A infertilidade é uma dificuldade em engravidar após 12 meses de tentativas. Um levantamento do Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas apontou que a cada dez mulheres que são inférteis, quatro delas têm endometriose.
Segundo Rosa e Silva, a endometriose “tem sido observada em 5% a 10% das pacientes submetidas a cirurgias ginecológicas, 20% a 50% das mulheres com infertilidade, dificuldade de engravidar, e 60% a 70% das portadoras de dor pélvica crônica”.
Os sintomas da endometriose podem gerar bastante estresse. A psicóloga Adriana Mara Leopold, mestre em psicologia do desenvolvimento humano pela USP, explica que “a psicoterapia pode ajudar a lidar com tais sintomas, e em casos mais graves, em que a pessoa esteja tendo algum prejuízo em suas relações interpessoais ou de trabalho, por exemplo, uma avaliação com psiquiatra deve ser considerada”.
Em um estudo de 2020, que avaliou o impacto da endometriose na qualidade de vida e a incidência de depressão, mostrou que 15,1% das mulheres com endometriose tiveram diagnóstico de depressão.
A especialista acrescenta que, historicamente, o sexo feminino tem sido associado à fertilidade e à capacidade de gerar novas vidas. “A sociedade, no geral, tende a cobrar que o fato de uma pessoa ter útero, logo deve ‘usá-lo’. Quando não têm filhos, pessoas com útero são malvistas, como se não tivessem cumprido seu papel na Terra”, disse.
Esse era o caso de Carolina. Ela conta que estava mais preocupada com questões sobre sua qualidade de vida do que com a gestação em si.
“Eu nunca me preocupei com gravidez e nem senti medo de não ter filhos. Eu tive minha filha aos 37 anos. Eu estava preocupada em melhorar de uma doença que sofri por 21 anos. Sempre tive para mim que, se tivesse que ser, seria.”
Rosa e Silva aponta que, embora esteja bem estabelecida a associação entre endometriose e infertilidade, ainda não se conseguiu determinar a verdadeira influência desta doença nas diferentes etapas do processo de fertilidade.
Abrão diz ainda que, “apesar de ser uma das principais causas de infertilidade, algumas mulheres conseguem engravidar e até abortar ou mesmo levar a gravidez em frente”.
Como ocorreu com Carolina. “Eu tive uma trompa obstruída, então precisei fazer um fertilização in vitro [tratamento de reprodução humana assistida que consiste em realizar a fecundação do óvulo com o espermatozoide em ambiente de laboratório]. Tive um único óvulo e nasceu a minha filha”, conta.
Não há uma causa específica para a endometriose. Rosa e Silva, membro da Febrasgo, diz que o “estudo da doença atribui a endometriose a um conjunto de elementos associados, dentre os quais a interferência mecânica por obstrução das trompas nos casos mais severos. Esse aparece como o fenômeno mais aceito, podendo estar ligado a alterações nos processos de ovulação, fertilização e implantação do embrião.”.
Tratamento e diagnóstico
Atualmente, não há nenhuma maneira conhecida de prevenir a endometriose e nem uma cura para a doença, segundo a OMS.
A conscientização, diagnóstico e tratamento precoces podem retardar ou interromper a progressão natural da doença e reduzir a carga de longo prazo de seus sintomas, incluindo o risco de sensibilização da dor no sistema nervoso central.
Felizi, do Oswaldo Cruz, afirma que o tempo médio entre o aparecimento dos primeiros sintomas até a detecção da doença demora entre oito a 12 anos. “O principal problema do diganóstico da endometriose é a não valorização da dor, tanto por parte das pacientes quanto por parte dos profissionais de saúde.”
Abrão diz que de 40% a 50% das adolescentes que têm cólica incapacitante podem ter endometriose. Segundo o ginecologista, é preciso estar atento aos sinais e sintomas.
“Hoje há até aplicativos para identificar e classificar a os sintomas da endometriose. Mesmo não sendo médica, a própria paciente pode baixar o aplicativo”, disse o ginecologista.
O tratamento pode ser feito com medicamentos ou com cirurgia, dependendo dos sintomas, lesões, evolução dos quadro e escolha da paciente.
Felizi diz que na cirurgia, “deve haver cuidado na remoção do tecido porque, normalmente ele está associado a outro órgão.”
Como não há cura para a doença, Mauricio Abrão, da BP, ressalta que “estamos em um momento que a mulher precisa assumir o protagonismo do próprio tratamento”. afirma.